Trabalhadores da Cervejaria Galiza defendem o que não é deles, mas sentem como seu
Há três meses, os trabalhadores da Cervejaria Galiza, no Porto, foram surpreendidos pela vontade das duas sócias quererem encerrar este espaço emblemático da cidade. Uniram-se, impediram o fim e assumiram a gestão corrente da casa. Sobra cansaço e ansiedade por um futuro sem sobressaltos.
Corpo do artigo
Quando ia para a escola, com pouco mais de dez anos, António Ferreira, não imaginava que a vida ia mesmo levá-lo até à Cervejaria Galiza.
"Eu estudava na Escola Gomes Teixeira, mesmo aqui ao lado, e lembro-me na abertura da Cervejaria Galiza. Eu pensava quando é que um dia eu iria entrar para comer uma francesinha e beber uma cerveja".
Em meados da década de oitenta, António Ferreira entrou ali para trabalhar. É dos empregados mais antigos da casa e em novembro do ano passado voltou a ser surpreendido pelo destino. O fim da Galiza - espaço emblemático do Porto - estava a ser preparado nas costas dos trabalhadores. Na noite do dia 11, o plano estava em marcha.
"Havia uma camioneta parada numa rua atrás, à espera pela ordem para carregar. E quando chegámos ao local constatámos que já estavam os fogões, os banhos-marias e fornos junto à porta, mas dentro do estabelecimento".
TSF\audio\2020\02\noticias\11\sonia_galiza
Nada nem ninguém saiu pela porta fora. Os funcionários tomaram conta da cervejaria. Começaram do zero, sem tempo para medos, nem receios.
"Eu acho que nem houve tempo para nos assustarmos. As coisas foram tão rápidas que nós nem tivemos tempo para ficar assustados. A vontade era tanta de pôr isto a trabalhar no outro dia, que distribuímos funções e começámos a trabalhar".
Três meses depois, o cansaço é visível. A responsabilidade dos mais de trinta funcionários aumentou e não só.
"O trabalho tornou-se um bocadinho mais violento. As oito horas de trabalho passaram a ser dez e doze. Passamos a fazer tarefas que não fazíamos, como por exemplo, a limpeza".
António Ferreira, com mais dois colegas, assumiram a gestão corrente da Galiza. Os salários e subsídios em atraso estão todos pagos. Equilibrar as contas não tem sido o mais difícil.
"Uma das grandes dificuldades foi gerir as pessoas, porque nós começamos a ter que dar ordens a pessoas que nos davam ordens a nós. Inicialmente, não foi muito bem aceite. Depois havia uma desorientação do próprio ambiente de trabalho e do ambiente que se gerou, mas paulatinamente fomos conseguindo pôs as pessoas no sítio e levá-las a colaborar".
Para manter e conquistar nova clientela, a Galiza recuperou sucessos do passado, voltando a colocar na ementa pratos que era característicos da casa, mas que tinha sido retirados ao fim de semana, como o cozido à portuguesa, as tripas à moda do Porto ou o cabrito assado.
Os fornecedores têm sido solidários. As contas estão em dia. Sandra Santos, que fornece o pão, deixa no balcão, perto do almoço, cinco caixas cheias com pão para as francesinhas, um prato típico, e som muita saída, na Galiza.
"Eles são nossos clientes há muitos anos, nós confiamos neles. As encomendas até têm aumentado e as contas são pagas na hora. Nem eles querem de outra forma".
Atrás do balcão, Agostinho Barbosa, perdeu a conta às francesinhas que já serviu desde 1981. Nunca pensou desistir nos dias ensombrados. Tem aqui tudo, a começar pelos clientes.
"É a família da Galiza. Vêm diariamente, semanalmente, e perguntam se está tudo bem. Dizem que as coisas vão andar para a frente, que isto não vai fechar. São eles que nos dão força".
As visitas do Presidente da República, do autarca do Porto e alguns líderes partidários colocaram a Galiza no palco das notícias e trouxeram clientela nova como nota António Ferreira.
"Dantes não havia tantos jovens aqui iam a outros espaços que entretanto foram abrindo na cidade, mas agora vêm. Aparecem muitos".
Rita Baptista é um destes exemplos. Veio almoçar à Galiza por solidariedade. "Vim de Aveiro. Soube da situação através das redes sociais e por isso vim cá por solidariedade, para ajudá-los".
O primeiro cliente do dia chegou um pouco mais cedo e com muitas lembranças. Paulo Beltrão já foi cliente assíduo "quando estudava no Porto. Agora só venho à cidade em trabalho. Hoje vim cá porque ouvi o que se passa e estou solidário com estes trabalhadores".
A sobrevivência da Galiza mobiliza todos os trabalhadores. João Santos tem oito anos de casa, mas vive com a mesma intensidade tudo o que se tem passado, "pois estão em causa os nossos postos de trabalho. É o nosso ganha-pão".
O alegado interesse de alguns investidores tem animado os dias, mas também é preciso liquidar as dívidas à Segurança Social e ao fisco, de quase dois milhões de euros. Nuno Coelho, do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria do Norte, está confiante. A mediatização tem ajudado, mas a união tem sido o pilar da Galiza. "Se os trabalhadores não estivessem unidos, nada disto funcionava. Eles são um exemplo".
Todos esperam que este episódio da história da Galiza termine com final feliz. António Carneiro é cliente desde a primeira hora, ou seja, desde 29 de junho de 1972 e aplaude a resistência dos funcionários. Quando jogava andebol, António Carneiro vinha à Galiza com os colegas depois dos treinos. O hábito não se perdeu, agora vem quase todos os dias comprar almoço. Sabe de cor os nomes de todos os que o servem, hoje leva empadão, mas garante que na Galiza "há muitos pratos bons".
Já houve quatro reuniões mediadas pelo ministério do trabalho entre representantes das duas sócias e dos trabalhadores, mas até agora sem resultados. Este mês deve realizar-se mais uma reunião.