"Uma tragédia", "um sismo" e "séculos de encobrimento": os 72 anos de abusos sexuais na igreja
Os dados sobre os abusos sexuais na igreja são entendidos pela Comissão Independente como "a ponta do iceberg".
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Após um ano de investigação, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica apresentou, esta segunda-feira, o relatório sobre os casos de abuso sexual na Igreja Católica desde 1950 até 2022.
O grupo de trabalho começou a receber denúncias a 11 de janeiro de 2022. Pedro Strecht revelou que a comissão validou 512 testemunhos de 564 recebidos no total, um número que permite chegar a um número total de vítimas mais extenso e que é de 4815 crianças.
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https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2023/02/tsf_parte_ii_20230213182749/hls/video.m3u8
De acordo com o documento divulgado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, estes dados "devem ser entendidos como a ponta do iceberg".
LEIA AQUI AS CONCLUSÕES DO RELATÓRIO DA COMISSÃO INDEPENDENTE SOBRE OS ABUSOS SEXUAIS NA IGREJA
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"Medo, vergonha e culpa." O que leva as vítimas a silenciar casos de abuso
"Habitualmente, são as vítimas [de abuso] a iniciar o silenciamento, por sentimentos de medo, vergonha e culpa", pode ler-se no relatório. O pedopsiquiatra Pedro Strecht aponta para que seja "uma expressiva minoria" o número das vítimas que revelam os abusos. Quando o fazem, as vítimas "concretizam-no junto de pessoas próximas", dependendo da atitude destas "a evolução futura da situação".
Por outro lado, em fases posteriores da vida adulta, "é necessário suporte psicológico e/ou psiquiátrico para intervir em diversos quadros clínicos, como as perturbações de ansiedade e do humor depressivo ligadas a situações de stress pós-traumático", acrescenta a comissão.
Ainda neste documento, o grupo de trabalho aponta que "o perfil dos abusadores é variado", predominando "adultos jovens com estruturas psicopatológicas, agravadas por fatores de risco como o alcoolismo ou o mau controlo de impulsos".
"Destacam-se as perturbações de personalidade, com facetas socialmente integradas, revelando capacidade de sedução e manipulação. É raro reconhecerem os atos praticados, sem consciência crítica, sendo vulgar darem continuidade aos mesmos. As respostas com sucesso terapêutico são escassas, mas é fundamental ditar o afastamento de cargos ou atividades que impliquem contacto com crianças", acrescenta.
Segundo a psicóloga Ana Nunes de Almeida, membro da comissão, 97% dos abusadores eram homens e em 77% dos casos padres, além de que em 47% dos casos o abusador fazia parte das relações próximas da criança.
Segundo o sumário do relatório, "no caso de abusadores em contexto religioso, o acompanhamento espiritual, embora muito importante, não é suficiente. É necessária uma intervenção psiquiátrica e psicológica intensiva e duradoura".
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Maior parte dos casos já prescreveu
Dos 512 testemunhos, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica enviou para o Ministério Público 25 casos.
No entanto, a maioria destes casos já prescreveu.
De acordo com Laborinho Lúcio, a Comissão Independente não tem de fazer juízos e não tem competência no domínio. O ex-ministro acrescentou que há três tipos de casos, entre os 25 enviados para o Ministério Público, aponta Álvaro Laborinho Lúcio: alguns serão muito simples de investigar e condenar, outros serão mais complexos, outros serão praticamente impossíveis de fechar.
Além disso, comissão independente está a elaborar uma lista dos abusadores que ainda se encontram no ativo que será entregue à Igreja e ao Ministério Público.
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"Será difícil que, a partir de agora, tudo fique igual"
"Não é possível quantificar o número total de crianças vítimas", uma vez que o contacto com a comissão era voluntário, referiu Pedro Strecht, afirmando que "será difícil que, a partir de agora, tudo fique igual" em relação aos abusos sexuais cometidos contra crianças no seio da igreja, em Portugal.
A média de idade atual das vítimas é de 52 anos, "mais baixa do que noutras comissões" e que em 20% dos casos as pessoas têm hoje cerca de 40 anos.
Segundo Pedro Strecht, a maior parte das vítimas são do sexo masculino (52%) e, à época dos abusos, "eram todos estudantes do primeiro e segundo ciclo".
"Há casos em todos os distritos", revelou o responsável, especificando que Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria são os cinco distritos com mais casos, por ordem decrescente.
Décadas de 60, 70 e 80 com maior número de casos
As décadas de 1960, 70 e 80 do século XX foram as que registaram um maior número de casos de abuso sexual no seio da Igreja em Portugal, concluiu a Comissão Independente no relatório esta segunda-feira divulgado.
Segundo a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, a idade média das vítimas é hoje de 52,4 anos, 52,7% são homens, 47,2% são mulheres e 88,5% são residentes em Portugal continental, principalmente nos distritos de Lisboa, Porto, Braga Setúbal e Leiria, "mas os abusos estão espalhados por todo o país".
Dos abusados, 53% continuam a afirmar-se católicos e 25,8% são católicos praticantes.
A percentagem de licenciados é de 32,4%, enquanto 12,9% são pós-graduados.
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Maioria dos casos aconteceu em seminários
Ainda segundo os dados apresentados por Ana Nunes de Almeida, os locais onde a maior parte dos abusos ocorreu foi em seminários (23%), na igreja, em diversos locais, inclusive no altar (18,8%), no confessionário (14,3%), na casa paroquial (12,9%) e em escolas católicas (6,9%).
De entre os abusados que deram os seus testemunhos, 58,6% residiam com os pais na altura dos abusos, 1/5 estavam institucionalizados, enquanto 7,8% pertenciam a famílias monoparentais. Os abusos ocorreram principalmente entre os 10 e os 14 anos de idade (a média era de 11,2 anos, sendo de 11,7 no caso dos rapazes e de 10,5 no das raparigas).
Por outro lado, 57,2% foram abusados mais do que uma vez, e 27,5% referiram que os abusos de que foram vítimas duraram mais de um ano.
No caso dos rapazes, um "padre" foi o abusador em 77% dos casos.
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"Séculos de encobrimento"
Concluído o trabalho da comissão independente criada para investigar os abusos sexuais na Igreja católica, a teóloga Teresa Toldi sublinha que este estudo era absolutamente "necessário". Referindo-se ao histórico de "séculos de encobrimento", tem além disso também outra dimensão.
"Está acima do cumprimento da lei. Está acima da legislação do estado de direito, que essa não lhes aplica. O encobrimento revela esta impunidade", considera Teresa Toldi.
A teóloga sublinha ainda um outro aspeto "duplamente perverso" que diz respeito à ideia de que podemos olhar para isto do "ponto de vista do pecado". "Sim, é pecado, mas é crime e a igreja não pode ser cúmplice com crimes."
"Normalmente são as pessoas mais vulneráveis que são atingidas, exploradas, abusadas. E isso é absolutamente contrário à mensagem fundamental do cristianismo", acrescenta.
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"Isto é um verdadeiro sismo dentro da igreja"
"Desolado", o padre Anselmo Borges considera que o relatório apresentado, esta segunda-feira, pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica "é uma tragédia".
"Como é que é possível na igreja ter acontecido tudo isto, nomeadamente, com padres, com o chamado clero?", questiona Anselmo Borges, em declarações à TSF, considerando que "é preciso renovar completamente a igreja".
"Acabar com o celibato obrigatório. Os miúdos iam para o seminário e depois, pura e simplesmente, a sua formação era contra a presença da mulher, não havia presenças femininas nos seminários e a grande tentação era o sexo, por isso mesmo houve uma repressão do sexo e isto criou, eventualmente, nalguns casos, uma sexualidade distorcida", defende.
O padre Anselmo Borges explica que é necessária "ajuda espiritual, psiquiátrica e, eventualmente, financeira".
"Muitas destas vítimas viram a sua vida destroçada, interrompida e agora precisam de ser reparadas. A igreja tem de reparar toda esta tragédia, isto é um verdadeiro sismo dentro da igreja e [é preciso] reconstruir a partir da base", sublinha.
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Especialistas defendem criação de nova comissão "para continuidade do estudo"
A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica defende a constituição de uma nova "comissão para continuidade do estudo e acompanhamento do tema", com membros internos e externos à Igreja.
A Comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht recomenda "o reconhecimento, pela Igreja, da existência e extensão do problema e compromisso na sua adequada prevenção futura", nomeadamente através do "cumprimento do conceito de 'tolerância zero' proposto pelo Papa Francisco".
A adoção do "dever moral de denúncia, por parte da Igreja, e colaboração com o Ministério Público em casos de alegados crimes de abuso sexual", o pedido "efetivo de perdão sobre as situações que aconteceram no passado e sua materialização", bem como a "formação e supervisão continuada e externa de membros da Igreja, nomeadamente na área da sexualidade (sua e das crianças e adolescentes)", são outras recomendações que a comissão deixa à hierarquia da Igreja Católica em Portugal.
Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a própria sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países, com alegados casos de encobrimento pela hierarquia religiosa a motivarem pedidos de desculpa, num ano em que a Igreja se vê agora envolvida também em controvérsia, com a organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.
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