“Chão de Urze” é um vinho diferente dos outros, feito pelos reclusos da prisão de Alcoentre. A cadeia, que fica no centro da vila, tem uma quinta com cerca de 300 hectares e uma adega onde o vinho é produzido
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A adega da prisão de Alcoentre fica fora dos muros e do arame farpado, no meio dos montes ao lado da cadeia. Para lá chegar, o carro sobe uma estrada de terra batida numa viagem de cinco minutos.
A quinta onde fica a adega prisional tem cerca de 300 hectares, o que equivale a mais ou menos 300 campos de futebol. O sítio onde se produz o vinho tem mais de 80 anos, mas não parou no tempo. A produção de vinho evoluiu, mas há equipamentos que ficam, tal como explica à TSF Rui Almeida, guarda prisional e o responsável por cuidar da adega da prisão. O espaço tem 14 tonéis pintados e envernizados para que a cor não desapareça com o tempo. Começam nos “oito mil e terminam nos 12 mil litros”, estão a ser substituídos pelos depósitos de “inox, que hoje é mais higiénico e é o que está a vingar” e depois “o resto é de cimento”.
A contar com os barris de madeira, com os depósitos pintados de vermelho e branco e com os de inox, são mais de 25 os espaços para armazenar o vinho, permitindo que a adega tenha capacidade para guardar cerca de 100 mil litros.
Seja qual for o vinho, rosé, branco ou tinto, o nome não muda, chama-se “Chão de Urze”. À TSF, António Leitão, diretor do Estabelecimento Prisional de Alcoentre, avança uma explicação: "Urze é uma planta e havia terrenos aqui que tinham esta planta. A questão das marcas é um processo demoroso e complicado, pensou-se na altura dar o nome da quinta do estabelecimento, só que já havia marcas muito parecidas e com nomes muito parecidos e depois, nessa altura, tendo em conta essa caraterística dos terrenos, entenderam dar o nome da planta."
Além das uvas, este vinho guarda um segredo. "Tudo o que é relacionado com o produto final do vinho é feito com mão de obra prisional, unicamente feito com mão de obra prisional", assegura António Leitão.
Os trabalhos começam por volta de novembro, com a poda, e, como “muitos dos reclusos nunca viram uma videira à frente, começam com uma formação na poda". "Também são os reclusos que conduzem os tratores e que fazem uma formação na aplicação dos produtos, cuidam das vinhas durante o ano, as trasfegas do vinho, o engarrafamento, o rotulamento das garrafas, tudo isso é feito com mão de obra prisional, essa é a grande diferença, é tudo manual”, completa.
Acabada a produção do vinho, é hora da prova. As regras dizem que os presos podem beber dois copos por ano no caso do Estabelecimento Prisional de Alcoentre. O diretor adianta que acontece na altura do São Martinho, onde é distribuída a “chamada água-pé que fazemos, que é o primeiro vinho da colheita”, e na passagem de ano.
Mas há uma exceção para os que trabalham na adega. "Aqui mantemos também a tradição da região do Ribatejo, ou seja, no final da vindima é feita a chamada adiafa, que é um convívio entre todos os participantes, incluindo, naturalmente, o diretor e as pessoas da direção que participam. Fazemos um pequeno churrasco, umas febras e é distribuído um copo de vinho a cada recluso nesse momento também."
Prémios e distinções não faltam para o trabalho que os reclusos fazem com o vinho e, por isso, há um móvel para colocar todos os troféus. Os lucros são entregues à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que depois dá um montante ao estabelecimento prisional para melhorar ou comprar novos equipamentos.
E não falta procura pelo “Chão de Urze”. António Leitão explica que o “ponto principal de venda é no Estabelecimento Prisional de Alcoentre, depois fazemos distribuição em toda a zona de Lisboa, temos alguns restaurantes a quem fornecemos e temos muita gente que nos procura". "Isto é um pouco de boca em boca, vão sabendo que a cadeia produz vinho e acabam por conhecer o vinho e depois deslocam-se cá para comprar.”
Da adega seguimos para o armazém onde é guardado o vinho embalado. O eco do espaço não engana, é preciso pôr mãos à obra e, por isso, hoje é dia de empacotar o vinho nas caixas de cinco e dez litros.
Todos os detidos que trabalham na adega da prisão de Alcoentre estão em regime aberto. Um deles é Leandro, está preso há seis anos. Hoje está na adega e, em declarações à TSF, diz que o trabalho tem altos e baixos, uma vez que “requer muita responsabilidade". "Um mínimo erro pode pôr em causa grandes quantidades de vinho, mas é um trabalho que, aprendendo, não causa muito esforço, pelo menos aqui na adega. Já na poda e na vindima é outra coisa, já é um bocadinho mais puxado, mas também não é nada que não se faça."
Para Leandro, o objetivo é claro. "Isto [trabalho na adega] ajuda-nos sempre a passar o tempo, distrair a cabeça” e, por isso, ”é melhor do que estar fechado numa cela”, assegura.
Ao todo, são três os reclusos que fazem o trabalho final, dois embrulham as caixas e outro enche os sacos para onde vai o vinho. É o caso de Nuno Adriano, que faz este trabalho há um ano. Começa por receber as uvas. Depois, "passamos com a grua lá para fora, metemos dentro da cesta, depois a transação para dentro da máquina onde separa os bagos da uva da grainha (...) depois é posto numa prensa, sai o sumo, vai para dentro do depósito diretamente".
No processo da fermentação, passa-se de um depósito para o outro, "fazendo a filtragem", para "retirar todos os resíduos e partículas e depois ser embalado e engarrafado”.
Como garante António Leitão, o vinho feito pelos reclusos tem um sabor a liberdade, porque “promove os reclusos e desmistifica aquela ideia de que as pessoas quando são presas caem ali praticamente adormecidas durante dez anos". Assim como fora das grades, na vida real, "as pessoas trabalham, estudam e têm formação". Nesta adega prisional, garante-se que quem prova este vinho nunca esquece.
