Tenho mesmo de pagar por um serviço que não vou usar por causa da Covid-19?
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A palavra-chave é "bom senso". Nem os serviços têm culpa de se ver obrigados a fechar, nem os consumidores têm culpa de ficar fechados em casa. Por isso, na altura de desembolsar dinheiro por serviços que a pandemia de Covid-19 está a comprometer, é preciso avaliar caso a caso.
Em declarações à TSF, a jurista da Deco - Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor Carolina Gouveia explica quando é que os consumidores têm margem negocial e quando se podem mesmo ver obrigados a pagar um serviço que não vão usufruir.
IPSS e escolas privadas
Entre as centenas chamadas que a Deco tem recebido, as mensalidades de escolas e creches estão entre os que motivam mais dúvidas dos consumidores.
Carolina Gouveia lembra que é preciso distinguir entre as instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e as escolas privadas. No caso das primeiras, "os encarregados de educação pagam apenas a comparticipação familiar. O restante do valor da mensalidade é assegurado por apoios da segurança social".
Para o valor correspondente à comparticipação familiar, foi publicada uma portaria do Governo a recomendar um desconto de pelo menos 10%, ficando a cargo das instituições avaliar a possibilidade de fazer um desconto superior.
No caso das escolas privadas os contratos são anuais, pelo que os preços abrangem a totalidade do ano letivo.
"Temos que nos lembrar que estamos perante circunstâncias muito extraordinárias, que nem as escolas fecharam por sua vontade, nem os pais estão com as crianças em casa por sua vontade." Por isso, têm de ser encontradas "soluções de acordo entre as duas partes e de bom senso".
Os custos fixos terão sempre de ser pagos, mas a Deco entende que todos os serviços extra face ao valor da mensalidade não devem ser cobrados. Ou seja, os serviços que não podem ser prestados, como o transporte, a alimentação, as fraldas, as atividades extracurriculares. "Estamos a passar essa recomendação às famílias e às instituições de ensino", diz Carolina Gouveia.
"Relativamente ao valor de mensalidade, entendemos que as instituições devem apresentar um desconto". Os pais são aconselhados a falar com as escolas sobre o valor a abater e as instituições aconselhadas a ser transparentes.
"Se a escola diz que só faz um desconto de 5%, as famílias têm o direito de questionar", considera a jurista da Deco. Por seu lado, as escolas devem apresentar contas e justificar as suas decisões junto dos encarregados de educação para defender "que a solução apresentada é justa".
Quando os serviços podem continuar a ser prestados à distância, no caso de aulas e atividades extracurriculares a partir do ensino básico, por exemplo, o desconto pode ser inferior, lembra a Deco.
No caso de famílias que passaram a ter dificuldades económicas devido à Covid-19, em que um ou mais membros do agregado familiar ficaram desempregados ou viram reduzido o seu salário, esse constrangimento deve ser exposto à escola.
"Em último caso, pode ponderar-se o cancelamento do contrato com a escola", lembrando que o aluno pode sair prejudicado e perder tudo o que alcançou até aqui no ano letivo.
"Esta crise vai passar", lembra Carolina Gouveia e "depois vamos precisar que as escolas se mantenham abertas", especialmente as creches, onde a falta de vagas é um problema.
Universidades e politécnicos
A Assembleia da República aprovou recentemente um um projeto-lei do PAN que determina que as instituições de ensino superior devem assegurar o ensino à distância durante o atual período de contenção da pandemia de Covid-19, mas, caso não seja possível, deverão reajustar o valor das propinas.
O Governo, em articulação com as universidades e politécnicos, tem até ao final do mês para adaptar "os prazos para pagamento das propinas em conformidade com a evolução da crise sanitária", define o diploma.
A Deco diz ter conhecimento de que "a grande maioria das universidades está a tentar flexibilizar ao máximo os pagamentos das propinas, tentando criar mensalidades mais reduzidas e espaçadas no tempo para que as famílias consigam manter os pagamentos."
É o caso, por exemplo, do Instituto Politécnico de Setúbal, que prolongou o prazo para pagamento das propinas e da Universidade da Madeira que anunciou um período de carência de dois meses para o pagamento.
Os estudantes têm de continuar a pagar, mas são aconselhados a entrar em contacto com a sua universidade ou politécnico para perceber como será feito o ensino à distância ou se haverá apoios para pagar as propinas.
Ginásios
No caso dos ginásios, todos encerrados devido à pandemia, a Deco entende que o consumidor tem o direito de cancelar o contrato se assim o desejar, independentemente da fidelização. Outra opção é aceitar as alternativas apresentadas.
Há ginásios que estão a propor uma suspensão dos pagamentos por tempo indeterminado, que estão a oferecer descontos nas mensalidades caso o sócio opte por continuar a pagar, outros ainda que propõe planos de treino em casa ou aulas à distância pagas.
Avenças de estacionamento
Como os parques de estacionamento continuam abertos, se o consumidor não os estiver a usar pode ser mais difícil recuperar o dinheiro pago por uma avença mensal ou anual ou mesmo cancelar o contrato. "O ideal é entrar em contacto com a entidade, explicar a situação e propor um desconto", aconselha Carolina Gouveia.
Em caso de cancelamento, nada garante que, perdendo o lugar de estacionamento, que este possa ser recuperado quando terminar o período de confinamento, lembra Carolina Gouveia.
Ao contrário dos ginásios - em que o local onde o serviço é prestado está encerrado, nos casos em que o consumidor não pode usufruir de um serviço apesar de este continuar disponível pode ser mais difícil negociar, admite a jurista Deco.
Seja em que setor for a subscrição em causa, "se o serviço está a ser disponibilizado é uma coisa, se o serviço não pode de todo ser restado a situação é diferente"
Além disso, qualquer situação deve ser analisado o contrato, uma vez que "pode haver uma cláusula que preveja uma situação similar à que estamos a viver ou até que diga que se pode cancelar o contrato nesta altura".
Festivais de verão e concertos
Com milhares de espetáculos ao vivo cancelados desde o início do ano, o decreto-Lei nº10-I/2020, estabelece que "o cancelamento do espetáculo dá lugar à restituição do preço dos bilhetes de ingresso já vendidos" no prazo máximo de 60 dias úteis após o anúncio do cancelamento e "não deverá ter custos acrescidos para o consumidor final".
Por outro lado, se for marcada uma nova data para o evento, o consumidor não poderá pedir o reembolso do valor do bilhete. Com uma ressalva: o espetáculo tem de ocorrer no prazo máximo de um ano após a data inicialmente prevista.
No caso de espetáculos reagendados que passem a ser realizados noutro local, essa alteração "fica limitada à cidade, área metropolitana ou a um raio de 50 km relativamente à localização inicialmente prevista", caso contrário, é permitido pedir reembolso do bilhete.
No caso dos festivais de verão adiados, mas em que sejam anunciadas alterações ao cartaz, passam a aplicar-se as regras do regime geral dos espetáculos , onde se pode ler que o promotor é obrigado a restituir os espectadores a importância correspondente ao preço dos bilhetes em caso de "substituição do programa ou de artistas principais."
Viagens
Ninguém arrisca fazer reservas para o verão e a Deco já não recebe tantas chamadas na linha do viajante, lançada em março para ajudar quem tinha férias marcadas e não as pode realizar devido à pandemia de Covid-19, nota Carlina Gouveia.
Foram registados até ao momento 5.260 pedidos de informação sobre viagens através do número 213 710 282 e, antes da Páscoa, esta linha chegou a receber entre 500 a 600 chamadas por dia.
No início de abril, o coordenador do departamento jurídico e económico da deco explicou à TSF que quem tem férias organizadas por uma agência de viagens está mais protegido: o cancelamento da viagem dá direito ao reembolso integral do valor que foi pago. "A agência pode sempre oferecer uma alternativa, mas o consumidor não é obrigado a aceitar".
Mais difícil é a situação de quem marcou a viagem e o alojamento por conta própria. Paulo Fonseca assume que, sobretudo nas reservas de alojamento, muitos consumidores acabam mesmo por sair prejudicados.
Neste caso valem "as regras contratuais de cancelamento" de estabelecimento, o que torna mais difícil cancelar, obter uma alternativa ou reembolso. "Muito poucos" consumidores conseguiram fazê-lo, lamenta Paulo Fonseca.
Nos casos que os processos não são resolvidos a bem, Paulo Fonseca recomenda que se apresente uma reclamação ao provedor do cliente das agências de viagem e turismo.
"Se o consumidor tiver um conflito e tiver razão a agência poderá ficar condenada a pagar" pelo provedor das agências de viagens e turismo, por uma comissão arbitral do Turismo de Portugal ou um mecanismo de resolução de litígios alternativos, nota o responsável da Deco.
Caso a agência não aceite pagar de forma voluntária, ainda pode ser acionado um fundo para garantir o pagamento do montante devido ao consumidor.
Rendas comerciais
E os estabelecimentos comerciais encerrados que operem em imóveis arrendados? Poderão deixar de pagar rendas ou ter direito a uma redução das rendas durante o período de estado de emergência?
Segundo a última portaria do Governo sobre arrendamento , os estabelecimentos que tenham sido obrigados a encerrar, mesmo que continuem a prestar serviços à distância ou online, e os estabelecimentos de restauração e similares (mesmo que tenham adotado o regime de take away ou deentregas ao domicílio) têm direito a um diferimento das rendas relativas ao período em que vigore o estado de emergência e ao primeiro mês subsequente.
O pagamento das rendas do período em causa pode ser efetuado nos 12 meses seguintes, "em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante total, pagas juntamente com a renda do mês em causa", pode ler-se.
Por outro lado, os contratos de arrendamento comerciais não poderão ser cancelados por falta de pagamento de rendas devidas relativas aos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, nem pode ser exigida uma indemnização por atraso no pagamento de rendas.
Compras online
A Deco tem ainda recebido reclamações sobre atrasos e constrangimentos nas compras feitas através da internet. Aos consumidores pede-se compreensão, às empresas exige-se comunicação.
"Há mais pessoas a recorrer a esses serviços, os atrasos são maiores e a capacidade das empresas de responderam atempadamente também tem sido difícil porque têm menos pessoas a trabalhar."
"Estamos numa fase de ajustamento, as empresas estão com dificuldades" e há atrasos nas entregas ao domicílio de supermercados e lojas que vendem bens essenciais, nota a jurista Carolina Gouveia. "Mas é importante que haja informação acima de tudo. Não exigimos muito mais."
"O consumidor tem de ser informado à partida sobre qual vai ser o período em que consegue agendar a entrega dos produtos, e se a empresa verifica que há um atraso e que não vai conseguir cumprir a entrega, tem de informar com a maior urgência possível."
E em caso de litígio?
Todas as situações têm de ser avaliadas caso a caso, com "bom senso" e "razoabilidade". Perante a indisponibilidade de qualquer entidade para negociar, a Deco aconselha os consumidores a contactar a sua linha de apoio via telefone através do 213 710 226 ou via Skype: 213 710 224.
