"A minha mãe reformada é a minha Segurança Social"
São duas vozes mas que não representam apenas duas histórias. Dentro delas, repetem-se tantas outras de trabalhadores do setor da cultura, de precários e da aflição de, neste momento, não se ter trabalho. São os retratos de José Vilela e de Joana Saraiva, dois trabalhadores da cultura imersos na burocracia e que, sem auxílio, apoiam-se nas próprias mães.
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É com um sorriso que atendem o telefone, apesar de as suas situação não serem dadas a grandes gargalhadas. Joana Saraiva é audiodescritora, professora de teatro e atriz, trabalha também em projetos de cariz comunitário como técnica e mediadora cultural: está por estes dias praticamente sem trabalho. Já José Vilela está totalmente parado. É um trabalhador a recibos verdes há 15 anos na Casa da Música, onde desempenha as funções de técnico de palco, e desde setembro que nem um cêntimo lhe cai na conta.
"Sempre passei recibos para a Casa da Música, a 100%, durante 15 anos", começa por contar lembrando que transitou com a Orquestra Nacional do Porto, com quem trabalhava antes, quando em 2005 passaram para a Casa da Música.
Sem um contrato de trabalho, o que já é complicado numa situação normal, piora numa situação de pandemia. Quando no ano passado o primeiro confinamento obrigou à paragem de atividades culturais, José Vilela conseguiu do Estado o apoio extraordinário.
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"De março até agosto tive direito ao apoio extraordinário, mas eram só seis meses. Depois não tive mais apoio nenhum, mas eu só pedi o apoio porque pensava que a Casa da Música me ia dar trabalho e para ter o apoio também tive de manter a atividade aberta. Só não fechei porque pensava mesmo que a Casa da Música ia dar-me mais trabalho...", nota este técnico de palco que, afinal, não chegou a receber mais pedidos.
No entanto, teve de facto uma carga de trabalhos, mas de outra ordem: sem emprego, sem apoios, sem dinheiro, quis aceder ao subsidio de desemprego e começou toda uma saga burocrática com paragens na Segurança Social, na Autoridade para as Condições do Trabalho, no Centro de Emprego, na Segurança Social, nas Finanças, na Segurança Social, nas Finanças, na Segurança Social, novamente nas Finanças e, por fim, na Segurança Social.
"E nada... [O pedido] ainda está em análise na Segurança Social direta", destaca um pouco resignado José Vilela que, ao longo de semanas, andou numa odisseia entre instituições para conseguir aquilo que lhe é devido. Ora faltava um papel, ora uma declaração de rendimentos que ainda não podia ter porque não havia preenchido o IRS de 2020 (e que ainda ninguém preencheu), ou até mesmo porque a Casa da Música não passou uma declaração de que ele já lá não colaborava, apesar de também não o chamarem para colaborar.
Lembra este profissional na conversa com a TSF que, durante os últimos 15 anos, nunca falhou nas contribuições. "Tenho tudo em dia, paguei sempre a Segurança Social, paguei sempre entre 100 a 300 euros todos os meses e é isso que não compreendo. A gente paga todos os meses Segurança Social e agora a Segurança Social não nos dá nada, onde está esse dinheiro?", questiona-se sem ter, para já, quaisquer respostas. Entretanto, avançou com uma ação em tribunal contra a Casa da Música na esperança de poder ter uma luz ao fundo do túnel.
Ora, José Vilela está afastado dos palcos, mergulhado em burocracia, um panorama também conhecido por Joana Saraiva que, em 2020, quase parece ter entrado numa adaptação livre do "Processo" de Franz Kafka.
"Cai-se nuns loops kafkianos, de facto, em que não se consegue trabalhar, não se consegue pedir o apoio, não se consegue pagar a dívida nem receber o pouco que se podia porque se tem dívida...", conta esta trabalhadora ligada ao teatro que recorda o que lhe aconteceu em 2020 e que se "prepara para acontecer novamente".
Foquemos na dívida mencionada, no caso, à Segurança Social: tudo acontece por ter "trabalhado relativamente bem e ter tido um rendimento razoável" no último trimestre do ano, sendo que Joana coloca a tónica na palavra razoável - "porque é mesmo só isso, o suficiente para pagar contas".
"De repente, sai a nota de incidência tributária em janeiro quando já estamos confinados, determina as minhas contribuições mensais numa altura em que já não estou a receber e a escola, que me quer pagar apesar de estarmos sem aulas presenciais, não me pode pagar porque tenho uma dívida à segurança social", conta Joana Saraiva sublinhando o loop de que "não paga a dívida porque não ganha e não ganha porque não paga a dívida".
Mas se o problema pessoal é grave, Joana Saraiva também considera grave aquele a que chama de "desconhecimento do setor" por parte do Ministério da Cultura.
"A tutela não conhece o setor na sua enorme diversidade e enorme complexidade e nas várias especificidades que essa diversidade implica. Daí que o mapeamento seja fundamental e o mais rigoroso possível, de forma a que se possa prever uma data de situações que depois têm como consequência estas histórias kafkianas de pessoas que não são contempladas por apoio nenhum, que estão sistematicamente excluídas de tudo e mais alguma coisa, [sendo] essa exclusão uma das consequências da precariedade e da complexidade deste setor", refere partindo para um exemplo concreto de uma das suas profissões.
"Por exemplo, como audiodescritora, enfrento logo à partida um problema que se prende com a não-regulamentação da profissão. A audiodescrição, por não estar regulamentada, faz com que ela esteja fora daquilo que foi definido como política de cancelamentos e que prevê o pagamento dos espetáculos cancelados", realça Joana Saraiva acrescentando ainda os casos dos frentes de sala ou os intérpretes de língua gestual.
Ou seja, retribuição zero. O que leva à pergunta de "como é que se vive assim?"
"Ajudas. Ajudas da família, nos casos em que a família pode, no meu caso pode pouco, mas vai podendo alguma coisa... E ajudas de amigos", destaca lembrando o caso de um deles que lhe pagou a dívida de 2020 à Segurança Social.
"Foi paga por um amigo que tem mais dinheiro do que eu e que, às tantas, percebeu que eu não conseguia receber da escola para a qual tinha estado a trabalhar, entretanto online, mas que não conseguia receber por causa da dívida, e achou que me podia fazer esse favor de ma pagar. São mecanismos de solidariedade entre colegas, pares, amigos, família...", aponta Joana Saraiva.
Mas há também a mãe, aqueles que podem, também têm a própria mãe. Joana Saraiva vinca que aquilo que está a ser pedido "não é nada de especial", é apenas o devido pelas contribuições que foram sendo feitas ao longo dos anos para que, num momento em que não é possível trabalhar, não tenha de ficar dependente "das idas ao supermercado da mãe". "Tenho 43 anos, já não me acontecia desde os 20... Não pode ser", lamenta.
O mesmo acontece com José Vilela que só tem conseguido viver com a ajuda da mãe. "Neste momento, a minha mãe reformada é a minha Segurança Social", diz entre risos que deixam transparecer alguma tristeza.
Em seguida complementa: "E a minha irmã que tem um café-restaurante e, sempre que pode, traz comida para mim, para a minha filha e para a minha namorada. É assim... A minha mãe ajuda-me a pagar as contas, a creche da minha filha, a água e a luz, essas coisas...", conta o técnico de palco com uma história como a de muitos filhos da cultura em Portugal a quem lhes valem as mães quando o Estado falha em dar a mão.
