João Mota, 78 anos, o velho: "Eu sou velho". O velho João Mota está de pé, como as árvores. Ele não morre por dentro, renasce todos os dias, e celebra a vida, abanada hoje pelo vírus que habita o mundo que nos rodeia: "As pessoas têm de se habituar a gostar de viver, e não há nada melhor. Depois, acabou."
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João Mota prepara o último papel, revisitando a figura de Freud, no texto do dramaturgo belga Eric-Emmanuel Schmitt, premiado em 1994, com o prémio Moliére, "FREUD E O VISITANTE". O cenário vai ganhando formas e cor, no tempo de uma Viena ocupada pelos nazis, e de um homem tomado por uma outra doença. Será este homem com um cancro que João Mota vai reencarnar, vestindo a pele do actor, uma última vez.
A peça cuja estreia estava marcada para o próximo dia 27, Dia Mundial do Teatro, foi arrastada pelo confinamento e está agora prevista para o mês de Abril. Até lá, e enquanto os ensaios decorrem, conversamos no silêncio do Café Teatro da Comuna.
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"Estar sozinho é importante, estar consigo próprio, é muito importante. Habituarmo-nos a pensar na vida novamente, e tão curta que ela é", é neste dizer que o homem fundador da Comuna atravessa a pandemia.
Pode faltar vida no teatro, forçado a fechar as portas, mas as dores, estas e as outras fazem parte do caminho: "Saber o percurso que vamos fazendo, e as derrotas que vamos tendo para continuar." Não há varizes, nem cistos, ou anemia, que o derrubem. João Mota continua a ser aprendiz, mesmo sendo o mestre. No excerto de uma conversa maior, que hoje publicamos, também, ele recorda os mestres, Peter Brook, o conceituado encenador, com quem trabalhou em França, Arquimedes Silva Santos, o poeta e escritor neo-realista , "estes deram-me a volta", tal como Dona Ema, a professora cabo-verdiana, e antes ainda, na instrução primária, Dona Joana, com quem ensaia "o discurso da vassoura", nos dias a seguir à eleição de Craveiro Lopes, para a Presidência da República.
Pelo meio, a guerra: "Vi colegas a morrer ao meu lado, e dou por mim a dizer: 'ainda bem que não fui eu'. Claro que é o instinto da sobrevivência, mas é horrível".
É na Emissora Nacional que João Mota ensaia as primeiras deixas, e é à rádio que gostaria hoje de voltar para desafiar jovens para o milagre da arte de representar.
Agora, com o cabelo puxado para trás, penteando a personagem que há de vir, o velho sabe como nos enfeitiçar com as palavras. Respira este mundo e o outro. 78 anos de vida, quase tantos como de teatro.
"O lugar mais importante da Comuna e do mundo, e para mim, como actor, como encenador ou director, é sempre o real, o mundo lá fora, e não o palco." É a partir desta frase de João Mota que celebramos a vida, e o teatro.