Um trishaw, um voluntário e um passeio que devolve a todos "o direito ao vento nos cabelos"
A Reportagem TSF viaja à boleia da Pedalar Sem Idade, uma associação que torna todos "úteis" e possibilita a todos "respirar ar puro". Vamos de bicicleta?
Corpo do artigo
Está reformado, já mudou de casa 47 vezes e “tem muitas histórias engraçadas para contar”. Assur não sabe quando é o último dia, aliás ninguém sabe, mas tem a certeza de que caminha para a velhice, como todos os que nascem. Adora andar de bicicleta e sentir-se ativo. Duas vezes por semana vai dar um passeio, leva pessoas consigo e a questão da idade torna-se “completamente irrelevante”. Como? Através da Pedalar Sem Idade, uma associação sem fins lucrativos onde, muito mais do que bicicletas, dão valor aos pequenos prazeres da vida.
Hoje é quinta-feira. Os ponteiros do relógio marcam 12h50 e Assur Valsassina prepara-se para dar ao pedal até à Clínica Psiquiátrica de São José de Telheiras, Irmãs Hospitaleiras, em Lisboa. O voluntário coloca o colete, apanha a bicicleta e desta vez é a TSF quem vai à boleia.
Já fiz mais de cem passeios. Agora duas vezes por semana, reduzi um bocadinho, porque a minha mulher também disse ‘calma lá’, mas já cheguei a fazer cinco por semana. Adoro isto!
As pessoas na rua olham com alguma curiosidade. Será turismo? Tem três rodas, um sofá confortável e uma pessoa a guiar, mas não é um tour. É um trishaw, um voluntário e um passeio que devolve a todos “o direito ao vento nos cabelos”.
- “Também podemos dar um passeio?”, ouve-se;
- “Daqui a 50 anos liga-me e levo-te! Tenho projetos grandiosos para o futuro, quero chegar aos 124 anos”, responde Assur, entre risos.
Assur pode parecer ambicioso, mas ingénuos só aqueles que acham que pode ser impossível chegar à velhice sem qualidade de vida. À TSF, o voluntário conta que ainda no outro dia fez um passeio com duas senhoras, uma de 94 outra de 95 anos, que “se metiam com todo o mundo, batiam palmas, cumprimentavam-se, não tem noção da alegria que conseguiram fazer na rua”.
Por isto e por tanto, o trabalho torna-se gratificante para Assur que, muitas vezes, termina o passeio “com um nó na garganta” e “lágrimas nos olhos”. Mas não falemos do fim, se a melhor parte — “ver a cara das pessoas” — ainda nem sequer chegou.
É uma das poucas vezes na vida em que me sinto útil. (...) Às vezes chegamos à conclusão que trabalhamos somente pelo salário, para pagar contas... aqui não, estamos a fazer uma coisa mesmo boa. É o melhor salário que podia desejar.
São 13h20. Entramos pelo portão da Clínica Psiquiátrica de São José de Telheiras e esperamos que a assistente Carla saia com uma paciente.
- “Boa tarde, bom ano!”, reage Assur com entusiamo mal as vê.
Flávia tem 35 anos, gosta de dançar e diz que “é uma ótima atriz”. Esta quinta-feira foi uma das utentes escolhidas para ir dar um passeio com a equipa da Pedalar Sem Idade. Antes de se sentar no trishaw, conta-nos que na primeira vez teve algum receio, mas foi “tão bom” que agora só quer repetir, até porque com sorte vê o estádio do Sporting (o seu clube do coração).
Até aqui, se calhar, achava que o Pedalar Sem Idade era destinado única e exclusivamente aos mais velhos. Apesar de ser o público-alvo, o projeto chega a todos os que estão de alguma forma privados do contacto regular com o exterior.
É benéfica a maneira de socializarem, conhecerem pessoas novas, contemplarem a natureza... Nem sempre os familiares podem vir buscá-las, acaba por ser uma maneira de verem coisas diferentes.
Sentadas lado a lado, Flávia e a assistente Carla vão à boleia de Assur até à Quinta das Conchas, no Lumiar. Os cintos estão postos, os casacos apertados e boa disposição não falta. É altura de “respirar ar puro”.
Nada é forçado. Há quem desfrute do passeio em silêncio, como há quem vá a falar o caminho todo. A escolha é pessoal e o mais importante é chegar ao final a saber que não estão sozinhos.
A TSF vai agora à boleia de Carlos Fonseca, voluntário há dois anos na Pedalar Sem Idade. Tem 38 anos, trabalha e tenta ajudar sempre que consegue. Durante o caminho, explica-nos que o passeio dura cerca de uma hora e que podem ser feitas paragens para conviver, ou mesmo beber um café.
Foi o caso deste passeio. Já na Quinta das Conchas paramos junto a um lago, onde, juntamente com Flávia, observamos os patos, escutamos o barulho dos pássaros e dizemos “olá” a quem por aqui passa.
- Do que é que está a gostar mais até agora?, perguntamos
- De tudo. O ar puro e as paisagens. Estou a gostar.
- Então vamos passear mais um bocadinho?
(ouve-se a campainha da bicicleta)
- Bye bye!, diz Flávia entusiasmada.
O mote para o regresso está lançado. Flávia está feliz, já pensa “em ir outra vez” e nas Irmãs Hospitaleiras estão já outras duas pessoas à espera de Assur e de Carlos.
“Estamos prontos para mais um passeio, uma tarefa gratificante e uma experiência positiva”, diz o voluntário de 64 anos que, antes de irmos embora, partilha a parte mais difícil desta “história com muitos episódios”.
Ainda não tive aquelas infelicidades, que alguns colegas já tiveram, de voltar ao lar e a pessoa que costumavam levar já lá não estar. É uma coisa que custa muito e, por muito que me prepare mentalmente, uma pessoa nunca está pronta.
O Pedalar Sem Idade é um movimento sonhado e materializado pelo dinamarquês Ole, que um dia apareceu num lar de idosos com um trishaw alugado. A partir daqui, espalhou-se pelo mundo e acabou por chegar a Portugal em 2020. O projeto deu origem a uma curta-metragem premiada que esteve em exibição no passado dia 11 de janeiro, no Cinema São Jorge, em Lisboa.
Por que é que o projeto é muito mais do que andar de bicicleta? Como se o testemunho de Assur e Flávia não chegassem, partilhamos agora uma das histórias que quem estava sentado na sala do Cinema São Jorge pôde conhecer.
O momento é de um idoso diagnosticado com Alzheimer: era agressivo e não reagiu muito bem quando soube que ia para uma instituição. Escrevemos no passado, porque tudo mudou quando a filha decide levá-lo num passeio e há uma mudança de comportamento.
Como explica a diretora-executiva da Pedalar Sem Idade, Margarida Quinhones, “os voluntários muitas vezes recebem muito mais do que dão”.
Esta possibilidade de fazermos voluntariado requer relações humanas, ouvirmos histórias de vida e percebemos que aquilo que fazemos tem um impacto imenso na vida das pessoas. É de facto impactante.
Num dia com “muitas emoções”, Margarida Quinhones afirma que há cada vez mais procura da Pedalar Sem Idade, quer pelos mais novos como pelos mais velhos, e anuncia que o projeto vai ser alargado a mais duas cidades: Mafra e Vila Real de Santo António. Atualmente, o projeto já existe em Almada, Cascais, Castelo Branco, Castro Verde, Coimbra, Guimarães, Lisboa, Sintra, Torres Vedras e Vila Franca de Xira.
Os passeios da Pedalar Sem Idade são gratuitos e podem ser agendados no site da associação. Os interessados em tornarem-se voluntários devem preencher o formulário e, posteriormente, frequentar formações para obter a certificação que lhe permitirá pedalar o trishaw.
Portugal é, a par de Itália, o país da União Europeia com maior percentagem de população envelhecida, existindo quase dois idosos por cada jovem. De acordo com os dados da Pordata, Portugal é também o quarto país do mundo com a população mais velha.
A população idosa em Portugal tem crescido mais de dois por cento ao ano, desde 2019, com o número de pessoas com 100 anos a ultrapassar as três mil.