Uma comunista de Grândola que distribuía propaganda e "trauteava Zeca Afonso na rua" durante o Estado Novo
Otília Vaz já distribuía propaganda contra o regime ditatorial de Oliveira Salazar com apenas 18 anos. Mas este não era o único risco que assumia: "Eu andava sempre a trautear as músicas do Zeca Afonso e diziam-me: 'Não cantes isso na rua.' Mas depois aquilo ficava na minha memória e eu na volta dava comigo a cantar"
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Foi através de um apelo na rádio para que ninguém saísse à rua que Otília Vaz descobriu, na madrugada de 25 de Abril de 1974, que estava em curso uma Revolução. O repto, contudo, não foi cumprido pelo marido da mulher de 73 anos, que "ficou todo contente que isso tivesse acontecido", e insistiu em juntar-se à multidão.
A "alegria" foi também partilhada por Otília Vaz, que fala numa "sensação de alívio". Ainda que não tenha podido sair à rua nesse dia porque tinha "um bebé de quatro meses", o telhado da casa onde morava, na Travessa do Calado, em Lisboa, revelava-lhe uma vista privilegiada: em frente estava um quartel militar, onde viu "pessoas a serem levadas".
Natural de Grândola, esta mulher foi um dos muitos rostos menos conhecidos da resistência. Ainda nova, com apenas 18 anos, conta que distribuía propaganda contra o regime ditatorial de Oliveira Salazar.
"Na altura estava em casa de umas pessoas em Grândola e, através de uns amigos meus, que eram estudantes universitários, lavavam a propaganda. E nós tínhamos uma casa num pinhal onde púnhamos a propaganda e depois a gente distribuía pelas pessoas e pelas casas", explica.
Apesar do medo, era a revolta perante a imensa "injustiça" que a fazia continuar. E tudo era pretexto para que pudesse fazer a diferença. Ignorando os conselhos da mãe, que lhe pedia para que não levasse panfletos para casa, Otília insistia em disseminar a mensagem.
"A minha mãe era uma pessoa que não sabia ler, vivia no Alentejo. De vez em quando, passavam aqueles carros que distribuíam propaganda contra o Governo e eu apanhava tudo e levava para casa. Nessa altura eu era muito pequena. Eu lembro-me de a minha mãe dizer: 'Tu não tragas os papéis, deita fora, porque isto é da PIDE'", afirma.
Esta atitude era um perigo acrescido para uma jovem que morava numa casa frequentemente visitada por um "senhor da PIDE". Otília Vaz "nunca" teve problemas com a polícia. O mesmo não pode dizer de alguns familiares, "que chegaram a ser presos".
Mas esta teimosia em lutar pela liberdade não ficava por aí. A mulher tinha ainda "outra mania" que a podia ter levado ao mesmo destino de muitos presos políticos.
"Eu andava sempre a trautear as músicas do Zeca Afonso e eles diziam-me: 'Não cantes isso na rua.' Mas depois aquilo ficava na minha memória e eu na volta dava comigo a cantar as músicas do Zeca Afonso. Eles diziam-me: 'Tu não cantes, olha que a PIDE um destes dias ainda te prende'", relata.
Esta era também uma época particularmente difícil para as mulheres, "que não tinham direito a fazer nada, nem sequer tinham direito a ter contrato de trabalho". Apesar de reconhecer vários avanços no que diz respeito aos direitos das mulheres, lamenta que a igualdade de género, nos dias de hoje, ainda não seja uma realidade.
"Eu bem luto pela igualdade, mas está muito difícil de conseguir. Mas está quase", expressa, criticando que a população feminina continue a ser "espezinhada".
Após a Revolução dos Cravos, Otília Vaz torna-se militante do PCP, ligação que mantém até aos dias de hoje. No local onde trabalha, diz, é "a única que luta pelos direitos dos trabalhadores".
"Embora neste momento seja considerada — eu não me considero — patroa, porque sou eu que pago, luto sempre que posso [pelos direitos dos trabalhadores", assegura.
Tudo isto faz com que a comunista continue a participar em todas as manifestações "sempre" que pode: "Vou ao 25 de Abril. Vou ao 1.º de maio", enumera.