"Para o Partido Socialista, o Chega é o Euromilhões"

Entrevista a Francisco Louçã, economista e antigo líder do BE.

A sociedade portuguesa está profundamente polarizada e a degradação da organização política favorece o crescimento da extrema-direita. Se o PS tem promovido André Ventura e o PSD está dividido quanto a uma aliança que "fará sem um minuto de hesitação", cabe à Esquerda combater o extremismo, ocupando o campo social e dando respostas aos problemas diários das pessoas. O grande ideólogo do Bloco de Esquerda evita comentar a mudança de liderança, mas assegura que o partido continuará a falar para milhões de pessoas e não para pequenas causas.

Dez anos depois, Catarina Martins abandona a liderança do Bloco de Esquerda. É uma saída inevitável, após um apoio ao poder que acabou por produzir um único vencedor, o PS?

Acho que essa análise, que tenho visto reproduzida em alguns casos, não tem nenhum sentido. Não tinha nenhuma responsabilidade na direção do Bloco quando as eleições de 2015 determinaram aquela situação de desequilíbrio em que o Partido Socialista não tinha ganho, não era maioritário, mas poderia formar uma maioria com os dois partidos à sua esquerda, mas apoiei com muito entusiasmo, porque achei que era uma mudança de que o país precisava, precisava de respirar. Foi um governo estável com negociações muito difíceis. Talvez falemos sobre isso, porque nos ensina alguma coisa sobre relações políticas num contexto de uma política de governação. E disso ganhou o país. Pensar que pode haver ganhos políticos imediatos, contraditórios com o facto de haver uma resposta fundamental ao país, acho mesquinho e falso. As eleições seguintes foram em 2019. O PS quis ver-se livre dos partidos à esquerda e não ganhou a maioria absoluta.

Não foi essa a perceção dos portugueses quando o Orçamento do Estado foi chumbado e isso levou à maioria absoluta.

Isso estamos a falar de 2022. O balanço das eleições de 2015 fez-se em 2019. E bem se pode ocultar o que aconteceu, mas a verdade aconteceu mesmo. O PS declarou que queria ver-se livre dos empecilhos de Esquerda - foi a frase que usou o presidente do partido -, queria maioria absoluta, não a ganhou. E o Bloco de Esquerda, aliás, manteve os seus 10%. Portanto, o balanço que os eleitores fizeram daquela experiência foi que ela era útil e que a Esquerda era necessária.

Daniel Oliveira, que conhece bem o partido, já comentou a provável sucessão e afirmou que "Mariana Mortágua tenderá mais a polarizar o Bloco". Partilha desta leitura, ou vê outros nomes que possam ser mais indicados para um novo ciclo no partido?

Não sei bem o que é que ele quer dizer com polarizar. A Mariana não tomou a decisão ou não a tornou pública. No Bloco, as candidaturas são anunciadas quando uma moção é concluída e apresentada a lista.

Há excesso de entusiasmo da Comunicação Social com esse nome?

A Comunicação Social faz as análises com os dados que tem e está bem informada sobre a vida de um partido que é muito transparente do ponto de vista público. Há outras pessoas que têm grande relevância e têm provado extraordinariamente. A Marisa Matias não oferece qualquer dúvida, e outras pessoas, não são só mulheres. Mas essa decisão será tomada por cada uma das moções. Mas voltando à questão, o que quer dizer polarização? A sociedade portuguesa está profundamente polarizada. Para já, porque tem uma maioria absoluta. Há uma grande mudança na Direita, que é a polarização, que é o facto de o PSD hoje já não representar senão uma parte de um espaço fragmentário em que há polos fortes da Iniciativa Liberal e do Chega. E naturalmente há uma polarização social, porque há um empobrecimento e um aumento da desigualdade, mas há sobretudo um país subterrâneo e escondido que é prova de polarização.

Há um risco de o Bloco se extremar à esquerda e se radicalizar?

Não consigo perceber muito bem o que quer dizer a palavra radicalizar, que foi transformada numa espécie de acusação. Ouvi uma declaração do primeiro-ministro que acho que é das mais radicais que se pode fazer em política portuguesa, que é esta: há uma lei que determina que professores e outras carreiras da Função Pública têm uma progressão e uma estrutura salarial que depende do tempo de serviço. E essa lei não vai ser cumprida. Estamos num Estado de direito! Isto é violentamente radical. Nós não cumprimos a lei. É uma forma muito violenta de usar o poder para criar desigualdade.

Voltando ao partido, Francisco Louçã é o grande ideólogo do Bloco e desde então as lideranças têm sido reprodutoras sociais. Não teme que o BE se radicalize no sentido de deixar de tocar o todo e focar-se apenas numa parte da sociedade?

Quando saí da direção, há mais de dez anos, ficaram a Catarina e o João Semedo, que infelizmente morreu. A Catarina tomou esse papel de uma forma extraordinária, até muito melhor do que eu fiz e teria feito. Já na altura surgiu essa ideia de que ela era a reprodutora, coisa que agora se volta a dizer. Tenho a certeza que isso nunca se diria se tivesse sido um homem e não uma mulher. E o que hoje ouço sobre a possibilidade de ser a Mariana é exatamente a mesma reprodução. Isso nunca ninguém se atrevia a dizer se fosse um homem. Isto tem importância do ponto de vista da cultura democrática, ainda por cima porque a Catarina provou que era totalmente capaz de fazer uma negociação com um governo, com as dificuldades que tem negociar com o António Costa, que não é nada fácil.

E a segunda parte da resposta?

Os grandes debates que é preciso travar são sobre os impostos, sobre como é que as pessoas vivem, sobre as suas condições, sobre a dignidade da sua vida, o emprego, o salário, a pensão, a garantia, a habitação. Pensar que o Bloco se vai concentrar em algumas pequenas questões não tem nenhum sentido.

As sondagens mostram que mesmo com o Governo em crise a Esquerda não ganha e a Direita torna-se maioritária. Qual é o posicionamento para recuperar o terreno perdido? Porque o que se diz é que o que levou o Bloco a ter protagonismo na sociedade portuguesa foi a defesa de causas. Que causas são as de hoje?

Há 17 anos, em 2006, José Manuel Fernandes, então diretor do "Público", fez um editorial a dizer que as causas do Bloco acabaram, estagnou. Na altura tinha três deputados. Depois disso, foi aprovado em referendo o direito das mulheres interromperem a gravidez, se assim o entendessem, foi aprovado o casamento gay, foi aprovada a paridade entre homens e mulheres, foram aprovadas muitas das causas, muitas vezes apontadas como pequeninas e que representam só a maioria das pessoas. Agora, o que o Bloco fez, e creio que mostrou nesses anos da geringonça, e aquilo que continua a mostrar agora, é que a resposta que tem de dar é para a maioria da população, é para milhões de pessoas. As pessoas com crédito à habitação têm de ser o povo do Bloco, como têm de ser os trabalhadores por turnos, como têm de ser as enfermeiras e os médicos que batem sempre à porta para não conseguirem entrar em carreiras de exclusividade, num Serviço Nacional de Saúde que está a ficar depauperado e destruído. Se pudesse pôr isto em duas palavras, dar vida justa, ou dar vida digna às pessoas, no respeito pelo seu trabalho, é o objetivo da Esquerda.

Quando olhamos para a Oposição, admite que temos alguma dificuldade em identificar o rosto da Oposição?

A Oposição não tem um rosto, porque tem uma Esquerda e tem uma Direita. Nós temos o gritão mais bem-sucedido da história do Parlamento português, André Ventura, que resumido em alternativas se apresenta com um programa para acabar com a escola pública e com a saúde pública e depois votará conforme as circunstâncias, sem qualquer norma.

Os partidos e o presidente da Assembleia da República têm lidado de forma adequada com o Chega?

Acho que se pode fazer a mesma pergunta a toda a sociedade. A minha resposta é que não. Há estratégias diferenciadas. Para o PS, o Chega é o Euromilhões. Porque entende que, na falta de uma resposta social, a possibilidade de convocar o medo como argumento político é um seguro de vida.

Mas não é o Partido Socialista que convoca o Chega como eventual parceiro para o futuro, direta ou indiretamente.

Com certeza que não. Estou a falar de coisas diferentes. O PSD está dividido e paralisado sobre o risco de ter de fazer um acordo com o Chega, que, na minha opinião, fará sem um minuto de hesitação se as circunstâncias assim o empurrarem ou lhe permitirem. O PS utiliza o Chega de outra forma, não para se aliar, mas para se opor. Para usar o Chega junto dos eleitores de Esquerda que detestem a política social do PS e dele desconfiem, mas que possam ser puxados pelo medo de que haja uma maioria de Direita junto com o Chega.

Nesse discurso de medo, o PS tem contribuído para fazer crescer o Chega?

Absolutamente. Mais do que isso, António Costa, deliberada e sistematicamente, usa o Parlamento para promover André Ventura como o seu contraponto. E, portanto, aí tem um rosto à direita. Montenegro tentará ocupar esse espaço. O rosto à esquerda foi a Catarina Martins.

Como é que se trava um fenómeno que ainda não deu sinais de desaceleração?

Há uma teoria do campo fechado, da fronteira, fechar a porta. Na verdade, ela não funciona. Porque todos os que a sugerem acabam por ser os primeiros a violá-la, vide Augusto Santos Silva e o Partido Socialista. Começaram por dizer "ignoremos" e agora usam o "sublinhemos". Porque, na verdade, esse espaço não vai desaparecer. São os fantasmas que estão escondidos na política da Direita portuguesa e que saíram de dentro do armário. O racismo, o ódio como uma forma de constituição de discurso, a organização de uma identidade agressiva, a desigualdade profunda, a promoção de negócios, isso já cá estava. Estava escondido, aparece e, portanto, pode crescer.

E os casos e casinhos, para usar a expressão que ficou, têm sido um pasto de que se alimenta o discurso populista?

Claro que sim. Toda a degradação da organização política, da democracia e da estrutura de decisão favorece esse discurso populista.

Quando pensa no período em que esteve no Parlamento, sente que houve uma degradação da própria função parlamentar?

Há investigações em curso e veremos o que elas dizem. Habituarmo-nos a uma velocidade das conclusões sobre a justiça que seja a da comunicação ou da perceção pública é perigoso. A justiça é muito lenta, isso é verdade, mas não é o facto de uma pessoa ser constituída arguida ou uma investigação que a torna culpada. Eu digo isto por uma razão de precaução. Já tenho visto coisas muito diferentes e não vivemos numa noite em que todos os gatos são pardos, em que todas as coisas são iguais.

Mas o risco é precisamente essa perceção de que todos os políticos são iguais.

Exatamente. E o risco é maior do que isso, é eu ver num órgão de Comunicação Social uma transcrição pirata de um determinado interrogatório ou um arguido que está em segredo de justiça. Acho isso chocante, mesmo que eu tenha a pior das impressões, certa ou errada, sobre a pessoa que está a ser interrogada. Acho lamentável que possa haver coisas dessas. Isso foi acontecendo na sociedade portuguesa e é sempre uma forma de manipular os jornalistas, porque lhes é oferecida uma frase fantástica, mas não se sabe o seu contexto. A possibilidade de utilizar esta vertigem da comunicação imediata sobre casos em que a informação é manipulável porque não está toda disponível e não pode ser tratada de uma forma profissional é um perigo para a Comunicação Social e para a opinião pública. De qualquer modo, independentemente desse tipo de tiques, é verdade que há uma grande degradação da estrutura pública e da capacidade de decisão.

Há uma responsabilidade da Esquerda no crescimento de partidos populistas, nomeadamente na forma como os sindicatos deixaram de criar laços com os trabalhadores e estes tiveram de procurar laços noutro lado?

De facto, as duas questões estão relacionadas. Há uma enorme responsabilidade de toda a Esquerda e isso está relacionado com o que pode ser a solução não fracassada da resposta ao populismo de Direita. Se a Esquerda quer enfrentar o populismo de Direita, só o pode fazer com uma ocupação do campo social. Ou seja, com a polarização, para utilizar uma palavra sobre a qual estávamos a conversar, que abranja a grande maioria das pessoas que trabalham e que querem ter a certeza que a sua pensão está protegida, que não há benefícios fiscais extraordinários, que não há borlas, que não há truques, que é um país que vive com limpidez e responde às suas dificuldades. E nisso os sindicatos têm uma grande importância. Mas há uma dessindicalização e um descrédito que vêm de trás. O sindicalismo partidário hoje está morto, não pode ressuscitar, não ressuscitará, não tem nenhum sentido que haja esse tipo de vinculação partido-sindicato. Os sindicatos têm de ser reinventados por isso mesmo.

O pacote de habitação apresentado esta semana não agrada nem à Esquerda, nem à Direita, que critica os ataques à propriedade privada. Esta é uma guerra que irá acabar nos tribunais?

As medidas estão muito pouco explicadas e era preciso mais do que uma operação de propaganda do Governo para perceber realmente o que quer. Estas medidas nascem de um desespero. Em 2019, António Costa prometeu 26 mil casas, para as exigências mínimas de quem não tem nada, não tem nenhuma habitação condigna, repetiu em 2022, e era para 2024, ou seja, para amanhã, não vai cumprir essa promessa.

Mas vê algumas virtualidades nalguma medida?

A primeira é sentir a obrigação de responder a esta necessidade, mas o plano não tem nenhum número, nenhum objetivo. Responder em si é fundamental. E procurar programas que possam fazer uma cooperação entre o Estado e senhorios, pagando o custo da reabilitação, alugando-as durante um período para recuperar os custos, parece-me muito razoável. Construção pública é indispensável, sem isso não haverá rendas controladas e até agora há um fracasso absoluto desse ponto de vista. Sem haver um controlo de rendas não haverá capacidade de determinar a função dos preços. O problema é que o Governo, mesmo quando anuncia medidas que são tão discutidas como as que surgem agora, ao mesmo tempo toma outras que destroem qualquer política de habitação. Como a ideia dos nómadas digitais. Venham 3, 4, 5 mil nómadas digitais que aluguem uma casa a um preço que será o dobro ou o triplo do que qualquer família pode pagar.

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