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"O procedimento passou a ter uma nuance." É desta forma que a auditoria preliminar aos processos de comunicação prévia para a realização de manifestações no município de Lisboa demonstra que o gabinete de apoio a Fernando Medina sabia, desde 2018, que dados pessoais eram enviados para embaixadas.
De acordo com o documento a que a TSF teve acesso, fica claro que os procedimentos mudaram em "meados de 2018": não só continuaram a informar as embaixadas que iam ter manifestações nas imediações, mas também aquelas que eram visadas pelos protestos ainda que noutro local.
"Sem prejuízo de não se ter encontrado qualquer ordem superior a determinar a alteração do procedimento, o núcleo do Gabinete de Apoio ao Presidente passou a adotar a prática de remeter o aviso não só para outras entidades de acordo com a localização da realização da manifestação, mas também para as entidades visadas, designadamente as embaixadas", lê-se no documento de 47 páginas que foi pedido com caráter de urgência por Medina.
E "nuance" é também uma palavra-chave nesta história e que pode ilibar Fernando Medina de ter tido conhecimento prévio: tudo por causa das nomenclaturas utilizadas pela Câmara de Lisboa. O gabinete de apoio à presidência é uma estrutura informal que está na dependência direta da Secretaria-Geral da autarquia e não do próprio presidente (vulgo gabinete do presidente). Neste caso, são trabalhadores que prestam apoio ao expediente da presidência e da vereação municipal.
Também em 2018, "por força da entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados, o município de Lisboa levou a cabo um esforço substancial de adaptação das suas práticas de tratamento de dados a esse regulamento", mas houve um ponto que ficou de fora do esforço para que as práticas da Câmara cumprissem as normas.
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À época foi criada uma equipa de missão "especificamente para a acompanhar a implementação deste processo", mas houve um senão: as manifestações ficaram de fora do levantamento.
Nas conclusões da auditoria preliminar, documenta-se que "no âmbito dos levantamentos feitos por esta Equipa de Projeto e pelos vários pivôs identificados nos vários serviços, nomeadamente no âmbito do levantamento realizado pela Secretaria-Geral da Câmara Municipal de Lisboa, o procedimento respeitante ao tratamento de avisos de manifestação não foi contemplado no Privacy Impact Acessment". E quem é o responsável? Não se identifica nesta auditoria.
Costa emitiu despacho que serviços não cumpriram
Sendo público que a análise feita pelos serviços internos do município versou sobre todos os processos levados a cabo desde 2012 até à atualidade, fica agora patente que António Costa, na qualidade de presidente da Câmara, tentou travar a divulgação de dados a embaixadas, mas não teve sucesso, mas já lá vamos.
O relatório lido pela TSF identifica três momentos: "a partir de 2012", "a partir de finais de 2013" e de "2018 aos dias de hoje" e que já foi descrito acima.
No primeiro momento, constata-se que "a prática seguida pelo Gabinete de Apoio ao Presidente foi o envio das comunicações de manifestação rececionadas para o Ministério da Administração Interna, para a PSP (...) e ainda para as entidades onde se realizariam as mesmas, na sequência de uma definição de procedimento que terá envolvido - em termos que não foi possível apurar em profundidade - a Secretaria Geral do Governo Civil, bem como a Polícia de Segurança Pública".
Nessa altura, o entendimento dos serviços, como "o Protocolo estabelecido não referia qual a informação que devia ser transmitida, mas fazia referência ao reenvio do aviso", foi o de encaminhar as comunicações que chegavam à autarquia "na sua versão integral" e sem "qualquer operação de expurgo dos dados pessoais".
Além disso, no protocolo elaborado pela autarquia ficava também patente que o governo recebia, ao mais alto nível, as comunicações sobre as manifestações. Não só o MAI, mas também o gabinete do ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, como também o gabinete do próprio primeiro-ministro. À época, Pedro Passos Coelho.
Tal procedimento deveria ter acontecido até 2013 quando "foram feitos alguns ajustamentos ao procedimento que havia sido estabelecido em 2012, dando origem a novas minutas de articulação com os promotores e com as entidades externas anteriormente referidas". A partir de então, os dados deveriam ser enviados apenas para o Ministério da Administração Interna e para a PSP.
O despacho assinado por António Costa "deu origem a uma reformulação dos protocolos de procedimento nos quais está implícita a supressão de envio de um conjunto de informações e comunicações, mormente a embaixadas, bem como promove a adaptação das minutas anteriormente em uso". No entanto, tal não aconteceu e não se sabe o porquê.
"A prática que se seguiu a este despacho, em 2013, contemplou apenas uma alteração das minutas que eram utilizadas nas comunicações com as várias entidades, tendo-se mantido inalterado o elenco de entidades às quais os avisos de manifestação eram comunicados, por razões que não foi possível identificar no âmbito da presente auditoria sumária", lê-se. Ou seja, todas as entidades elencadas acima recebiam a informação, gabinete do chefe de governo incluído.
Rússia, Arábia Saudita, China, Turquia, Irão
Na conferência de imprensa que deu na semana passada, Fernando Medina informou, de forma geral, que dados privados tinham sido facultados a embaixadas em 52 protestos desde 2018. O que não revelou foi a quantidade de vezes para as representações de cada país e que países eram esses.
Numa extensa lista que vai até 2012, é possível constatar que além de países europeus, a Câmara de Lisboa enviou dados de manifestantes para representações diplomáticas de países como Arábia Saudita, China, Turquia, Irão, Israel, Angola, Estados Unidos, entre muitos outros.
No caso da Rússia, que espoletou toda esta polémica, foram enviados dados relativos a 11 protestos desde a implementação do RGPD, ou seja, desde 2018. Se formos além, até 2012, foram enviados dados relativos a 27 protestos.
*Notícia atualizada às 11h13 - Clarificação acerca do Gabinete de Apoio ao Presidente que é uma estrutura diferente do Gabinete do Presidente, apesar das semelhanças na nomenclatura. "Este gabinete corresponde a uma estrutura informal com trabalhadores que prestam o apoio ao expediente da Presidência e Vereadores. Os trabalhadores estão afetos à Secretaria-Geral, mais concretamente ao Departamento de Apoio aos Órgãos e Serviços do Município".