Mais do que um "ganha - pão", o contrabando foi, durante algumas décadas do século passado, um modo de vida de várias localidades de fronteira. Pela calada da noite, grupos organizados transacionavam vários produtos para um e outro lado da fronteira com Espanha.
Corpo do artigo
Vilarelho da Raia, no concelho de Chaves, sempre foi uma aldeia conhecida como um dos principais locais de contrabando. Foi lá que este fim de semana uma empresa de turismo recriou, com a ajuda dos habitantes, uma dessas noites e não faltaram os guardas-fiscais e os carabineiros.
Os preparativos, com os cerca de 50 inscritos, portugueses e espanhóis, começaram em frente ao Centro Social e Cultural de Vilarelho. São divididos em dois grupos com os respetivos guias, pessoas da aldeia que estiveram no contrabando.
TSF\audio\2018\02\noticias\26\afonso_de_sousa_contrabando_13h
Os grupos começam por ir buscar os "fardos" a um local definido na aldeia. Sempre em fila avançam em silêncio pelos trilhos definidos. É num desses caminhos que um dos mais conhecidos contrabandistas de Vilarelho. Belmiro Praça tem 84 anos e muitas estórias para contar. "Desde a idade de 16 anos fiz sempre contrabando. Levávamos café para lá e de lá trazíamos amêndoa e tecidos".
E não faltava o bacalhau. Numa primeira fase transacionavam produtos alimentares e vestuário. Depois e porque o regime não permitia a saída de gente livremente, passavam pessoas, principalmente para França e outros países da Europa.
Belmiro conta com orgulho as estórias dum modo de vida da época de muita gente que vivia perto da fronteira. Não se queixa do contrabando, queixa-se dos bufos. "Não eram daqui. Eram de Chaves e de outros lados. Faziam com que nos apanhassem o que levávamos ou trazíamos. Eu fiz a minha casa com o contrabando e muitas outras coisas".
Vilarelho da Raia viu passar muita gente anónima mas também conhecida. Alguns presos políticos também ali fizeram os trilhos de fuga. Um bem conhecido foi Álvaro Cunhal. "Passou ali no cimo da aldeia e depois esperaram-no do outro lado e levaram-no para França", conta emocionado.
Voltemos agora aos nossos contrabandistas... Seguem ordeiramente pelos trilhos com fardos às costas e em silêncio. O primeiro grupo leva uma senhora com uma burra carregada com os alforges cheios. A certa altura dá-se o pior, aparecem os guardas-fiscais. ( tiros e palavras de ordem)
A senhora e a burra ficaram presas, outros fugiram. Um dos guias, outro contrabandista conhecido da aldeia é Manuel Rente. "Tinha 14 anos quando fui pela primeira vez e ficaram-me logo com o que levava. Era uma das partes da frente dum camião. Aqui toda a gente fazia vida disso, até o Santo que está lá em cima", diz soltando uma gargalhada
Que os abençoava. Os guardas-civis em Portugal e os carabineiros em Espanha eram o grande problema dos contrabandistas. José Campos está ali, numa das encruzilhadas para ajudar o grupo a fugir à guarda, como nos tempos dele.
"Havia os guardas bons e os maus. Uma vez dois apanharam um rapaz com bacalhau e o mau disse: - Ficamos com o bacalhau. Mas o outro respondeu: - Não que não temos azeite para o temperar. Passados uns tempos apanharam outro que levava azeite. O guarda mau disse: - Agora ficamos com o azeite. E o bom respondeu: - Para quê? Não temos bacalhau!"
Pelo meio de peripécias os dois grupos, que recriam o contrabando chegam ao outro lado, à aldeia de Rabal, em Espanha. Lá entregam o fardo e recebem uma senha com o pagamento. Dão-lhe também o pequeno-almoço, um copo de vinho e uma lasca de presunto. Lídia Silva veio de Guimarães. "Adorei. Não conhecia. Fiz o percurso todo e recomendo".
Também Susana Diegues de Verin percorreu os trilhos todos. "Está de parabéns a organização. Está tudo muito bem e dá para perceber o quão difícil era viver assim no tempo dos nossos avós"
De Santiago de Compostela, chegou António Fernandes. Recomenda a experiência. "Uma coisa é ouvirmos falar do que era, o que passavam e toadas as dificuldades e outra é passar um pouco daquilo que eles passavam. Foi muito bom".
Encantado com a experiência ficou o vila-realense António Rodrigues da Silva. " Há aqui gente de todo o pais e Espanha. Revivemos de uma maneira ativa os caminhos do contrabando. Era bom que as escolas oferecessem estas experiências aos miúdos".
Toda a aventura termina já no quartel da Guarda Fiscal onde são ouvidos os que foram apanhados. A fazer de Guarda Civil espanhol esteve António Luzio, também ele um ex-contrabandista. Diz que vestir a farda verde não o arrepiou. "Não, mas fazer isto outra vez deixou-me muito satisfeito, embora desta vez estivesse do outro lado (risos)".
Na recriação patrocinada pela Douro Wellcome ninguém ficou no posto, ficaram foi presos à iniciativa. Suzete Santos da empresa de turismo diz que a atividade é boa para todos. Para os que vêm de fora e não conhecem e para os da aldeia que vivem e revivem o que passaram na altura"
Para este ano já há mais recriações do contrabando agendadas e algumas para escolas. A primeira de 2018 terminou com um almoço em Vilarelho da Raia onde todos, contrabandistas, guardas e civis puderam saborear uma refeição tradicional sempre com temperos de muitas histórias do contrabando.