Pós-covid pode gerar três grandes ondas na saúde e cancro está na linha da frente
Vários oncologistas alertam que doentes com cancro têm sido prejudicados pelo foco colocado no combate à pandemia.
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Vários médicos da área da oncologia lançam o alerta de que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não pode pensar apenas na Covid-19, temendo que a eventual vitória sobre a pandemia seja "uma vitória de Pirro".
O alerta é do Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro, a região mais afetada pelo novo coronavírus, do presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia, especialista em ginecologia oncológica, e de três médicos que acabaram de publicar um artigo na revista científica da Ordem dos Médicos.
No artigo, assinado por dois médicos da área oncológica do Hospital de São João, no Porto (Renato Bessa de Melo e Nuno Teixeira Tavares) e por Raquel Duarte, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e Secretária de Estado da Saúde no anterior governo de António Costa, o texto acaba com um aviso: é preciso "cerrar fileiras no combate à pandemia", mas "mantendo-nos alertas aos efeitos colaterais e estando preparados para os resolver".
Caso contrário, dizem os autores, a vitória sobre a pandemia pode tornar-se numa "Vitória de Pirro", uma expressão histórica sinónimo de um triunfo com um preço demasiado elevado e prejuízos irreparáveis.
As ondas que se seguem
O país está a achatar a onda da Covid-19, mas "temos de nos preparar para as três próximas grandes ondas": "os casos urgentes que não tiveram a resposta adequada e atempada, os doentes crónicos que deixaram de ser controlados e, por fim, a terceira onda do impacto na saúde mental da população isolada, do burnout dos trabalhadores e do efeito global na saúde do efeito económico desta pandemia".
Os autores sublinham que a capacidade cirúrgica do SNS "ficou comprometida com as medidas tomadas" para travar a Covid-19, com "impacto significativo" sobretudo, mas não só, na patologia oncológica: "A capacidade de realização de cirurgias complexas e mobilizadoras de recursos é tarefa quase impossível".
O equilíbrio entre combater a pandemia e tratar as outras doenças é difícil, mas falhar "pode ter efeitos devastadores na esperança de vida" dos doentes com cancro.
Renato Bessa de Melo, um dos autores do artigo, explica à TSF que nesta altura "todos temos alguns problemas para dar resposta aos doentes pois o sistema está sobrecarregado com doentes Covid-19. Com a resposta a esta doença a correr relativamente bem é preciso começar a dar resposta a outros doentes. Se isso não acontecer serão vítimas a longo prazo da pandemia", avisa.
Cancro vai matar mais que a Covid-19
O presidente do Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro defende que é urgente normalizar a atividade dos hospitais e que tem recebido dezenas de queixas de doentes oncológicos.
Vítor Veloso afirma que "quase todos os meios estão virados para a Covid-19", havendo falta de acessibilidade a diagnósticos, tratamentos, cirurgias e seguimento dos doentes, áreas que já antes tinham problemas e listas de espera".
"É urgente recuar um pouco do coronavírus e olhar para os doentes oncológicos que têm sofrido muito com isto, podendo colocar em risco a sua cura e sobrevivência", defende o responsável da Liga que garante: "Vão morrer muito mais doentes por cancro que pela pandemia".
"Não basta pensar na recuperação da economia, mas também na recuperação do tratamento e da acessibilidade dos doentes das diversas patologias, nomeadamente do cancro", conclui.
Doentes ansiosos
Também o presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia, especialista em ginecologia oncológica, avisa que as implicações das restrições nesta área só se irão sentir daqui a uns meses.
Daniel Pereira da Silva conta que há doentes "ansiosos", a esperar pacientemente em casa, sejam doentes em fase de diagnóstico ou que aguardam tratamento.
"A área oncológica é preocupante, todos os serviços do país tiveram de reduzir a atividade e isso está a levar que se atrasem os exames e os tratamentos", diz o clínico, temendo que a situação seja alarmante pois já antes as capacidades "não eram ótimas nos serviços públicos e agora até os serviços privados estão muito limitados".