Terreirinho, uma rua de Lisboa com um mundo de histórias
Mouraria

Terreirinho, uma rua de Lisboa com um mundo de histórias

São muitas as histórias que se cruzam na Rua do Terreirinho, em Lisboa, que saltou para as notícias na sequência do incêndio que, no sábado, destruiu um rés-do-chão e causou dois mortos.

A Lusa percorreu esta manhã, do início ao fim, a rua situada na zona da Mouraria, parando para conversar com habitantes e comerciantes.

No número 55, a placa "AL" sobreviveu ao incêndio que, no sábado à noite, destruiu o rés-do-chão, causando dois mortos e 14 feridos, todos migrantes.

O edifício de quatro andares (com duas frações cada) está agora selado e com cadeado. Afixado na porta um edital do Tribunal da Comarca de Lisboa que fala na "insolvência" da Caires, Henriques e Associados, Sociedade Imobiliária.

O responsável da Loja Augusto, de "quadros, gravuras, vidros, espelhos", diz que no prédio vivem "moradores e 'alojamentos'" e que todos tiveram de sair após o incêndio.

O negócio "vai bem" e o trabalho não lhe permite muita conversa, nem "fixar a cara" de quem entra e sai na porta da frente, mas confirma que muitos dos habitantes são migrantes.

"Deviam ter vindo cá ontem [segunda-feira]. À tarde juntou-se aí toda a gente. Alguns proprietários nunca os tinha visto", relatou.

A uns metros, na esquina, vendem-se apartamentos T1 e T2 a preços que começam nos 310 mil euros.

Às 10:00, ainda são poucos os homens que se juntam no café e minimercado Noreen. Cansados das perguntas sobre o incêndio, mostram os vídeos da noite fatídica filmados com o telemóvel.

Ao lado, os clientes acumulam-se na agência de viagens Benformoso Travels, que vende "um ou dois bilhetes de autocarro por mês" e muitas mais passagens aéreas, sobretudo para Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão.

De passaportes na mão, indianos, bengalis e timorenses vão falando uns com os outros, sem se conhecerem, enquanto esperam por bilhetes de avião que chegam aos mil euros e que pagam em dinheiro vivo. Em inglês ou já arranhando o português, mostram fotos das suas terras e partilham o que fazem da vida.

O timorense Tino, que vive há 12 anos em Glasgow, na Escócia, compra um bilhete para Londres. Veio de férias, visitar amigos. Dois deles acompanham-no. Vieram nas recentes vagas de migrantes timorenses, ao encontro de "promessas" que ficarão por cumprir.

Chegados há dois meses, ainda não têm trabalho. "Vieram atrás de 'fake news', de que teriam trabalho, e agora não podem voltar, porque ficaram a dever dinheiro, uns quatro mil euros, para virem. Se regressarem, como vão pagar?", explica, assumindo estar preocupado com a situação.

Chegam três jovens mulheres ao cimo da Calçada da Mouraria, GPS ligado, malas de rodinhas que vão deixar à guarda da agência por dois euros e meio cada. Libertas de peso, seguem com os telemóveis para a visita turística.

Do número 1 ao 97, de um lado, do 2 ao 106 do outro, os passeios são sempre estreitos e perigosos para a velocidade a que por ali passam carros, muitos de alta cilindrada, 'tuk-tuk' e ciclistas ao serviço de marcas de entregas internacionais. O trânsito é constante, assim como o corrupio de migrantes que entram e saem de casas com ar devoluto, cruzando-se com turistas de mapa e paus de 'selfie' na mão.

Apesar da clientela, na Benformoso Travels o negócio "está muito mau" agora, garante Zakir, explicando que os melhores meses são novembro e dezembro.

Com estatuto de residente, Zakir já pediu a nacionalidade portuguesa e aproveita os domingos, dia de fecho da agência, para conhecer o país. "Todos os domingos visito uma cidade diferente. Neste último domingo, fui a Cascais, ao Cabo da Roca, à Ericeira", conta.

No sábado à noite, quando se deu o incêndio, já estava em casa, mas um amigo contou-lhe como ajudou a retirar "três pessoas de dentro" do edifício e não conseguiu fazer o mesmo com outra, "mais pesada, que acabaria por morrer".

"A porta do edifício estava fechada e as pessoas não a conseguiam abrir. Quem estava na rua tentou arrombar as janelas", relatou.

Trabalhador na mesma agência, Islam também já estava em casa. Como as vítimas não pertencem à comunidade bengali, ambos desconhecem pormenores.

Islam partilha um quarto na zona do Marquês de Pombal, pelo qual paga 220 euros. Tem acesso a cozinha e casa de banho, partilhadas com mais cinco pessoas, num apartamento "bonito e limpo", mas "caro".

Ouviu falar de Portugal pela primeira vez quando estava em Londres e encontrou turistas da Madeira. Chegou a 1 de julho de 2021 e quer ficar. Gosta da tranquilidade e diz que se sente bem acolhido. Em casa, já tem "dois livros em português", para aprender a língua.

Um morador sai do número 66 e diz que ali vivem 12 pessoas em cinco quartos. Porta sim, porta não há placas de alojamento local e as campainhas assinalam os andares em inglês.

Rui Nine trabalha há 40 anos na Domingos e Nogueira, "loja com história" de solas e cabedais.

O turismo, a inflação e o preço das casas têm afastado os antigos moradores.

"Antes da pandemia, os senhores do imobiliário andavam quase loucos para comprar o que quer que fosse aqui, para vender a estrangeiros. Chegaram a comprar quarteirões inteiros", recorda.

"Não vejo mal no progresso, temos de evoluir, mas não podemos perder a nossa identidade", nota.

Sobre os migrantes, diz que são fechados, mas já respondem ao "bom dia" com que os saúda quando chega à loja. Sai para a rua e explica que sabe quem mora em cada prédio pela forma como estendem a roupa.

"O Estado não pode limitar-se a acolher, tem de zelar pelas pessoas", frisa, apelando à fiscalização de habitações e negócios.

Rui acha que há dois pesos e duas medidas e que as autoridades têm fechado os olhos ao que acontece no bairro. "Então a junta não sabe que está a passar 20 ou 30 atestados de residência para o mesmo número de porta?", questiona.

Aponta o dedo para a porta em frente e pergunta como é que aquele pequeno cubículo de dois por três metros pode tratar de tudo o que é documentos e ainda de transferências bancárias. "Connosco, vem a ASAE [Autoridade de Segurança Alimentar e Económica] e implica com tudo", compara.

O antigo Centro Escolar Republicano Almirante Reis acolhe agora a Portugal Multicultural Academy, que disponibiliza cursos de português de dois meses, por 250 euros, bem como apoio legal a imigrantes e estudantes internacionais.

Aziz, tesoureiro da associação que gere a academia, está há sete anos em Portugal. Não sabe quem são Bernardino Machado e Machado Santos, mas percebeu que pertenciam à história e, por isso, preserva à entrada os cartazes sobre os dois republicanos.

Ouviu falar do incêndio, mas não sabe detalhes. "Que tristeza", reage.

Mais uns metros e misturam-se serviços financeiros com uma barbearia. Um dos funcionários aproveita para perguntar o que aconteceu no número 55 e reage com choque à notícia dos mortos.

Do outro lado da rua está uma das mesquitas da zona, a Comunidade Religiosa e Cultural Islâmica de Portugal, onde se concentram muitos crentes às sextas-feiras, dia sagrado para os muçulmanos. Um casal vira à direita, ela, das poucas mulheres na rua, tapa com um véu negro o rosto e a cabeça.

Uns metros mais acima, Laurinda está à janela, decorada com vasos para fazer jus à placa de "rua mais florida". No Beco do Alegrete, faziam-se "bailaricos", mas depois os moradores aproveitaram para "fazer um dinheirinho" com as casas e agora "são só estrangeiros, que entram e saem".

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG

Patrocinado

Apoio de