Só 140 pessoas em Portugal têm a mesma doença que Francisco. Uma história de solidão, luta e superação
Anemia, sangramento do nariz, inchaço em alguns órgãos. Os sintomas são comuns a várias doenças mas juntos podem ser um quebra-cabeças. Há mais de seis mil patologias raras conhecidas e os doentes ainda as vivem de forma solitária. No Dia Mundial das Doenças Raras, Francisco Carreiro conta na primeira pessoa a história de um longo caminho desde o diagnóstico.
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Pedala, pedala muito, com os pés a empurrar o atrito das dificuldades e a mente a despistar as dores adversárias. Mas nem sempre foi assim. Desde que tem memória, aos cinco ou seis anos, Francisco Carreiro sempre sentiu o impacto de uma doença silenciosa, da qual não conhecia o nome. No calendário de Gaucher, "inicialmente começaram a surgir sangramentos do nariz e anemias", sintomas que os médicos não conseguiam explicar com a alimentação.
"Fui crescendo, e, à medida que crescia, outros sintomas começaram a aparecer." Por altura da adolescência o cansaço era frequente. Na escola, Francisco Carreiro começou a sentir cada vez mais dificuldade no desempenho de atividades físicas, logo na primavera da vida, quando o que mais se deseja é "fazer o que os outros da mesma idade faziam". A acumulação de produtos ao nível das células, causada pela carência de certas enzimas, pela qual se caracteriza a doença de Gaucher, desencadeou o inchaço do baço e do fígado. As dores ósseas complicavam o quadro, e as anemias e os sangramentos eclipsavam a beleza dos dias, juntamente com "os hematomas" que apareciam com facilidade. Tal como Francisco, muitos não compreendiam os momentos de maior prostração. Nos dias piores, era-lhe quase impossível levantar-se da cama, e os esforços tinham de se agigantar à medida das limitações.
Os sintomas, comuns a muitas outras doenças, não facilitam a vida aos médicos na hora de traçar o diagnóstico de uma patologia rara. O caso de Francisco Carreiro não foi exceção. Os clínicos encetavam tentativas de terapia como se de outro problema se tratasse. "Muitas das doenças raras continuam a ter o grande problema do diagnóstico." Há quase quatro décadas tudo era, porém, muito mais difícil.
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Aos 19 anos, Francisco Carreiro foi brindado pela "sorte" de não haver em Ponta Delgada um hematologista. "Começou a vir cá o professor doutor Manuel Abecasis, que é uma referência a nível nacional e o pai dos transplantes de medula óssea. No seu início de carreira, começou a vir cá fazer umas consultas mensais." O encontro resultou na descoberta. Embora se tratasse de um problema raro, Manuel Abecasis seguiu a intuição científica que esteve na base do diagnóstico da doença hereditária e lisossomal de sobrecarga. O tratamento, no entanto, ainda estava por descobrir. A informação era parca e o Google ainda não existia. "Naquela altura, era uma incógnita", rememora o paciente, de 56 anos, que insiste no "diagnóstico precoce" como a melhor arma contra o avanço da enfermidade.
Há 140 pessoas diagnosticadas no país com a doença de Gaucher; é "raríssima". Sabe-se hoje que a patologia tem mais incidência nalguns locais e "especialmente em comunidades judaicas". Noutros lugares do mundo, o conhecimento era mais vasto, e Francisco Carreiro chegou a viajar para os Estados Unidos à procura de respostas. "Havia um diagnóstico, mas o que é isso? E agora? Imagine o que é uma pessoa saber que tem uma doença que não tem tratamento... A ansiedade que isso nos cria quanto ao que será o futuro. O que é que me vai acontecer? Como é que a doença vai progredir? O que é que eu posso esperar da vida, do meu futuro?"
Dos 19 anos aos 36, a vida seguiu sem interferência de um tratamento que apaziguasse a dor. "Esta não é uma doença que nos deixa incapacitados de um momento para o outro. É uma doença que vai paulatinamente, ao longo dos meses e dos anos, fazendo o seu trabalho." A medicação veio repor os níveis da enzima - que degrada os produtos do metabolismo celular mas que no organismo de Francisco Carreiro estava em falta - de uma forma sintética. As melhorias foram assinaláveis. "Costumo dizer que aí à volta dos 40 foi como se tivesse renascido para uma nova vida", enaltece.
O inchaço do baço tinha espoletado a destruição de muitas plaquetas, cujos níveis já se encontravam em números "perigosos". A remoção do órgão e a medicação atenuaram as dores ósseas e a fadiga. "A energia começou a surgir, e, depois dos 40, comecei a praticar atividade física intensa, e a fazer do exercício a minha forma de lutar contra a doença", atira.
A doença de Gaucher tem tratamento, mas não uma cura, e, apesar da leveza com que Francisco Carreiro a vai fintando, ainda "pesa a nível psicológico". Hoje diz-se um "felizardo", que leva uma "vida normal". Ao longo da vida, Francisco Carreiro nunca deixou que a doença o imobilizasse. Largou o ensino, a sua área de formação, e dedicou-se ao turismo. O que parecia uma impossibilidade no passado é agora uma realidade e uma "forma de luta": dedica-se à animação turística, sobretudo a passeios e percursos de bicicleta, enquanto guia pelas paisagens de Ponta Delgada.
"Não encaro o futuro com aquela incerteza com que encarava quando tinha 19 anos e me foi diagnosticada a doença", salienta. "Temos de lutar, temos sempre de lutar pela nossa saúde. Não podemos desistir." A mensagem de Francisco Carreiro, no Dia Mundial das Doenças Raras, é um eco de luz e "persistência" num túnel longo e solitário. "Somos raros, mas no conjunto não somos assim tão poucos", preconiza.
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