Serviço Jesuíta aos Refugiados: "Gostávamos de estar nos aeroportos a acolher migrantes"
Na Entrevista TSF/DN, André Costa Jorge, diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados em Portugal há 16 anos e coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados, defende que a sociedade civil e as autarquias tenham um papel mais relevante no acolhimento de imigrantes e refugiados em Portugal
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André Costa Jorge, está do lado dos que saúdam as novas regras (da imigração), dos céticos ou dos críticos e descontentes?
Eu estou do lado dos que saúdam as novas regras, as novas regras que nos parecem positivas. Estou do lado daqueles que entendem que é o papel das organizações não-governamentais apoiar e melhorar as decisões políticas, sejam elas quais forem, sejam elas de que governo vierem. E sobretudo, estamos do lado dos migrantes. É esse o lado em que nos encontramos, procurando contribuir e cumprindo aquilo que é a nossa missão. A missão do JRS (Serviço Jesuita aos Refugiados) é acompanhar, portanto, é estar ao lado das pessoas e servir as pessoas naquilo que são as suas necessidades e defendê-las. Aliás, o termo inglês desta missão do JRS é “to advocate”. É uma palavra dificil de tradução em português mas que nós traduzimos por “defender”, isto é, ser a voz das pessoas que muitas vezes não têm voz. E como é que fazemos isso? Fazemos estudando as políticas, estudando as leis, o quadro legal. Estudando também as práticas, isto é, acompanhando as pessoas no terreno de maneira que nós possamos perceber melhor como é que as políticas ou as intenções e o quadro legislativo se implementam de facto, não apenas só de jure, vamos dizer assim, mas de facto, procurando perceber também e não apenas criticar ou não apenas ter uma visão diferente quando é necessário ter visão, mas fazer propostas. Nós todos os anos lançamos o chamado “Livro Branco das Migrações”, que é um documento que analisa a partir do nosso contato direto nos vários lugares onde estamos. Nós temos um centro de atendimento para migrantes, nos vários centros de acolhimento para migrantes sem abrigo, para refugiados acompanhamos no âmbito da Plataforma para os Refugiados os vários programas de reinstalação dos barcos humanitários a ao crescimento de refugiados das mais diversas origens. Estivemos no acolhimento de refugiados da chamada crise de refugiados da Grécia e do Afeganistão e da Ucrânia. E, portanto, temos um conhecimento creio que aprofundado feito na prática daquilo que é a experiência das pessoas no terreno e como é que as coisas funcionam bem e onde é que as coisas funcionam menos bem até funcionam mal. E o papel deste Livro Branco é devolver aos decisores políticos a nossa experiência e fazer propostas de alteração.
Vamos detalhar um bocadinho esse este plano de ação. Vai ao encontro do que vocês identificaram como problemas? Vai ajudar a resolver esses problemas? E como?
Eu creio que há dois aspetos prévios a isto. O primeiro aspeto: fiquei bastante satisfeito e acho que qualquer cidadão de bem - passo o termo - ficaria satisfeito, com o distanciamento ao nível do discurso político que o Governo fez relativamente aos discursos marcadamente xenófobos. E, portanto, eu acho que é óptimo haver um plano, mesmo quando um plano pode ser imperfeito. Todos os planos serão (imperfeitos), à partida, diria eu. Mas haver um plano, permite a todos que haja escrutínio e, portanto, nós podemos olhar para um plano e aperfeiçoá-lo. Podemos ver onde é que as ideias boas resultaram, e onde é que elas não resultaram.Podemos fazer críticas e também melhorias ao longo da sua execução. Portanto, a primeira ideia é que há um plano, e isso é bom.
Não havia?
Havia um programa do Governo. Do anterior Governo. Pelo menos este Governo tem este aspeto positivo que é saber ao que vêm, e que é que se propõem fazer. Há um aspeto também positivo e nós identificamos muitas matérias , muitas dimensões que estão no plano que decorrem, por exemplo, também do nosso Livro Branco com as quais nós nos identificamos. Quer dizer que também é um aspecto positivo, além de uma demarcação do discurso mais securitário até xenófobo, que ganhou algum espaço na sociedade portuguesa. Há também um aspeto que eu acho que é positivo, porque o Governo ouviu ou procurou ouvir e auscultar, a sociedade civil. Eu falo pelo JRS e pela Plataforma para os Refugiados.
Ouvir, ou apenas ler o Livro Branco?
Não, não! Ouvir. Nós tivemos quase 3 horas em diálogo com o gabinete do Secretário de Estado.Não foi a primeira vez que falamos com os decisores políticos e, portanto, não é um aspecto único ou exclusivo. Mas foi um bom sinal de quem está a começar: escutar quem está no terreno, quem tem trabalhado com esta dimensão da sociedade portuguesa – o acolhimento e a integração de migrantes - e, portanto, sentimo-nos ouvidos e quando olhamos para o plano, é verdade que estamos ainda numa fase - nós JRS e eu creio que boa parte da sociedade civil - deve estar numa fase de analisar as propostas e vermos de forma mais detalhada onde é que o plano plano quer chegar, e quais são os estrangulamentos que podemos encontrar desde logo. Mas nós identificamos um conjunto de de aspetos positivos.
Por exemplo, a presença das organizações da sociedade civil em espaços de detenção, que eu acho que é um aspecto bastante positivo e que são propostas que nós fazíamos no Livro Branco, e que vemos presentes no plano do Governo.
A dimensão do reconhecimento de qualificações e competências. Isto é, a vontade do Governo de reforçar a questão dos migrantes qualificados. Nós trabalhamos há muitos anos nesta matéria e desenvolvemos dois projetos de integração profissional de médicos imigrantes em Portugal, em parceria com a Gulbenkian. Fizemos recentemente um levantamento, também para a Gulbenkian, da situação dos médicos venezuelanos em Portugal e descobrimos cerca de 200 médicos que esbarravam no processo de reconhecimento de qualificações, tanto ao nível do Ministério do Ensino Superior - agora Ministério da Educação - , como na questão das ordens profissionais - ordem dos médicos no caso concreto - e, portanto, é verdade que vemos isto lá no plano. Mas há aspetos de detalhe: como é que isto vai implementar-se? Temos a vontade de colaborar e contribuir, mas vemos assim aspetos que é importante ultrapassar.
Também o aumento da capacidade de acolhimento de emergência para pessoas migrantes e refugiados. Já dizíamos há muito tempo. Aliás, nós vamos inaugurar no dia 20 de Junho, dia do Refugiado, o Centro de Acolhimento em Vendas Novas , com capacidade para cerca de 100 pessoas dedicado ao acolhimento de pessoas refugiadas. É um antigo colégio dos Salesianos e é muito neste espírito que o Papa Francisco lançou às organizações da Igreja Católica, de disponibilidade dos seus espaços. É verdade que muitos dos espaços não estavam adaptados para estruturas de acolhimento e tivemos que o fazer durante os últimos 2 anos beneficiando dos fundos europeus para essas para esta criação destas infraestruturas. Adaptamos um antigo colégio dos Salesianos em Vendas Novas para centro de acolhimento. Vamos abri-lo agora, dia 20 de Junho. Portanto, é mais um destes espaços e, portanto, ficamos felizes que haja a mesma visão para reforço da capacidade de acolhimento.
Também a articulação com os municípios. Eu creio que a experiência do Fundão pode e deve ser replicada no país e a nossa presença em Vendas Novas - temos estado em grande diálogo com a Câmara Municipal de Vendas Novas, com o senhor Presidente da Câmara - e creio que é possível replicar. É muito importante que os municípios e os autarcas vistam esta camisola, porque Portugal precisa de migrantes, precisa de estrangeiros.
Mas é preciso transformar essas exceções em regra, porque infelizmente o que tem acontecido é o contrário.
Sim, em regra. Também no ensino do português, o reforço da cobertura do ensino português, envolvendo também as escolas.
A rede é insuficiente, nesta altura?
O problema do ensino português não é apenas uma questão de rede - também é -, mas é a questão da adaptação à realidade muito flexível e muito volátil da presença dos migrantes. Nós não podemos ter modelos de ensino português demasiado rígidos, quer ao nível dos conteúdos e do modelo de ensino, quer ao nível da disponibilidade dos programas de ensino porque a realidade é muito flexível, muito rápida.
Isso é uma barreira à integração?
É. Por exemplo - eu creio que isso já foi ultrapassado - mas nós identificamos logo no início, quando as turmas dos cursos do IEFP exigiam que se tivesse um número x de alunos para abrir uma turma, isso queria dizer que bastava que faltassem 5 participantes para não haver curso ou quando os cursos não estavam adaptados para a diversidade e para escolaridade que as pessoas traziam. Nós temos pessoas com escolaridade superior, temos pessoas que vêm de outros alfabetos, de outros lugares, de outros patrimónios. Ensinar português a quem vem de um contexto dos PALOP, por exemplo, em que é necessário fazer esse reforço, é diferente de ensinar português para quem vem da Eritreia e fala tigrínia, e que tem outro alfabeto ou que vem da da Ásia do Sul. O objetivo é o mesmo é, mas deve haver um maior reforço nas competências de quem faz a formação do Português.
Eu creio que estes dois aspetos são claramente positivos. O sublinhar da necessidade de Portugal ter uma política migratória e de que a sociedade civil precisa deve estar envolvida no acolhimento e integração dos migrantes, e que devem ser encontradas medidas que potenciem isso mesmo, a integração dos migrantes. Também reconhecemos que o plano acaba por estar em linha com o Pacto Global das Migrações e também com o Pacto Europeu, e, portanto, há aqui um alinhamento dos objetivos do Governo com o quadro europeu e internacional.
Qual é ou quais são o problema ou os problemas que não têm resolução à vista, com a aquilo que foi revelado até agora pelo Governo? Há algum?
Nós vemos com alguma preocupação esta questão da manifestação de interesse, que tem sido muito focada pelas várias forças políticas.
Pode ser um muro?
Pode, porque... É preciso desconstruir alguns mitos que se têm ouvido na comunicação social, de que agora as pessoas só podem vir, só podem migrar com visto de trabalho. Não é verdade. Continua a haver possibilidade de vir para Portugal por outras formas. A lei prevê já um conjunto de medidas e de possibilidades a para migrar sem ser apenas...
Com razões humanitárias. Há o artigo 123º (da lei que regula a entrada e saida de cidadãos estrangeiros no país).
Exatamente, o 122º e o 123ª permitem a regularização sem visto de residência por razões de ordem social, humanitária, etc. E há também o reagrupamento familiar. Sabemos também que a AIMA tem feito esse esforço na criação de uma plataforma para que facilite o processo de reagrupamento familiar. Agora, eu creio que é preciso procurar salvaguardar a situação de desproteção em que as pessoas possam encontrar-se. É preciso também que o sistema do lado do Estado funcione bem e é necessário que exista uma boa relação interministerial, para que o sistema funcione bem. É preciso reforçar – e tê-mo-lo dito há muito tempo – a capacidade de resposta, desde logo da AIMA. Sabemos que a AIMA, e os seus trabalhadores, têm sido muito pressionados para dar resposta, mas não é uma responsabilidade exclusiva que se possa atribuir à AIMA. É preciso olhar para o futuro, para o presente e para o futuro, mas de facto, há uma história que não podemos negar. Desde 2009 que os relatórios do SEF falavam insuficiência de recursos. Aliás, em 2019, salvo erro, o relatório do SEF usava mesmo a expressão “ruptura de meios”. Não é só de meios humanos, mas também meios tecnológicos. Passamos vários governos de várias cores políticas. Há uma responsabilidade que vai para lá de dez anos, e que mostra que, de alguma forma, esta área foi esquecida ou ignorada e, portanto, a situação em que nos encontramos e que temos para resolver é uma situação que deriva de um avolumar de indecisões, e da incapacidade por parte do Estado em resolver, em reforçar e em encontrar as melhores soluções.
Mas concorda com esta alteração de de pôr fim às manifestações de interesse? Suspender este artigo os artigos 88 e 89? Concorda que era uma medida essencial para equilibrar as entradas e para travar um pouco os fluxos para os quais não há resposta e que o Ministro da Presidência disse-nos que serão cinco mil os novos pedidos por semana, de manifestações de interesse. O sistema só tem capacidade de responder a dois mil por semana. Concorda com esta medida ou não?
É preciso dizer que as manifestações de interesses foi a forma que Governo encontrou na altura para superar outras dificuldades e, portanto, é um remendo que tem o efeito de provocar outras situações. Claro que nos preocupa que a eliminação da figura da manifestação de interessepode provocar situações de irregularidade e desproteção social que, de alguma maneira, coloca as pessoas migrantes numa situação mais vulnerável, ainda.
Concorda que neste momento era preciso colocar este travão?
Politicamente, eu creio que havia que dar um sinal, porque havia uma realidade mediática que estava a projectar-se contra os próprios migrantes, que era a ideia de que havia um certo caos e incapacidade de controlo.
Mas isso é a realidade mediática ou é a realidade? Porque há inúmeras imagens de todo o país de situações de exploração...
Havia uma situação de realidade e uma situação de alguma sobrevisibilidade mediática que tinha dois efeitos. A verdade que a situação dos migrantes hoje ainda é de desproteção no sentido em que as pessoas que chegaram com uma manifestação de interesse, foi-lhes dito “venham”, ”estejam”. Muitas vezes, nós sabemos que o sistema permitia que as pessoas colocassem até documentos que não eram os necessários e os válidos, e as pessoas ficariam a aguardar 12 meses. Na verdade, nós sabemos que eram 24 meses. Durante esse tempo, ficavam a aguardar e não tinham quaisquer tipo de benefícios dos descontos que estavam a fazer. Não podemos concordar com uma situação de exploração tácita das pessoas.
Estava a acontecer?
Estava a acontecer isso, mas também com boa intenção. Porque havia um primeiro reconhecimento que o sistema que deveria funcionar não funcionava, mas o estrangulamento transitou de uma parte do problema para outra parte do problema, isto é, passou para o SEF e depois do SEF passou para a AIMA.
Portanto, o muro foi sempre o mesmo, mas foi mudando de sítio?
Aqui a questão é: se não temos capacidade de fazer um investimento certo, quer na melhoria tecnológica, quer na melhoria de meios humanos, então vamos estar sempre a adiar a vida das pessoas. As pessoas estão, de facto, com as vidas suspensas, muitas delas a mais de um ano a dois anos, até dois, três anos com a esperança.
Num cenário hipotético que esperemos que um dia aconteça, em que estes documentos que são essenciais para a integração das pessoas fossem tratados dentro dos prazos, rapidamente, e com todas estas pessoas documentadas, o nosso país tem capacidade para absorver todas estas pessoas? O número de pessoas é desconhecido...
As pessoas já cá estão e estão a contribuir. Estão a trabalhar, são nossos concidadãos. Podem não ter a sua documentação, não estar num processo de regularização, mas já cá estão. Se Portugal tem capacidade? Não, creio que tem de se trabalhar. Temos todos de trabalhar para criar condições. Um dos aspetos que nos preocupa muito tem a ver com o acesso à habitação. Esse é um aspeto fundamental que tem de ser francamente melhorado. Isto é transversal à sociedade portuguesa, não é apenas aos migrantes. Estamos a falar até da classe média, de jovens casais e de jovem que vão estudar para fora da áerea de residencia. Criámos há quatro anos um gabinete de habitação no JRS, com a tarefa de conseguirmos alavancar e encontrar alternativas para o acesso à habitação e sermos mediadores na relação entre os migrantes e os senhorios. Porque para um migrante, é impensével pensar em ter casa própria. O mercado de arrendamento é muito difícil para as pessoas migrantes, sobretudo nos grandes centros urbanos. Por isso também o termos ido para Vendas Novas, para sair dos grandes centros urbanos. O centro de acolhimento não é um destino final, mas sempre uma instalação provisória, para que estas pessoas possam ter uma experiência de vida, fora dos centros urbanos. Nós sabemos que uma boa parte das pessoas procura os centros urbanos porque é onde há mais opurtunidades de trabalho, mas é preciso olhar para o país no seu todo. Nos tivemos essa experiência na PAR (Plataforma de Apoio aos Refugiados). É possivel arranjar oportunidades que conjuguem realidades regionais e locais com as capacidades e as competências que eles trazem
Há vantagem para esses cidadãos? Eles vêm à procura de uma vida melhor que a que tinham. Conseguem, com mais facilidadee, essa vida se não forem para os grandes centros urbanos?
Não é com mais facilidade. Fora dos centros urbanos, objetivamente, há menos oferta e menos oportunidades. A experiência do Fundão ou de Braga e outras zonas do país, mostram que é possível conjugar a necessidade do acolhimento e da integração com as ofertas e com a dinamização e animação do mercado de trabalho, da vida económica e social de outras localidades.
Consegue fazer uma proporção: por cada Fundão, quantas Odemira temos?
Não, não consigo fazer essa proporção, mas acho que parte também da capacidade que as autarquias têm de mobilizar e criar condições para o acolhimento de pessoas migrantes. Há um dado evidente: o tecido social português está muito envelhecido. Sabemos isso e, portanto, nós vamos precisar e temos que ser capazes de vencer o desafio do acolhimento, de integração e no sentido de se criar também uma sociedade diversa, por um lado, mas também coesa. Portanto, há aqui um grande desafio de todos, a começar desde logo pelas estruturas mais pequenas. Freguesias e municípios têm que ter um papel ativo nesta dimensão. Por exemplo, nós temos vindo a trabalhar com a Câmara do Porto e com a Junta de Freguesia do Bonfim, no Porto, no acompanhamento de pessoas imigrantes em situação vulnerável, algumas pessoas em situação sem abrigo e temos tido também a boa experiência de contar com autarcas que, no caso da Junta de Freguesia do Bonfim, que sentem esta questão como sua, e não como se as pessoas não fossem os seus municipes ou concidadãos. Um aspeto importante no exemplo do Fundão, é a autarquia, envolveu-se de início no projeto. É uma antigo seminário da igreja católica, que foi disponibilizado para o acolhimento de migrantes e refugiados, mas que contou com o envolvimento da autarquia. Não queria aqui objetivar a questão de Odemira ou outra qualquer. Creio que deve haver uma responsabilização por parte dos municípios. Isto sem descartar naturalmente o papel do Estado central e sobretudo também de quem tem responsabilidades governativas. Mas deve haver um envolvimento dos municípios e da sociedade civil local e com organizações e promover um espaço de diálogo e de convívio. Porque, na minha experiência, é quando as pessoas se conhecem e estão em contacto e quando se cria uma cultura de hospitalidade, é possível vencer desafios e boa parte dos desafios às vezes têm a ver com estranheza, afastamento, que criam situações de exclusão e, às vezes, de discriminação.
O JRS tem uma ligação concreta com as empresas. Disse há pouco que valorizava a intenção do governo de procurar mais imigrantes qualificados. Há um desfazamento entre o tipo de trabalho imigrante que os empresários procuram, e os os imigrantes que chegam?
Começo por dizer que a ideia de haver uma política de acolhimento de migrantes qualificados não é totalmente virtuosa. Ela também coloca desafios. Não basta que as pessoas venham qualificadas, é preciso que o país de acolhimento reconheça as suas qualificações. Isso necessariamente tem que envolver as universidades, as ordens profissionais e outras instâncias de reconhecimento de qualificações técnicas. Agora, boa parte do mercado de trabalho em Portugal e da nossa experiência também absorve muitos imigrantes não qualificados. E vai continuar a absorver porque há muita necessidade de trabalho em áreas onde não são necessariamente necessários migrantes qualificados. Vou dar um exemplo: nós temos feito muita formação para cuidados geriátricos. Somos muito procurados para cuidadores de idosos, por exemplo. É necessário haver alguma formação em dimensões como a alimentação, o cuidado, técnicas de cuidado de idosos, as não é necessário que as pessoas tenham formação superior.
Quando falamos em migração laboral, a migração altamente qualificada coloca também desafios a qualquer governo, não apenas a este, quanto ao equilíbrio entre as oportunidades que damos a migrantes qualificados, mas também aos nossos jovens qualificados. Porque nós sabemos que tem havido uma forte tendência para que os jovens portugueses qualificados procurem outros mercados de trabalho e que muitas vezes encontrem oportunidades fora do nosso país.
Até porque os nossos maiores índices de desempregados são os mais jovens...
Ora, o senhor primeiro-ministro, na apresentação do Plano, falou na necessidade de reter os jovens portugueses qualificados. Ótimo. Até porque sou pai de quatro jovens e, portanto, gostava muito que os meus filhos pudessem encontrar trabalho e viver em Portugal, embora ache que é importante haver uma experiência internacional, que as pessoas tenham o mundo e tenham experiências noutros contextos. Dito isto, para acolher é importante que haja uma grande articulação entre o setor empresarial, as necessidades do mercado de trabalho e onde é que vamos recrutar os tais migrantes qualificados e incluí-los. Mas acho não devemos excluir migrantes menos qualificados. Além disso, é preciso apoiar os migrantes qualificados que já cá estão, no seu processo de reconhecimento de qualificações, e no processo de alinhamento da seleção às suas expetativas em termos de trabalho e em termos de melhoria de condições de vida. Porque a integração bem-sucedida não é apenas que as pessoas fiquem a fazer o que já estão a fazer. É que as pessoas também façam um percurso, um itinerário pessoal, laboral, social. Em Portugal, a integração é um caminho, não é um status, é um caminho. É um caminho que envolve quem chega, mas também envolve quem acolhe. E, portanto, todos nós temos que fazer um processo de integração, não apenas os migrantes.
Não acha que tudo o que temos estado aqui a falar, sobre o que é que deve ser feito para melhorar o acolhimento e integração, devia ter sido uma conversa e medidas tomadas antes de se decidir que Portugal precisava de mais imigrantes e de alterar a lei no sentido de poderem vir mais imigrantes? Não acha que houve também alguma responsabilidade política por primeiro abrir a porta e agora, quando já passaram sete , oito anos de termos chegado a uma situação como a que conhecemos, estarmos ainda a falar do que é que devemos fazer para acolher e integrar melhor os imigrantes?
É preciso ver que a realidade migratória é dinâmica, não é? Olhando assim para os últimos anos, em bom rigor, creio que, do ponto de vista do debate político sobre migrações, demos um salto de quase de mais de dez anos para voltarmos a falar sobre imigração, pelo menos nos termos tão amplos como estamos a falar hoje.
O efeito a alteração à Lei de Estrangeiros em 2017 era mais do que expectável...
Desde desde a crise, desde 2014, 2015 a esta parte, o centro do debate sobre políticas migratórias estava focado na questão dos refugiados, do acolhimento de refugiados que tem o seu espaço neste plano, por exemplo, que o Governo apresentou. Na questão migratória, parece-nos que desde a criação dos CNAIM (Centro Nacional de Acolhimento e Integração de Migrantes) em 2004, tínhamos uma situação muito semelhante a esta. No final, no início deste século, fiz parte da equipa que abriu o CNAIM nessa altura, o Centro Nacional. Fiz parte dessa equipa do Alto Comissariado, em termos de políticas migratórias, o olhar sobre os migrantes em Portugal. E temos a alguns marcos. O primeiro marco de todos foi a criação de uma coisa chamada Secretariado Intercultural. Criada por Roberto Carneiro, que visava dar a formação a professores nas escolas, trabalhar essa dimensão da educação intercultural nos curricula dos alunos, envolvendo os professores. Foi o primeiro olhar sobre a questão migratória em Portugal, a presença de outros que não o cidadão português comum. Depois, a criação do Alto-Comissário. José Leitão foi o primeiro alto-comissário, creio que em 1996, 98. Depois, com a chegada da imigração de Leste vimos que havia um grande boom e houve necessidade de adaptar e alterar a Lei de Estrangeiros e a Lei da Nacionalidade. E em 2003 criou-se o Alto-Comissariado e não apenas o Alto-comissário. O Padre Vaz Pinto foi o segundo Alto-Comissário a seguir ao doutor José Leitão. Houve uma política para as migrações no Governo de Durão Barroso, salvo erro. E então há uma política para as migrações, um plano para as migrações, uma rede de centros locais de apoio ao emigrante, dos centros nacionais. E há uma primeira visão estratégica sobre a questão do acolhimento de imigrantes que vai depois até ao fim de 2013, 2014 e, que as coisas estão mais ou menos consolidadas.
Mas o volume de de imigrantes a chegar era muito, muito menor.
Muito menor. Chegámos ao meio milhão de pessoas. Agora parece que toda esta matéria, de alguma forma, se silenciou em favor da situação dos refugiados. E a explicação é muito simples. Quer dizer, nós tivemos vários acontecimentos políticos que acabaram por retirar o foco da questão das migrações. Mas houve um acontecimento que levou a uma alteração profunda que teve a ver com uma situação que hoje também está aqui no plano e que é muito importante. Tem a ver com um acontecimento de detenção administrativa de um imigrante. Num aeroporto, num Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) houve uma morte. Toda a gente conhece esta história e isso foi uma espécie de gota de água, digamos, na vida do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
Tornou inevitável a extinção do SEF?
Tornou inevitável. Enfim, a decisão foi política, mas é o que estava previsto também no Programa do Governo. Era uma separação das funções administrativas das funções policiais. O processo decorreu, como sabemos, com a criação da AIMA, mas não se resolveu. Na nossa perspetiva, não se resolveu ou não se conseguiu resolver da melhor forma porque todo o peso de falta de recursos, e a necessidade de reformar o modelo também de serviço tecnológico, do apoio administrativo que permitisse que a transição para o novo modelo corresse sem estrangulamentos. E isso, de facto, não aconteceu. E chegámos a esta situação.
Consegue conceber a ideia de, no médio prazo, pelo menos, já para não falar no longo prazo, a ideia de não ser um polícia a primeira pessoa que uma pessoa que procura trabalho em Portugal encontra quando chega a Portugal?
Sim. Há uma dimensão de segurança que deve estar presente na vida dos migrantes, mas as migrações não são um caso de polícia. São um caso, sobretudo de os Estados serem capazes de dar resposta administrativa e são um caso da sociedade estar envolvida no processo de acolhimento e integração. De haver capacidade de acolher e integrar as pessoas que procuram. No caso de Portugal, para viver. A polícia deve atuar e deve estar presente em situações de exploração. É preciso lembrar que, na maior parte das vezes, os migrantes são vítimas. São vítimas quando não há vias legais e seguras, capazes de dar resposta atempadamente. São vítimas quando muitas vezes optam ou são forçados a ir por via de redes que lucram brutalmente com a situação precária em que os migrantes se encontram, com a necessidade de encontrar as pessoas e procurarem melhores condições de vida. No caso dos migrantes económicos e no caso dos refugiados. Quando as pessoas, no desespero e na total fragilidade em que se encontram, não tiverem outras vias se não recorrerem a vias e a esquemas ilegais, aí deve haver uma dimensão de segurança e deve haver uma fiscalização apertada a não sobre os migrantes, mas sobre tudo aquilo que muitas vezes vive em torno das situações de incapacidade que os Estados criam quando não são capazes de criar vias suficientemente ágeis, fortes, claras, para que as pessoas consigam migrar em segurança. Depois há um aspeto também nos países de acolhimento que tem a ver com com a situação que as pessoas vivem, muitas vezes alvo de exploração no trabalho, de exploração no acesso à habitação, de discriminação, enfim, na vida social. Não posso aceitar que haja violência sobre migrantes, como temos vindo a ver, como se isso não fosse uma agressão contra todos nós. Os direitos dos migrantes são direitos humanos. Os direitos humanos são direitos de todos nós. Portanto, creio que a polícia ou qualquer força policial deve proteger os cidadãos e deve garantir que os direitos humanos são aplicados. Estamos desde 2006 presentes no único Centro de Instalação Temporária que há no país, fora dos aeroportos, que é a Unidade Habitacional de Santo António e a nossa relação é com a PSP. Para minha satisfação e devo dizê-lo, a PSP tem tido uma postura muito positiva e colaborante o JRS, mas também com os outros parceiros, com a OIM e com os Médicos do Mundo que fazem parte da parceria. No caso concreto na UHSA, o que reflete uma atitude construtiva e positiva. Sobretudo, não devemos olhar para os migrantes como se fossem criminosos, sobretudo aqueles que estão em situação irregular, porque aqueles estão em situação irregular ou indocumentado muitas vezes são aqueles que são mais vítimas e merecem mais proteção no sentido humano do termo. E, portanto, eu vejo a PSP no caso, ou a Polícia Judiciária, e qualquer força de segurança, como como forças de um Estado de Direito e, portanto, devem proteger e devem ter um olhar sobre os mais frágeis, não no sentido persecutório. Não devemos criar uma cultura securitária, mas uma cultura de segurança, que é bem diferente.
E como é que era a relação com o SEF?
Tinha com certeza aspetos muito positivos, devo dizê-lo. Nós tínhamos uma relação também muito longa com o SEF. Aliás, a nossa presença na Unidade Habitacional de Santo António deveu-se a uma colaboração com o SEF. Infelizmente, nós tentámos várias vezes estar presentes nos aeroportos, nos EECIT e infelizmente, também para o SEF, isso não foi executado. Porque eu acho que isso desprotegeu o SEF. Acho não, é uma evidência.
Percebeu por que razão é que nunca aconteceu?
Havia algum receio que num espaço como aquele pudesse causar alguma perturbação o facto de haver uma organização da sociedade civil ou uma organização não-governamental….não sei.
Continuam sem estar presentes nos aeroportos?
Nós gostávamos de estar presente porque faz parte da nossa missão, mas sabemos que estão neste momento presentes a OIM e os Médicos do Mundo. Nós gostávamos de estar presentes também. Aliás, replicando aquilo que é considerado internacionalmente uma boa prática. Desde logo quando foi criada a UHSA, no Porto. Gostávamos estar presente no sentido de podermos acompanhar as pessoas migrantes que ali se encontram. É preciso entender estas pessoas não cometeram nenhum crime, porque migrar irregularmente não é um crime, estar indocumentado não é um crime. É uma situação irregular. É uma situação em que o Estado deve proteger as pessoas, colocá-las à sua guarda. Esta é uma preocupação que nós aqui no Plano vemos e que, no fundo, temos e gostávamos e queremos continuar a trabalhar. E vamos com certeza ter ocasião de dialogar mais com o governo, no sentido de reforçar a presença nestes espaços. O plano prevê a criação de novos CIT, não é? Novos centros de instalação temporária de centros de detenção. Nós preconizamos e defendemos as alternativas à detenção, isto é, a detenção é uma medida administrativa. As pessoas ficam à guarda do Estado. Aliás, a lei prevê que a detenção seja a última rácio, isto é, a detenção só e só deve ser efetivada quando não há alternativas. Deve haver alternativas à detenção porque a privação de liberdade é muito impactante para a saúde mental das pessoas. É, no fundo, uma violência que fazemos perante as pessoas e acontece muitas vezes quando as pessoas não são retornadas, vamos dizer assim, quando não são devolvidas ao país de origem. Muitas vezes, quando vão para a rua, ficam em situação ainda mais desprotegida. Tem a ver também com a situação que as pessoas possam muitas vezes que o acompanhamento das pessoas deve ser feito num espaço que respeite a sua dignidade e que, se a pessoa não representa uma ameaça para o país - e de facto não representa, as pessoas que ali estão, não representam uma ameaça para o país e o Estado tem de saber onde é que as pessoas se encontram, é a sua responsabilidade - deve haver uma uma articulação entre a pessoa migrante e o Estado que o acolhe. Não representando uma ameaça, as pessoas devem ser acompanhadas de outra maneira que não seja a privação de liberdade.
