Estalou o verniz entre o PS e o Bloco de Esquerda e, desta vez, foi em direto, para todo o país ver. No último debate a seis destas Legislativas, Catarina Martins e António Costa travaram-se de razões e não foi bonito. Se foi apenas um "número" de campanha eleitoral, foi muito bem encenado.
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A história do cinema tem vários filmes assim. Primeiro, quase adormecemos. Quando estamos quase a desistir, e prestes a desligar a televisão, eis senão quando uma reviravolta inesperada nos volta a agarrar ao ecrã e até vamos fazer mais pipocas. O último debate entre os seis líderes dos partidos com representação parlamentar podia ter sido um desses filmes. Deixemos a primeira parte - que é importante - para uma segunda fase do texto, e concentremo-nos no episódio que marcou o debate desta segunda-feira na RTP: a sessão de pugilismo político entre Catarina Martins e António Costa.
O debate aproximava-se do final quando a coordenadora do Bloco de Esquerda aproveitou uma pergunta sobre as alterações climáticas, feita pela jornalista Maria Flor Pedroso, para lançar a bomba que já vinha armadilhada de casa: "Nós vimos que, no último mês, o PS utilizou o argumento da crise para se livrar do empecilho da esquerda", começou por notar Catarina Martins. A expressão "empecilho" foi utilizada na semana passada pelo vice-presidente da bancada do PS, referindo-se ao Bloco, ao PCP e ao PEV, os partidos que viabilizaram o governo do Partido Socialista. Mas Catarina Martins trazia outras respostas preparadas: também a António Costa, que na entrevista ao podcast de Daniel Oliveira - Perguntar não ofende - afirmou que a geringonça existiu "apesar do Bloco de Esquerda". Ora, a coordenadora do BE aproveitou a última oportunidade para estar, olhos nos olhos, com António Costa, para avivar a memória ao líder do PS: "Sabe tão bem quanto eu que, ainda em pré-campanha eleitoral, quando debatemos os dois, o desafiei para uma solução que travasse o empobrecimento", começou por dizer, para acabar a revelar publicamente uma história que, até hoje, só estava contada em livros e em alguns jornais: "No dia das eleições" (em 2015), os dois partidos reuniram, portanto, à noite, quando sabíamos o resultado eleitoral, sabíamos que tinham aceitado negociar as pensões." E esta foi a altura em que quem estava a acompanhar o debate percebeu que tinha que pôr mais pipocas ao lume.
Catarina Martins: Não se queimam pontes quando se querem fazer pontes.
Catarina Martins, que não queria "andar a fazer arqueologia", sugeriu a Costa que o melhor era serem "claros sobre as vontades" que têm e rematou com um aviso: "Não se queimam pontes quando se querem fazer pontes".
O rosto fechado de António Costa denotava alguma irritação com o confronto daquela que, durante quatro anos, foi uma das suas aliadas políticas. Mas a resposta mostrou que o secretário-geral do PS já tinha antecipado, de alguma forma, que este momento, um dia, tinha mesmo que acontecer. Hoje foi o dia. "Quem quer rescrever a história é a Catarina Martins", atirou António Costa, que decidiu puxar, também ele, o filme atrás e lembrar que, em abril de 2018, a coordenadora do BE "resolveu descrever esta legislatura como um confronto entre o PS e os partidos à sua esquerda". "Só mesmo na sua cabeça é que pode haver esta descrição". António Costa estava só a começar a responder.
António Costa: O Partido Socialista mantém-se aberto a dialogar com todos.
O líder do PS prosseguiu dizendo que nunca fala "em público" das reuniões que tem "em privado" - "nem as confirmo nem as desminto" - e que "é público que Catarina Martins quis colocar o PS como adversário principal." Uma no cravo, outra num pós eleições que ainda ninguém sabe exatamente o que vai ser: "O Partido Socialista mantém-se aberto a dialogar com todos", afirmou Costa, que, ainda assim, numa espécie de estucada final, fez questão de lembrar a Catarina Martins: "Nunca me ouviu apelar aos militantes do Bloco que venham votar no PS, como já a ouvi dizer aos militantes do PS."
Mas, afinal, o Bloco e o PCP foram ou não foram empecilhos para o PS nos últimos quatro anos? António Costa garante que não e mostrou mesmo algum enfado ao ter de responder à pergunta. "Não vamos estar aqui com essas coisas", pediu o secretário-geral do PS, que, em jeito de vitimização, lembrou que o Partido Socialista tem ouvido várias vezes o PCP e o BE criticar o PS - e "estão no seu direito" -, mas, "sempre que o PS diz uma qualquer coisinha, seja a respeito do PCP ou do BE - que tem particular respeito por parte da comunicação social -, cai o Carmo e a Trindade". A isto nem Jerónimo de Sousa conseguiu ficar calado e fez questão de lembrar que quem falou em "empecilhos" foi um vice-presidente da bancada socialista.
"Não é repetível"
Não te metas em guerras que não são tuas. Parece ter sido este o pensamento do secretário-geral do PCP, que estava - como o resto do painel - a assistir a este confronto entre Catarina Martins calado, à espera que lhe dessem a palavra. Quando chegou a sua vez, Jerónimo de Sousa fez questão de lembrar o que já antes havia dito: a geringonça não é repetível porque as circunstâncias são hoje diferentes das de há quatro anos."Viabilizámos a possibilidade de haver um Governo, não dissemos como o Governo ia governar", sublinhando que, na altura, era importante "repor rendimentos."
Jerónimo de Sousa: A conjuntura não é repetível.
É por isso, diz Jerónimo, que "a conjuntura não é repetível", salientando que a tónica não está na maioria absoluta do PS, mas sim no reforço da força da CDU.
O confronto entre Costa e Catarina Martins ainda haveria, porém, de ter um epílogo final. Catarina Martins voltou à carga para se justificar, garantindo que "não disse nada que não esteja escrito em livros ou que não seja confirmado por dirigentes socialistas" e que acha estranho que "o PS não sinta que a história da legislatura foi essa tensão [à esquerda], que deixou a direita sem programa." António Costa ia discordando, à medida que a coordenadora do BE falava, e, à primeira oportunidade, lançou mais uma farpa: "As pessoas que eu encontro na rua dizem-me que gostam da geringonça e acham que correu bem."
Nesta fase do debate, Catarina Martins e António Costa disputavam quem ficava com a última palavra. E acabou por ser a líder do Bloco que, muitos minutos depois, já o debate estava noutra fase, voltou ao tema para se congratular com o facto de António Costa achar "que já não há empecilhos."
"Não paguei bilhete, mas estou aqui a assistir a este debate..."
Rui Rio, que, supostamente, é o principal adversário de António Costa nestas eleições, esteve longe de o ser neste debate. O presidente do PSD decidiu ironizar com as picardias entre Costa e Catarina Martins e até chegou a sugerir um recurso aos julgados de paz. "Resolvem isto facilmente", atirou, sorridente. "Aqui sentado - mas estou bem - não paguei bilhete, mas estou aqui a assistir ao debate." Brincadeiras à parte, o líder social-democrata rematou a "guerra" na geringonça garantindo que, "se o PS precisar do PCP e do BE para governar, eles lá estarão com certeza."
Costa vs. Cristas - 1.º round
Do fim para o princípio. Ainda Catarina Martins não tinha entrado "a pés juntos" sobre António Costa, já Assunção Cristas lá andava a fazer marcação cerrada ao secretário-geral do PS. Nada que o País não tenha visto já nos debates quinzenais ou, até, nos debates desta campanha.
Assunção Cristas: Confirmou-se que tivemos em 2018 um recorde na carga fiscal.
Cristas - que foi a primeira a falar - começou logo por não conseguir identificar um único aspeto positivo na governação dos últimos quatro anos. Depois tentou atacar António Costa em várias frentes. Começou pelo crescimento da economia - "confirmou-se que tivemos em 2018 um recorde na carga fiscal (...), esse pódio já ninguém vos tira." -, insinuou que os números do PIB revelados esta segunda-feira pelo Instituto Nacional de Estatística eram "oportunos" e foram divulgados em plena campanha, passou pela saúde para perguntar a Costa "quantos profissionais saíram do SNS", atacou a política de combate às alterações climáticas, não se esqueceu do ataque à política fiscal - "prometeu neutralidade fiscal e incumpriu" - e ainda teve tempo para se referir aos casos judiciais que envolveram membros do governo: "António Costa é candidato, mas também é primeiro-ministro. Não é capaz de governar isto?".
"Não vale a pena estender o dedinho", respondeu Costa, a determinada altura. Entre o enfado, o paternalismo e a irritação mais ou menos disfarçada, o líder do PS lá foi respondendo àquela que, seguramente, é a adversária política que mais o consegue irritar. Para as perguntas sobre saúde, o secretário-geral socialista trazia "uma prenda" escrita com a lista de profissionais de saúde em Portugal e um número na cabeça: "Acha que, num ano em que se produz mais 700 mil consultas, é pior do que um ano em que se produz menos 700 mil consultas?" Cristas responde-lhe: "O seu léxico diz tudo, só se preocupa com a produção".
Sobre a subida da carga fiscal, o líder do PS voltou a justificar-se com "a subida das contribuições para a segurança social" e assumiu que o imposto sobre os combustíveis, de facto, subiu. Mas a admissão trazia água no bico. Costa remata a resposta a este tema dizendo que "só há duas pessoas que defendem a redução destes impostos (sobre os combustíveis): Cristas e Donald Trump."
O líder do PS acusou Assunção Cristas de "à segunda, terça e quarta" defender o combate às alterações climáticas e, nos outros dias, fazer o contrário, mas não haveria de ficar por aqui. E, sobre os números divulgados esta segunda-feira pelo INE, eles significam, para Costa, um arraso "completo de todos os pressupostos da política económica do CDS e do PSD."
Foi assim ao longo de duas horas. António Costa lá foi respondendo aos "desafios" da líder centrista, mesmo quando deixava cair um "não vale a pena", mas sem nunca deixar Cristas sem resposta. Ao ponto de, a determinada altura do debate, dizer que o seu país "não é o país das herdades do Alentejo." Assunção esperou até poder responder, olhos nos olhos, que nunca teve nenhuma herdade no Alentejo e que, se teve alguma coisa, foi em Angola, onde a família perdeu tudo e "nunca foi indemnizada."
A bizarria chegou ao ponto de, no final, Costa e Cristas estarem a trocar papéis um com o outro. Rui Rio, que também tinha umas folhas para trocar com António Costa, também participou no jogo do "tenho um papel para si."
Rio sabe fazer contas. Jerónimo ouve toda a gente. André Silva corre numa pista à parte
A primeira parte do debate foi dedicada à economia. E, em princípio, Rui Rio estaria como peixe na água. O presidente do PSD começou por elogiar a estabilidade política que Costa conseguiu nos últimos quatro anos, mas rapidamente puxou do Excel para dizer que "o rácio da dívida pública de 2018 para 2019 vai degradar-se".
O presidente do PSD insistiu com a subida da carga fiscal e até deu exemplos: "ISP, IMI, imposto do tabaco, ISV", tudo exemplos, para Rui Rio, de um aumento dos impostos que é da responsabilidade do atual governo. "A continha está certa", garantiu Rio, que confessou ter usado a máquina de calcular, apesar de também saber fazer contas à mão. "O que estamos a falar sobre o INE é que, no ano de 2017, a economia cresceu mais 0,8% do que aquilo que achávamos que tivesse sido", lembra Rio. "Andamos todos à volta dos números, mas é disto que estamos a falar", destacou o líder social-democrata.
Costa não demorou na resposta: "O que o Dr. Rui Rio tem que explicar - e já que sabe fazer tão bem contas - é isto: propõe um enorme choque fiscal, cortar 3.700 milhões de euros de impostos, mas prevê um aumento de 2 mil milhões de euros de receita. É um milagre. Eu que sou tido por otimista, o meu amigo, cuidado, é um ultra otimista".
Ainda Costa andava a debater com o centro-direita - sobretudo com o CDS - e já o debate estava em Jerónimo de Sousa, sobre os salários. A moderadora teve de mandar calar - delicadamente - Costa e Cristas, que continuavam numa conversa paralela, quando o secretário-geral do PCP tentava expor o seu ponto de vista. "Não faz mal, eu ouço-os na mesma", atirou Jerónimo, que prosseguiu defendendo que "o aumento dos salários constitui um elemento fundamental para o próprio crescimento económico". Os salários de hoje são as reformas de amanhã", rematou.
Por fora correu André Silva. O único deputado do PAN foi tentando sempre levar a conversa para os temas que mais lhe interessavam. Se a pergunta era sobre salários, ele falava das propostas do partido para os sem-abrigo, para defender que "com 2 milhões de euros" é possível "dar casa a 351 pessoas em Lisboa". Se a questão era sobre a folga orçamental, André Silva respondia com uma pergunta: "Os números são importantes, mas este crescimento económico está a ser feito à custa de quê?". Para o PAN, Portugal está a desenvolver-se com mão-de-obra escrava.