"Temos de ter capacidade de mola. Paragem não pode travar capacidade de resposta à retoma de produção da Autoeuropa"

Paulo Spranger/Global Imagens (arquivo)
É a ideia defendida pelo presidente da AFIA, José Couto, mesmo antes de saber do comunicado interno da Autoeuropa, que antecipou para o início do próximo mês o regresso à laboração.
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A antecipação da retoma da produção na Autoeuropa para o início de outubro está a ser reavaliada pela Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), que viu 30 das mais de 350 empresas que são suas associadas e fornecem a fábrica de Palmela a sofrer com o impacto da paragem forçada da produção do T-Roc.
O problema da inércia tem de ser resolvido, diz o presidente da AFIA, porque já houve empresas que dispensaram trabalhadores temporários, ou efetivaram lay-off para quadros, perspetivando nove semanas de paragem, e agora vão ter de inverter o processo para quatro semanas, com as consequências que tal acarreta em termos de custos.
José Couto afirma mesmo que não se retoma este tipo de atividade de um momento para o outro, o processo não é instantâneo. O setor mantém os contactos que tem vindo a fazer com o Governo neste âmbito porque há que repensar a retoma e avaliar consequências da redução e até paragem de algumas atividades que tinham começado na última segunda-feira.
No balanço da primeira semana de paragem da Autoeuropa, José Couto fala de um efeito dominó que afetou, pelo menos, três dezenas de empresas do setor da indústria de componentes - mais de cinco mil trabalhadores - sem ter ainda feito as contas ao número de colaboradores temporários entretanto dispensados.
Na entrevista "A Vida do Dinheiro", rubrica conjunta da TSF e Dinheiro Vivo emitida aos sábados, José Couto defende ainda que o recurso ao lay-off não é a melhor solução, tendo apontado outros caminhos num caderno de encargos com várias propostas já enviado aos ministro da Economia e do Trabalho. Sem querer adiantar medidas concretas, o líder da AFIA garante que a prioridade passa por evitar perder pessoas e travar falências.
Realça que é preciso garantir capacidades de alavancagem destas PME do setor dos componentes, porque quando a Autoeuropa retomar a atividade, elas têm de ter capacidade de resposta, só que, entretanto, pararam, dispensaram pessoal e é preciso inverter o processo para responder à retoma.
Quanto ao setor no seu todo, acredita que vai continuar a crescer acima dos 20%, face aos indicadores das vendas realizadas até este terceiro trimestre do ano.
Só no primeiro semestre, cerca de 70% das exportações portuguesas de componentes automóveis concentraram-se em cinco mercados - Espanha, Alemanha, França, Eslováquia e Reino Unido -, de novo à frente dos Estados Unidos da América.
José Couto vê as dificuldades como oportunidades e fala da constituição de um grupo de trabalho, após reunião com a administração da Autoeuropa, para estudar formas de a indústria portuguesa poder aumentar a quota de fornecimentos à fábrica de Palmela, tal como deseja.
Nesta entrevista, alerta ainda que nos próximos tempos, esta fileira pode sentir novos impactos em Portugal por ter como clientes várias construtoras na Europa, que também começa a sofrer com a paragem do fornecedor automóvel da Eslováquia afetado pelas cheias.
José Couto é presidente do Conselho de Administração da AFIA desde 2019 e membro do Conselho de Administração da Associação Europeia de Fornecedores Automóvel (CLEPA). Tem uma longa experiência em diversos setores industriais e em diversas associações há quase três décadas. Depois de se formar em Economia na Universidade de Coimbra, e com um MBA no ISCTE, agora representa o setor dos componentes que está a sentir o impacto da paragem de atividade na Autoeuropa.
Comecemos pela paragem da fábrica de Palmela, do grupo Volkswagen. Que impacto está a ter nas empresas vossas associadas, sendo que têm 300 empresas associadas, mas só um número muito reduzido delas é que são fabricantes para a Autoeuropa, mas ainda assim têm uma representação muito grande. Que impacto é que está a ter nessas empresas e que representação é essa?
O que acontece é que a indústria automóvel em Portugal, os fabricantes de indústria automóvel, de componentes para os automóveis, têm de facto uma expressão diminuta, achamos nós, na produção da Autoeuropa. Portanto, contribuímos com poucos componentes para a Autoeuropa. Mas no todo serão à volta de 30 empresas de fabricantes de componentes que entregam direta e indiretamente componentes para o T-Roc e, portanto, para a fabricação da Volkswagen. O impacto, mesmo assim, é significativo. Porquê? Porque estamos a falar de empresas que a paragem da Autoeuropa determina também a paragem destes fornecedores e, portanto, é uma situação em cadeia, estamos a falar num dominó. Temos, desde empresas que vão parar 100% até empresas que vão ter um efeito, um impacto na ordem dos 10% da sua produção. Hoje ter de parar é muito mau, mas ter um impacto de 20% em empresas de fabricação de componentes é também um impacto bastante negativo.
Estimamos que poderá haver cinco mil trabalhadores afetados. Não temos ainda a conta certa relativamente a trabalhadores que estavam contratados em regime de trabalho temporário porque há um mês a Volkswagen tinha uma expectativa de produção altíssima e, portanto, as empresas tiveram que contratar mais trabalhadores para responderem a essas necessidades, tiveram que lhes dar formação, capacitá-los para poder trabalhar nas linhas, sabendo que a indústria automóvel tem picos e baixos e, portanto, mais tarde esses trabalhadores provavelmente tínhamos que deixar de contar com eles, mas todo este esforço, um mês antes, ruiu no final de agosto e, portanto, teremos aqui, por certo, cinco mil trabalhadores afetados e falta-nos saber exatamente qual é o número final.
Mas penso que já esta semana avançou na imprensa que o impacto é importante, mas não é desastroso, o que é que isto significa?
Na AFIA temos dito várias vezes, e ao longo dos anos, que achamos que uma empresa como a Autoeuropa, que faturou no ano passado 3,7 mil milhões, é uma empresa de grande valor, tem no ranking das exportações portuguesas um lugar de grande relevo, mas a economia nacional, as empresas portuguesas mereciam contribuir mais para a Autoeuropa. Isto é, se as empresas portuguesas estivessem mais envolvidas com a Autoeuropa, provavelmente teríamos um valor acrescentado mais alto. E, portanto, quando eu digo que não é desastroso, é porque o efeito na produção, naquilo que é a atividade das 353 empresas que compõem o número de fabricantes, de componentes nacional, isto terá um efeito estimado entre 1.8% e 2% na faturação e, portanto, por isso é que não é desastroso. Mas, infelizmente, porque gostaríamos de estar muito mais envolvidos e ter empresas portuguesas muito mais envolvidas. Mas não é verdade que isto tenha só um efeito, só a Autoeuropa tenha um efeito sobre as empresas. Descobrimos agora que há outras construtoras, outros OEMs, outros construtores europeus que padecerão do mesmo problema que a Volkswagen. Provavelmente não irão parar, ou terão períodos mais curtos de paragem, mas vão ter diminuição da atividade. E, portanto, como a indústria portuguesa fornece 98% dos automóveis fabricados na Europa, num ou mais componentes, isto significa que vamos ter um efeito também indireto pela paragem desta fábrica que teve este desastre na Eslovénia. E, portanto, este efeito ultrapassará a Volkswagen, a Autoeuropa e terá aí outras fábricas afetadas. Por outro lado, estima-se que poderá haver 250 veículos, marcas, e produtos a ser afetados por esta paragem. Portanto, vamos ter, mais tarde ou mais cedo, o reflexo em Portugal.
Falou há pouco dos 5 mil trabalhadores afetados, mas quando diz afetados, é pelo despedimento ou em condições de lay-off?
Não, essa é outra questão. A primeira reação foi o que é que vamos fazer por uma paragem. A indústria automóvel está habituada a ter estes altos e baixos, e muitas vezes ouvimos dizer para uma semana por esta ou por aquela razão, enfim. Mas essas, já nos habituámos a integrar esses sobressaltos e essas incertezas. Agora, nove semanas é uma coisa que ultrapassa o normal e, portanto, a primeira coisa que é que os empresários, as empresas, pensam é como vamos resolver este problema. O que é que vamos fazer? Porque os custos de produção de dois meses parados são altíssimos e difíceis de integrar e, portanto, põe em causa a atividade da empresa agora.
E isso tem um impacto enorme nas exportações também?
Tem um impacto enorme nas exportações, mais pelo lado da Autoeuropa. Porquê? Porque a Autoeuropa vai deixar de produzir um número significativo de automóveis, que poderá andar entre 50 e 55 mil viaturas, o que significa que vamos deixar de exportar esses automóveis. Para a produção nacional, como eu disse, só a Autoeuropa, não estou a falar do resto da Europa, poderá ter um efeito de 1.8% ou 2%. Porquê? Porque temos pouca ligação em termos de entrega de componentes. Mas estava-lhe a dizer o que é que foi preciso pensar? A maior parte das empresas pensou logo no lay-off e, portanto, foi a paralisação porque vamos ter de parar duas semanas, vamos encontrar uma solução. E esta não é uma solução, é uma solução única que temos, rapidamente, mas não é a melhor solução, não é a solução ideal. O bom era poder fazer outras coisas com os trabalhadores e, nomeadamente, com os trabalhadores que contratámos há um mês, que lhe demos formação, que estavam integrados neste momento, que fazem parte do processo já, e que tivemos também de rescindir contratos com eles. E este é um trabalho que temos feito com o Ministério da Economia e com o Ministério do Trabalho, que se têm mostrado muito, muito entusiasmados e colaborativos na resolução, que é tentar encontrar uma solução para as empresas não entrarem em lay-off e não rescindirem contratos com os trabalhadores. E, portanto, temos feito um trabalho muito interessante, têm ouvido a AFIA, temos trabalhado em conjunto e têm aceitado discutir e participar em todo este processo.
As condições de lay-off das empresas ou aplicadas às várias empresas não são as mesmas?
Umas estão a 80%, outras a 30%. Mas isso, no final, significa sempre paragem, não é? E, portanto, um custo adicional para as empresas. Eu vou-lhe dar um exemplo só deste esforço que tem muitas vezes a ver com as questões dos recursos humanos. Quando foi do lay-off, estamos todos recordados, em 2020 e 2021, houve um grande esforço por parte das empresas não perderem trabalhadores. E aí temos de concordar que o lay-off simplificado foi um instrumento muito interessante para as empresas não despedirem... E o mesmo motivo que estava nessa altura é aquilo que está agora. A indústria não quer perder pessoas. A indústria não pode perder essas pessoas porque o custo, o investimento das pessoas, a formação, o nível de formação, de capacitação destas pessoas é altíssimo. E, repare, se nós prescindimos delas, muito rapidamente outras, porque estamos a viver numa situação em Portugal de não termos mão de obra para várias atividades, nomeadamente para a indústria, e, portanto, rapidamente são integradas de outras indústrias e este é um prejuízo enorme.
Os fabricantes portugueses para a indústria automóvel poderiam contribuir mais para a Europa do que contribuem hoje? Teriam essa capacidade?
Nós dizemos isso há muitos anos. Repare, por que é que o dizemos? Os fabricantes de indústria automóvel têm uma característica importante, é que não param, não param de procurar ser mais competitivos. O que é que isto traduz? Traduz que o aumento da faturação e das exportações tem aumentado sempre. Nós temos aumentado, até ao ano passado, nós temos aumentado mais ou menos, crescido, mais ou menos a uma taxa de crescimento médio anual de 6%. Quando a Europa não cresce em termos de veículos automóveis. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que, graças à nossa capacidade de sermos competitivos, de sermos, de inovarmos e de termos entrado, temos crescido não só nos nossos clientes, mas temos crescido também noutros clientes. E isto porque ninguém compra componentes de indústria automóvel se não verificar um conjunto de condições, ter qualidade, ser competitivo, ter bons recursos humanos, ter empresas equilibradas, ter uma pegada ambiental menor do que o normal para podermos integrar aquelas linhas, as linhas de montagem e, portanto, isto prova que nós somos capazes de servir a Volkswagen fora de Portugal.
E significa, antes de continuar, que a indústria neste momento tem de facto essa capacidade de resposta se lhe fosse pedido um reforço, por exemplo, já para amanhã?
Não. Quer dizer, se me disser assim, tem de fazer aquela componente amanhã que está em falta? Não. Porquê? Porque todos nós andamos em automóveis que são homologados, homologados em muitos aspetos, nomeadamente na questão da segurança e, portanto, não podemos ir fazer, isto não é ter uma componente, não é ir ao supermercado e buscar aquela componente, é preciso que a componente tenha um conjunto de características técnicas e de segurança, o que implica um processo de fabricação de alguma complexidade. Portanto, eu posso dizer assim, bom, mas aquela peça pode fazer-se em Portugal? Sem arriscar muito, diria assim, claro que pode, mas pode fazê-la amanhã? Não. E, portanto, quanto tempo é que demora a fazer uma peça, homologá-la e fazer com que esteja compatível com os níveis de exigência e certificação necessárias? Bom, isso não sei, mas pelo menos seis meses serão necessários. Portanto, não é possível ir ao mercado e comprar uma peça dessas. Mas estamos capacitados, a indústria está capacitada para produzir, para a maior parte dos automóveis que são produzidos na Europa, provavelmente também estará capacitada para produzir para outros mercados. Mas isso é um processo que vamos trabalhar com a Autoeuropa, fomos capazes de encontrar também um caminho para trabalharmos em conjunto.
A Autoeuropa tem interesse que estas empresas, no vosso caso, no universo de 350 empresas neste setor, que possa contribuir mais para a produção destes automóveis aqui?
Eu acho que, uma coisa é a Volkswagen onde se decide. E outra é uma empresa instalada em Portugal. Isso faz parte do processo de organização da maior parte dos OEMs. Há lugares de produção e há lugares onde se decide este tipo de coisa. Para integrarmos um processo de um produto, um automóvel, demora-se pelo menos três anos. O que significa que se eu hoje pensar um automóvel, hoje um produto, tenho um processo de três anos para integrar, para perceber quais são os componentes, quem são os fornecedores, onde vou comprar, onde não vou comprar. Portanto, esse processo é um processo que começa hoje para daqui a três anos ter o seu fruto. Portanto, dizer assim, vou entrar neste processo é de alguma complexidade.
E, portanto, a Autoeuropa em Portugal, as empresas são consultadas para isso?
Em alguns casos são, mas em muito poucos. Esse trabalho foi feito pela AFIA para tentarmos perceber porquê... Há uma das coisas que é importante é dizer qual é a razão por que estamos fora. E, portanto, isso é... ninguém gosta de perder, não é? E, portanto, se em vez de me comprar a mim comprar ao meu vizinho, vou querer perceber porque é que o meu vizinho foi melhor que eu. E, portanto, este é um processo também de aprendizagem e de aprendermos a ser mais competitivos. Nalguns casos fomos preteridos por questões, provavelmente técnicas, noutros casos por questões de preço, e noutros casos por questões de localização e de terem um conhecimento sobre a empresa. E, portanto, há muitas razões para isso. Agora nós estamos prontos a dar a conhecer os potenciais que a indústria portuguesa tem, que estas empresas têm, darmos a conhecer esse potencial para podermos estar dispostos e para podermos fazer parte do grupo de empresas, do grupo fornecedor que contribui. Portanto, nós, a indústria portuguesa fatura, abastece linhas de produção da Volkswagen. Portanto, não é... Na Europa, nós não nos queixamos de não sermos, de não trabalharmos para a Volkswagen na Europa. Queixamos, entre aspas, lamentamos por não poder ser mais, não contribuir mais para este automóvel. Achamos que se temos condições para fornecer outras OEMs e a Volkswagen, OEMs é... Construtores. Portanto, temos, também estaremos em condições para isso e nesse campo estamos em sintonia para oferecer os nossos préstimos e fazemos um trabalho em conjunto para isso.
Falou de efeitos negativos já desta paragem na rota de crescimento das vendas do setor. Adivinha-se que possa despoletar uma crise social em torno das famílias afetadas, nomeadamente dos que já falou?
Se nós não encontrarmos uma solução para passarmos do lay-off para outra situação, alguém que tem um rendimento e que de repente lhe tiram 30% no mínimo, não é?
Mas essa situação está a ser acautelada nos encontros que têm tido com o Governo?
O que está em cima da mesa neste momento, do lado da AFIA, é não queremos perder os trabalhadores, não queremos perder competências, porque, repare, se nós perdermos competências neste momento, temos um problema do arranque. Daqui a dois meses, a Autoeuropa vai ter peças, dois meses se tudo correr, como planeado. E, portanto, se tivermos nesse dia, eles vão pôr uma ordem de produção e nós temos de estar em condições para fornecer. Nessa altura a Volkswagen não quer saber o que é que aconteceu, quer ter peças, peças para montar automóveis. E, portanto, nós temos de estar em condições para fazer. E não podemos dizer que agora não pode ser porque não tem trabalhadores.
Portanto, os despedimentos não interessam a ninguém nesta situação?
O lay-off é o que possibilita que esses trabalhadores, assim que a produção iniciar, possam... Mantê-los na empresa, com perda de rendimento, mantê-los na empresa. Mas há trabalhadores que provavelmente serão assediados por outras empresas para poder partir, para trabalhar nos outros lados. E nós sabemos que os nossos trabalhadores são muito cobiçados, procurados por outro tipo de indústrias, têm um nível de formação e de competências alto e, portanto, ainda bem que é são reconhecidas essas qualificações. E a segunda questão é que o Ministério da Economia e o Ministério do Trabalho também identificam a questão da perda de capacidade de mola para podermos, na altura, responder. Repare, há empresas portuguesas que também são únicos fornecedores da Autoeuropa. E, portanto, aquilo que aconteceu com esta empresa europeia podia acontecer com uma empresa portuguesa, e uma empresa portuguesa pode parar também a Autoeuropa.
Mas há situações de falência declaradas já?
Que nós conheçamos? Não. E estamos a trabalhar também na perspetiva de encontrar meios que assegurem, do ponto de vista da tesouraria, a manutenção da atividade. Obviamente que isto tem um custo acrescido para as empresas, ninguém vai ter acesso ao dinheiro sem que isso tenha um custo. Mas é melhor ter esse custo do que, de um momento para o outro, poder faltar...
E o Governo está a esse nível para apoiar alguma dessas...
O Governo tem-se mostrado disponível para ajudar, para encontrar soluções que possam apoiar as empresas, quer no ponto de vista da tesouraria, daquilo que é imediato, e, portanto, para empresas que não vão trabalhar, que param mesmo, isto é um desastre. Para empresas que têm 20% ou 25%, ou 30%, também representa um problema. É que a indústria automóvel é uma indústria em que o investimento é uma forma de estar. Ninguém pode estar na indústria automóvel sem ter níveis de investimento altos. Por duas razões. A primeira é porque é preciso fazer, sistematicamente, processos de incremento de tecnologia, de manutenção da tecnologia em níveis altos, porque estamos a falar de termos de responder a desafios permanentes de todos os processos. E agora temos também um novo desafio, que é termos de baixar os níveis de apegada ambiental, e, portanto, temos de baixar, ter uma atenção muito forte relativamente ao ambiente. Hoje uma empresa para continuar a ser competitiva em termos da indústria automóvel tem de provar ao seu cliente que tem uma apegada ambiental que interessa ao cliente. Porquê? Porque a soma de todos, de todos os registos do ponto de vista ambiental, estarão um dia destes a ser apresentados ao seu cliente, ao consumidor final, a dizer, desde que nasceu este carro até agora a apegada ambiental é X, e é mais baixa do que aquele que está ao lado. E, portanto, esse vai ser um argumento também de venda para os novos consumidores. E o segundo é a questão da digitalização. Portanto, estamos a falar de duas coisas, que são, um, que é um investimento normal, e repare que a indústria automóvel, uma empresa média em Portugal, investe mais ou menos por ano um valor acima de dois milhões de euros, e, portanto, de processo normal de investimento. Com este novo desafio os investimentos aumentaram bastante. E, portanto, não tendo, baixando o cash flow, temos um problema de tesouraria.
Esse e outros assuntos, o que é que vai estar em cima da mesa na próxima reunião com o Governo, uma vez que penso que na segunda-feira está agendada uma nova reunião com a ministra do Trabalho?
Os nossos temas hoje são como vamos resolver... A prioridade é de saber como é, não perder trabalhadores, sejam trabalhadores que estejam nas empresas, que hoje façam parte do quarto das empresas, e trabalhadores que estejam em trabalho temporário. Essa é a prioridade. A prioridade é não perder trabalhadores. A segunda é termos de fazer face, do ponto de vista financeiro, a este desastre. E, portanto, muitas empresas estão perante um problema grave. Porquê? Porque estão a pagar, por exemplo, investimento, despesas de investimento, mas também estão a pagar empréstimos que foram, ajudas que foram no tempo da Covid e que estão neste momento a ser, a aparecer, a cair nas contas das empresas. Portanto, temos um volume de responsabilidades, também por causa da Covid, que aumentou e que ajudou as empresas, manifestamente, não temos de o esconder, mas que agora, nesta fase em que estavam as empresas, estavam num ramp up de conseguir resolver problemas...
E quantas são do universo das 350?
Numa primeira fase, nós dizíamos que são 30 fornecedores da Autoeuropa, no máximo, teremos 30 empresas afetadas, mas não é verdade. Porquê? Porque agora descobrimos que há empresas que vão ser afetadas, por o facto desta paragem, na Europa, vão ser afetadas porque são 255 veículos, em vez de ter 150 mil veículos. E, portanto, havia empresas que não tinham ainda percebido que os seus clientes iam parar.
É o tal efeito dominó que falava há pouco, não é?
Sim.
Nestas conversas com o Governo e na próxima reunião com a ministra do Trabalho, esperam encerrar o processo por aqui ou há expectativa de continuação das negociações para que aquilo que são hoje as vossas preocupações sejam atendidas também pelo Governo?
Eu acho que o processo em que nós estamos é um processo muito dinâmico e nós conseguimos passar também esta informação ao Governo, esta sensação é que o que tiver de ser feito já, porque se fizermos daqui a duas semanas, provavelmente já não chegará a tempo. Portanto, é preciso acelerar este processo de forma a podermos ter uma resposta capaz de resolver e reportada há duas semanas, porque isto aconteceu há duas semanas. Se eu estiver à espera de que uma linha de financiamento vinda pelo Banco de Fomento Nacional, que chegue às empresas e que alguém vá pensar que isto só esteja daqui a um mês, um mês e meio, provavelmente isso não tem sentido para nós.
Por outro lado, haverá a possibilidade de antecipação da normalização do fluxo da cadeia de abastecimento? Acha que isso é uma hipótese?
Eu acho que a informação que temos da Volkswagen é que o prazo de nove semanas se mantém. Se melhorarmos, repare, se melhorar para nós uma semana ou duas semanas é um dado muito, muito, muito importante. Estamos a falar de um esforço completamente diferente. Essa é a informação que temos. Também, a segunda questão, que está ligada a esta, é será que vamos recuperar alguma coisa quando estivermos a produzir, vamos aumentar a produção de maneira a podermos recuperar a produção de veículos, a exportação e, portanto, a chegada ao mercado? Logo veremos. A ideia é que possivelmente a Autoeuropa estará no limite também da sua produção em termos de exportação.
Ou seja, não é possível aumentar essa produção para compensar a sua produção?
É aquilo que eu tenho, acho que não haverá um aumento significativo. Repare que este é o automóvel estrela da Volkswagen, é o automóvel que mais vende e, portanto, estamos sempre no limite da produção.
E os contactos que têm feito com a administração da Volkswagen, da Autoeuropa neste caso?
Nós tivemos uma reunião com a Autoeuropa, com o patrocínio do Sr. Ministro da Economia e onde tivemos um feedback muito interessante sobre as condições atuais, o que acontece, enfim, da preocupação da Autoeuropa, mas também da nossa preocupação de podermos, de querermos, já agora que estamos nessa situação, vale a pena também pensar porquê não estarmos mais na Autoeuropa. E, portanto, enfim, tivemos um... Temos tido este trabalho e foi construído um grupo de trabalho para continuarmos a trabalhar.
E acha que teria sido possível evitar uma situação como esta? Ou de todo não seria possível?
A indústria automóvel tem um processo de verificação e de vigilância dos seus fornecedores muito competente. As indústrias de componentes são, quer sejam, fornecedores primeiros linha, segunda linha, são sistematicamente vigiadas, são vigiadas como? Das suas condições técnicas, tecnológicas, da manutenção, são vigiados do ponto de vista financeiro, isto é, uma empresa que não seja competente em termos financeiros não pode estar na linha, na cadeia de produção da indústria automóvel. Isto significa que todos os construtores vigiam os seus fornecedores primeiros linha e esses passam a essa responsabilidade. Portanto, para ser fornecedor da indústria automóvel tem de ter uma certificação, que é uma certificação referencial e, portanto, que é uma certificação que vai haver desde as questões da qualidade à questão financeira e da responsabilidade social. E, portanto, é preciso também perceber se eu estou bem com a minha envolvente, se estou bem com os meus trabalhadores, com as famílias dos trabalhadores, enfim, com o sítio onde estou localizado. E, portanto, é uma avaliação muito transversal e muito intensa. Ora, a Volkswagen terá provavelmente... é de facto uma prática, terá feito isto com o seu fornecedor. Agora, há uma coisa que é importante, é que isto é uma calamidade em termos... o que aconteceu é um fenómeno, é um evento que não é... que ninguém detetou... Aquilo que está na origem, no fundo... E podemos ter aqui em Portugal, repare, pode acontecer, uma empresa desta onde choveu, de outro dia, um metro de altura de água, teve um metro de altura de água num local onde não era normal chover tanto. Imagino que estava lá uma fábrica destas. Portanto, estes acontecimentos hoje podem surgir e não é... A questão não é dizer assim, não, mas houve pouco cuidado em não ter um backup para esta empresa. Enfim, há casos onde é possível ter isso, mas não é um caso único e não é a prática da Volkswagen. Esta prática é uma prática de muitos construtores.
Às vezes é pouco previsível conseguir antecipar a mitigação deste tipo de...
Mas vai haver mais, não é? Teremos de perceber que vai haver mais casos destes.
Mais um motivo para, por exemplo, nos grupos de trabalho que falou com a Autoeuropa, estas questões e outras, nomeadamente em termos de hipóteses de novos investimentos, vão ser abordadas, estão a ser abordadas, estão a ser perspetivadas?
Repare, cada vez que alguém chega a uma fábrica, chega a um produtor de componentes e diz tem aqui esta peça para produzir, diga-me lá o que é que pensa sobre esta peça, se é capaz, se ela está como está, é fazível... Vamos ver, pensar como é que vamos fazer. E isso significa muitas vezes, ou a maior parte das vezes, investimentos. Significa comprar equipamentos novos, formar novas pessoas, estabelecer um novo procedimento. O investimento está sempre. É muito raro que alguém consiga fazer com os meios internos uma nova componente sem pôr investimento.
Falou-nos desses desafios, mas há também um desafio do futuro e que já se vem assistindo em muitas fábricas e a própria Autoeuropa também se está a preparar para isso que tem a ver com a eletrificação do mundo automóvel. Vocês têm discutido isso com a Autoeuropa até como uma preocupação de poderem vir a ser fornecedores de novas peças e até nessa perspetiva do investimento e da formação que têm de dar a todas as empresas ou a todos os trabalhadores das empresas?
Nós não discutimos isso com a Autoeuropa. Nós apresentamos isso com humildade para todos os nossos clientes. Portanto, primeiro, como disse há bocado, a parte da digitalização e da robotização é incontrolável e, portanto, isso faz parte, é básico. Mas, repare, nós estamos a crescer a 20% ao ano este ano. Este ano, a produção, as vendas da indústria automóvel das componentes em Portugal têm crescido a 20%. O que significa que estamos em novos modelos que estão a ser produzidos, quer nos antigos, quer nos novos modelos. Mas basicamente estamos a crescer em novos modelos. E, portanto, para estar a responder aos modelos há uma componente do novo produto, que é um produto que não tem só a ver com a parte de eletrificação, tem a ver com um novo produto que tem a ver com a inteligência artificial nos veículos, novas componentes, novos materiais e, portanto, é muito... Nós não temos a perceção, mas o veículo que foi produzido há cinco anos provavelmente é muito diferente daquilo que temos hoje. Porque nós, para quem ainda sentado ao volante, às vezes não nota esta diferença. Mas há grandes diferenças. E, portanto, nós, esta discussão é uma discussão que fazemos todos os dias entre nós. Porquê? Porque quando o cliente vem ter connosco, não vem perguntar o que é que eu penso do futuro. Vem-me dizer assim, você é capaz de fazer isto? E, portanto, eu tenho de dizer que sou capaz e tenho competências internas para fazer. Nós desenvolvemos há muito pouco tempo uma coisa que é o Projeto PAH, que é um projeto que tem a ver com as agendas mobilizadoras, tem a ver com o que foi um veículo automóvel, que construímos um veículo que é um conceito. Quer dizer, nós somos capazes de responder ao futuro. Somos capazes de dizer que o futuro vai ter novas peças, com novas tecnologias, com novos materiais, que vai desde a estrutura ao software e nós somos capazes de produzir.
Esse é o papel da AFIA, é isso?
Não, o papel da AFIA é mediar este processo entre os construtores e com os clientes e mostrar que... O papel da AFIA é uma associação empresarial que tem muito mais interesse em mostrar as vantagens da indústria em termos internacionais do que propriamente estar a discutir questões mais nacionais ou básicas. Básicas no sentido de que estamos a discutir se aquela política é certa ou não é certa. Enfim, a nossa preocupação é estarmos integrados nesta rede europeia que tem a ver com... Que é uma rede europeia fortíssima, porque estamos a falar de um milhão de trabalhadores com muita importância no PIB de todos os países europeus em que tem uma... Que é um sponsor das universidades e das europeias e que financia a área de investigação e desenvolvimento da Europa e, portanto, é um setor de grande importância e que, de repente, ultrapassou os seus limites. Isto é, hoje a mobilidade não é só o automóvel. Hoje a mobilidade passou por isso. E, portanto, só a ligação, por exemplo, àquilo que é o software, àquilo que é a programação, à inteligência artificial, ultrapassou aquilo que era a normal fronteira da indústria automóvel. Repare, por exemplo, as empresas que vêm para Portugal os centros de desenvolvimento e investigação e desenvolvimento que estão instalados em Portugal. Temos hoje sete centros de investigação e desenvolvimento em Portugal da indústria do automóvel que vai desde a BMW, com uma parceria com a Critical Software, enfim, tem tudo que tiver no futuro ligado à BMW, a inteligência artificial, será desenvolvida em Portugal. Mas temos a Mercedes, temos empresas chinesas, enfim, temos um conjunto de empresas que reconhecem a capacidade em Portugal também da nossa engenharia e da qualificação dos nossos técnicos, mas que, portanto, a nossa preocupação é fazer a trade-off entre aquilo que se faz nas universidades e passá-los para as empresas e aí, sim, é o PRR, é verdade, que também ajudou este processo.
Falou de futuro, tecnologia, de rapidez, de mudança, há este perigo de, na espuma dos dias, a tecnologia substituir a mão da obra humana? Tem acautelado esta questão?
Sim, hoje, este processo das linhas de montagem, da automatização e da intensidade, no caso da indústria automóvel, nós somos intensivos em capital. A intensidade e a mão da obra é uma coisa que nós já abandonámos há algum tempo porque se quisermos estar nas cadeias de valor e neste processo, temos de vencer pela tecnologia, temos de ser competitivos a trazer a tecnologia. E, portanto, a questão é que temos 63 mil trabalhadores a trabalhar na indústria automóvel, há 350 empresas que têm 63 mil trabalhadores a trabalhar. E o nível de qualificação dos nossos trabalhadores é muito mais alto do que o normal porque há uma necessidade permanente da formação, a capacitação dos trabalhadores.
E há uma ameaça da fuga.
E é evidente que se tivermos uma empresa ali ao lado que reconheça estas capacidades provavelmente vem buscar pessoas. E, portanto, esta necessidade da permanente formação é importante. E não se tem demonstrado que nós temos diminuído o número de trabalhadores no sentido de que provavelmente há tarefas que serão substituídas, mas temos de criar também outras, outros trabalhos, outras necessidades internas para novos trabalhadores. E isso é... Repare, nós aumentamos a produtividade, a produtividade da indústria automóvel tem aumentado e está claramente acima do que é a indústria transformadora em Portugal. Nós temos produtividades na ordem dos 20, 22% acima do resto da indústria transformadora. E, portanto, a tecnologia, a formação, a capacidade de resposta é um must e faz parte disto, mas, ao mesmo tempo, não temos libertado pessoas. Temos mantido esse nível de pessoas, portanto temos é hoje outras funções entre aspas, outras profissões para esses trabalhadores.
Ia-lhe perguntar isso, tem falado da questão da oportunidade. Acredita mesmo que todas as dificuldades geram oportunidades?
Acredito seriamente nisso. Acredito porque acho que... E repare, nem é a palavra resiliência, mas é a parte... A indústria automóvel tem demonstrado esta capacidade de se reinventar. Se nos reinventarmos. Porque há bem pouco tempo eu dizia, estava muito preocupado em saber se tínhamos capacidade para estar no novo produto do automóvel. Saber se éramos capazes de responder aos desafios do novo produto. E o que é verdade é que esta resposta do crescimento das exportações e das vendas em Portugal... No ano passado crescemos para 13 BI de faturação. 350 empresas. E tivemos 13 BI de valor acrescentado. O que representou? Um aumento de 14% nas vendas. Foi o recorde. E este ano estamos a dois dígitos.
Já incorporando este impacto negativo?
Bom, mas porque é que fazemos isto? Tem de ser porque somos competitivos. Porque demonstramos esta capacidade de estar com os clientes e de sermos capazes de dar resposta aos clientes. Portanto, esta é a melhor resposta para dizer se somos capazes de ultrapassar estas dificuldades.