Sócrates: "Não há complexidade alguma em investigar o nada", diz juiz da Relação
José Reis votou contra a declaração de especial complexidade do processo. No projeto de acórdão, a que a TSF teve acesso, diz que o Ministério Público "não descreve um único indício factual susceptível de integrar os crimes de corrupção".
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"Não se pode justificar a excepcional complexidade com a indicação, de forma desgarrada e difusa, de uma enxurrada de factos (alguns de muito duvidosa relevância criminal) e a omissão de outros que são nucleares para permitirem estabelecer indiciariamente uma conexão aos primeiros", diz José Reis.
O relator do projeto de acórdão sobre o recurso interposto pela defesa de José Sócrates, que votou vencido, entende que "não existe matéria indiciária bastante" que justifique a declaração de especial complexidade da investigação e, consequentemente, diz o juiz, "não podem ser elevados os prazos de duração do inquérito, do segredo de justiça, nem de prisão preventiva".
Na transcrição a que a TSF teve acesso, e na qual são omitidos os factos imputados ao antigo primeiro-ministro, o juiz desembargador diz que "não se pode fazer um juízo fundamentado acerca da complexidade da investigação, sendo certo que não há complexidade alguma em investigar o nada, o vazio».
"No fundo, este tribunal fica sem saber o que, concretamente, com relevância criminal, se está a investigar", acrescenta.
José Reis baseia-se no requerimento do Ministério Publico, na transcrição do primeiro interrogatório a José Sócrates e nas escutas anexadas ao processo para concluir : "Em momento algum o recorrente (José Sócrates) foi confrontado com quaisquer factos ou indícios concretos susceptíveis de integrar o crime de corrupção".
Diz o juiz desembargador que o processo, que "parte da presunção de ocultação de fundos financeiros e transferências", se apresenta com "contornos difusos e desmasiado genéricos", sendo que "não é possível surpreender qualquer conexão objetiva entre a circulação daqueles fundos e os alegados e imputados crimes".
Em particular, adianta, os de "corrupção, ou seja, recebimento indevido de vantagens que, especulando, se poderiam estribar em contratos de adjudicação ao Grupo Lena" durante o período em que José Sócrates foi primeiro-ministro.
"Continua a faltar descrição indiciária objetiva do cimento da ligação", diz.
Na transcrição, o juiz refere que as provas são abundantes em relação a fluxos financeiros e descrição das respectivas operações, mas que, da acusação, não consta a descrição da origem dos fluxos de dinheiro.
O juiz afirma, por isso, que o quadro apresentado pelo Ministério Público é "manifestamente incompleto dada a total ausência de descrição de indícios factuais" que possam integrar o crime de corrupção e que, em todo o processo, o arguido só foi confrontado com factos que configuram o crime de branqueamento de capitais. "Esta é a realidade nua e crua", remata.
José Reis acrescenta ainda que também o branqueamento de capitais, crime pelo qual José Sócrates está indiciado, pressupõe uma infração principal e um crime precedente, pelo que carece de factos ou indícios que possam integrar o delito a montante.
No texto, José Reis recorre ainda a uma metáfora para descrever a atuação do Ministério Público em todo o processo: "a imagem do viajante que, perante a largueza da foz do rio com que se depara, não cuida de descrever, ainda que sinteticamente, o seu percurso desde a nascente, presumindo e dando como adquirido que o abundante caudal que vê diante de si teve origem em tortuosos e recônditos meandros que levaram à formação de tamanha massa de água que se precipitou, sem fundamento ou justificação naquela foz".
Segundo José Reis, os prazos do processo "devem contar-se pelo seu decurso normal", pelo que, no que diz respeito ao inquérito, iniciado em 19 de julho de 2013, deveria ter atingido o termo final em 18 de abril de 2015. Tal como o prazo de vigência do segredo de justiça.
O juiz acrescenta ainda que, quanto à prisão preventiva, iniciada a 24 de novembro de 2014, de acordo com o "prazo normal", deveria ter terminado a 23 de maio de 2015.
E deixa o aviso: "É indispensável produzir em fase de inquérito, me tempo útil, indícios factuais concretos e bastantes que permitam cumprir os objectivos da investigação, da descoberta da verdade material, dos implicados e respectivas condutas".
Na quarta-feira, o Tribunal da Relação de Lisboa recusou o recurso apresentado pela defesa de José Sócrates contra a declaração de especial complexidade do caso. A decisão terminou com vários meses de debate entre José Reis e a juíza desembargadora Laura Maurício. Para desempatar, foi chamada a votar a presidente da 3ª secção criminal da Relação de Lisboa, que votou ao lado de Laura Maurício pela recusa do recurso.