Cada vez mais, as tatuagens são uma opção para esconder marcas provocadas por problemas de saúde. Uma forma de recuperar a autoestima e sarar feridas.
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Vanessa Carvalho tinha 18 anos quando fez uma cirurgia de redução mamária. As dores de costas e os problemas que poderia vir a causar o excesso de peito levaram os médicos a tomar essa opção. Mas a cirurgia não correu bem. "Não foram só as cicatrizes. Os mamilos não estavam alinhados, fiquei com um peito maior que o outro, as cicatrizes não eram simétricas. Incomodava-me muito. O peito é uma coisa muito feminina e eu fiquei completamente desfigurada", conta.
Vanessa foi submetida a outras três cirurgias plásticas para tentar corrigir os erros da primeira. Operações dolorosas, que não resolveram tudo. "Supostamente numa redução mamária fica-se com algumas cicatrizes, mas não são tão grandes. Neste momento, tenho cicatrizes que vão de baixo de uma axila até à outra e também no meio do peito. Depois com o quelóide, nota-se mesmo muito. Ainda por cima, tive de andar com extensores para me puxarem a pele. Tudo isso leva a que tenha também uma grande cicatriz no meio do peito, acima da linha do decote."
Marcas que levavam à curiosidade dos outros e que não a deixavam confortável. Acima de tudo, com ela. "Como durante muitos anos me senti injustiçada por isto me ter acontecido... era uma coisa minha, que achava que era horrível e injusto", explica.
Foi em conversa com uma amiga tatuadora que percebeu que podia ter uma alternativa.
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As cicatrizes são o registo do que ninguém quer recordar
Susana Carromeu é tatuadora há 18 anos. No estúdio que tem, o Pirata Tattoo, em Sacavém, já atendeu muitas pessoas que procuram uma forma de lidar com uma marca do passado.
Cada caso é um caso e é preciso estudar bem todas as hipóteses. "Nós temos de avaliar a extensão da cicatriz, ver ao certo o que temos de cobrir. Há uma série de coisas que têm de ser avaliadas", explica. Os desenhos são feitos à medida para se moldarem às marcas que o cliente quer esconder. Por cima da pele danificada, Susana constrói uma peça de arte, que já não incomoda mostrar.
"A tatuagem foi algo que nós escolhemos, que fizemos por cima da cicatriz. Muitas vezes, consegue mesmo cobrir e disfarçar a cicatriz, embora o que se passa ali é até uma questão muito psicológica. Tornamos algo que nos entristece em algo belo, algo que vai fazer com que nos lembremos daquele momento da tatuagem, não do que passámos antes."
Susana mostra uma imagem de um trabalho que fez: dois braços tatuados, completamente tatuados. Depois, uma fotografia do antes: dezenas de cortes autoinfligidos. São frequentes os casos de pessoas que se magoaram si próprias. As cicatrizes são um registo do que não se querem lembrar.
"Fazem a tatuagem quase sempre depois de serem tratados. Porque ficam as marcas no corpo e as pessoas têm vergonha de as mostrar. Fazem tatuagens para camuflar aquelas cicatrizes e também, de certa forma, para tentar ao máximo mitigar a dor de estar todos os dias a olhar para aquela má recordação", conta Susana.
Más recordações que às vezes surgem de forma inesperada e transformam a vida de todos os dias. Como o caso de uma outra cliente, vítima de um AVC, que também encontrou na tatuagem uma forma de regressar à normalidade. "Ela tinha um lábio mais descaído e o que acabou por fazer foi preencher aquela zona para tentar disfarçar o problema."
E há também mulheres que, por causa do cancro da mama, fizeram mastectomias totais. Depois das cirurgias de reconstrução e da cicatrização, tatuar o mamilo devolve o aspeto de normalidade. Mas mesmo com a recomendação de alguns médicos, muitas ainda têm medo. "Não se querem submeter a mais um processo porque pensam que a tatuagem é algo estranho, que é doloroso. As pessoas não sabem ao certo como são feitas as tatuagens. E as pessoas de faixas etárias mais avançadas associam muito as lojas de tatuagens e as pessoas tatuadas à criminalidade."
Cicatrizar dores antigas
Uma simples tatuagem pode fazer muito pela autoestima da mulher, mas Susana reconhece que nem sempre é fácil. E tem um caso muito próximo. "Estou a tentar convencer a minha mãe. Mas ela passou por três operações horrendas só para conseguir ter um seio pequenino. Por enquanto, diz que não se sente preparada psicologicamente. Só lhe fiz as sobrancelhas porque era muito visível para as pessoas na rua e depois da quimioterapia não lhe voltaram a nascer."
Devolver normalidade, dignidade. Susana acredita que uma tatuagem pode sarar feridas e dar uma nova força. "Há muitas pessoas que sentem isso, estão mais próximas do que querem ser. E isso ainda é a única coisa sobre a qual temos controlo: o nosso corpo, a nossa pele."
Um controlo recuperado por Vanessa, quase 20 anos depois da cirurgia que lhe desfigurou uma parte do corpo. "Quando acabei a tatuagem comecei a chorar; e depois ela [Susana] também começou a chorar! Foi assim... um alívio! A maneira como a tatuagem ficou... É um rendilhado, muito feminino. Durante muitos anos, sentia-me feminina, mas faltava ali qualquer coisa."
Já não falta. A tatuagem cicatrizou uma história antiga. "Não tem comparação. A aceitação que tenho com o meu corpo agora é diferente. Não tenho nenhuma marca visível, já me esqueci dessa história, já não é uma coisa que tenho constantemente presente quando me olho ao espelho. Agora vejo algo bonito e esqueço-me daquele período infeliz. A tatuagem é muito bonita, tenho uma boa recordação, ainda por cima foi feita por uma amiga. Tudo isso é quentinho para o coração."