"Trabalhava 12 horas por dia, ganhava um euro e vivia com animais." Tribunal considerou que não era vítima de tráfico humano
Encontro sobre tráfico de seres humanos ouviu casos que passaram pelas mãos das polícias
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O caso foi apresentado num Seminário em São Brás de Alportel, no distrito de Faro, pelo inspetor da Polícia Judiciária Batista Correia, para demonstrar que nem sempre as vítimas de tráfico de seres humanos são imigrantes.
"João, 47 anos, alcoólico, défice cognitivo, explorado por um casal português para pastorear cabras, trabalha 12 horas por dia", relatou. O homem comia apenas duas refeições diárias, em que uma delas era uma sandes. Vivia numa carrinha abandonada sem portas, no curral dos animais, próximo da casa dos exploradores. “Pulgas, lixos, temperaturas extremas, sem condições básicas de água, luz e outras. Fazia as suas necessidades no campo”, continua o inspetor. Esta vítima recebia um euro por dia e gastava 60 cêntimos na compra de um pacote de vinho num hipermercado. Ficava com quatro cêntimos apenas e “foi agredido violentamente por ter sido apanhado na casa dos patrões a tirar comida. Acabou abandonado na Serra do Caldeirão, sem telemóvel”, conclui.
Este caso, no entanto, foi julgado em tribunal como crime de ofensa à integridade física. "Os tribunais precisam efetivamente de provas robustas para haver uma condenação, e muita desta prova no crime de tráfico de pessoas, vive de prova testemunhal", explica o responsável pela brigada de crimes violentos e tráfico de pessoas da Polícia Judiciária de Faro. O inspetor admite que a prova testemunhal muitas vezes não é possível reproduzir em tribunal, e por vezes “há também confiança excessiva dos órgãos de Polícia Criminal (OPC's) (...), as vítimas saem do país e, na dúvida, os traficantes, os exploradores, são absolvidos em tribunal”, lamenta.
O seminário organizado pela Associação de Planeamento da Família e realizado em São Brás de Alportel, teve como tema “Tráfico de Seres Humanos- Quebra de máscaras e paradigmas deste crime na região algarvia”. Ouviu-se também o testemunho gravado de uma jovem nigeriana: raptada aos 16 anos no seu país, viveu seis meses no deserto da Líbia a ser violada diariamente por vários homens até chegar a Portugal, onde outra nigeriana a obrigou a prostituir-se na cidade do Porto.
O inspetor Batista Correia, que tem a seu cargo combater este tipo de crimes nos distritos de Faro e Beja, admite que por vezes é difícil distinguir entre os crimes de auxílio à imigração ilegal e tráfico de seres humanos. "No senso comum, quando se fala de determinados trabalhadores que foram retirados de uma camarata onde viviam doze pessoas sem condições e que são de alguma forma explorados em termos do seu salário, [podemos pensar] que estamos na presença de vítimas de tráfico de seres humanos", afirma. "Podemos estar, muitas vezes estamos, mas muitas vezes não estamos e é esta a dificuldade em distinguir as situações que são reais e as que não são reais", admite.
As redes criminosas, por seu lado, utilizam métodos cada vez mais atualizados e conseguem estar sempre “um passo à frente”. “É muito difícil, hoje em dia, a polícia chegar a qualquer exploração agrícola onde estão trabalhadores vítimas de tráfico para fins laborais e não encontrar essa vítima na posse do seu documento de identificação”, relata. “As redes adaptaram-se, perceberam que esse era um elemento importante para que as polícias conseguissem fazer a prova do tráfico” porque, além da exploração, as vítimas não se poderiam movimentar.
Embora tenha diminuído o número de crimes deste género de 2023 para 2024, não se conhece ainda qual o peso que o fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras pode ter nestas estatísticas mais diminutas. Este crime pode levar a penas de prisão entre os três a 12 anos.