Ministério Público diz que foi impossível fazer a todos os doentes um exame fundamental. Mas investigação da TSF às práticas clínicas no surto de Vila Franca conclui que este não era sequer pedido.
Corpo do artigo
A falta de um exame, que as autoridades de saúde consideraram desnecessário e que podia prejudicar a saúde de vários doentes graves, afastou perto de 250 vítimas da acusação que estão nos tribunais devido ao caso da doença dos legionários em Vila Franca de Xira, um dos maiores surtos registados no mundo.
Os magistrados pedem uma análise laboratorial, complexa, a amostras de secreções respiratórias que permita comparar a doença de cada vítima com a estirpe ST1905, detetada nas torres da fábrica acusada, mas a maioria dos doentes foi diagnosticado com uma simples análise à urina que não permite fazer essa comparação, apesar de confirmar a presença da "Legionella pneumophila serogrupo 1".
Recorde-se que dos 403 doentes identificados oficialmente durante o surto apenas 73 não foram excluídos da acusação conhecida em março.
Na acusação consultada pela TSF, os magistrados dizem que "nem sempre foi possível proceder à recolha de amostras respiratórias aos doentes" e "daí apenas terem sido enviadas 152 amostras para o laboratório de referência", mas nunca é explicado exatamente porquê.
Contudo, especialistas em saúde pública que acompanharam o surto e o próprio diretor-geral da Saúde confirmam à TSF que as análises não foram feitas porque nunca foram pedidas nem estão previstas nos procedimentos a seguir nestes casos.
Se a acusação continuar como está, todas as vítimas excluídas ficam à margem do processo judicial e sem qualquer hipótese de indemnização, a não ser que avancem com uma queixa contra o Estado. Entre elas estão vários doentes falecidos ou com sequelas graves para o resto da vida.
DGS diz que não se pensou na justiça
O diretor-geral de Saúde explica que o procedimento definido nunca foi pedir análises a amostras respiratórias ao laboratório de referência, como agora exige o Ministério Público que diz que só assim se consegue encontrar uma relação causa-efeito.
Francisco George, que preferiu não gravar qualquer entrevista com a TSF mas aceitou ser citado, argumenta que para todos os doentes identificados no surto "há análises feitas pelos hospitais que comprovam a presença de Legionella pneumophila serogrupo 1, mas só uma de quando em vez foi mandada para estudo molecular" que permite identificar a estirpe.
O responsável acrescenta que é isso que está previsto nas orientações da própria DGS, afirmando que "no plano do controlo da epidemia os trabalhos desenvolvidos não têm em conta a justiça mas sim a forma mais eficaz de controlar o surto. Não pensamos na justiça e nas suas exigências".
Evitando comentar o caso de Vila Franca de Xira, o diretor-geral de saúde dá o exemplo de um acidente rodoviário em que a "célebre hipótese da justiça é que a pessoa que ia no carro pode ter morrido de um enfarte e não por causa do acidente".
Francisco George defende que as amostras respiratórias não tinham de ser todas analisadas e enviadas para o laboratório de referência do Instituto Nacional de Saúde porque em saúde pública só se enviam para confirmação algumas amostras.
"Não é preciso nem viável analisar mais amostras e é isso que se faz em todo o mundo", afirma, acrescentando que a meta é "estabelecer o nexo de causalidade entre os doentes e a fonte da legionella".
Doentes falam em "palhaçada" e querem responsabilidades
Entre os doentes excluídos da acusação o sentimento de injustiça é grande. O presidente da Associação de Apoio às Vítimas do surto de legionela de Vila Franca de Xira é um dos que, como diz, "não foi contemplado" e não teve a sorte de ser alvo dos exames agora pedidos pelo Ministério Público.
Joaquim Ramos explica que é preciso apurar responsabilidades, não sabendo se é o Ministério Público que está a exigir exames desnecessários ou se foi a DGS que falhou ao não ordenar aos hospitais que colhessem amostras respiratórias aos doentes. "Eu", afirma Joaquim Ramos, "é que não posso ser culpado por viver neste concelho".
TSF\audio\2017\05\noticias\05\nuno_guedes_grande
A associação de vítimas diz que há doentes com sequelas graves para o resto da vida. Entre elas está a mãe de Maria Manuela que, desde que saiu do hospital, passou a ter de viver num lar que custa uma fortuna à família.
Maria Manuela fala em "palhaçada" e diz que não tinham de ser os doentes e as famílias a saber que deviam ser sujeitos a exames a amostras respiratórias até porque, sublinha, nunca tinham ouvido falar de legionela.
Exame pedido pelo Ministério Público podia agravar saúde dos doentes
O pneumologista Filipe Froes, consultor da DGS, explica que no seu hospital perto de 80% dos 43 doentes que tratou vindos do surto de Vila Franca de Xira não tiveram qualquer análise às amostras respiratórias, como pede o Ministério Público, bastando uma análise à urina que é bastante mais simples e barata.
TSF\audio\2017\05\noticias\05\filipe_froes_1
Pelo contrário, fazer uma colheita de amostras respiratórias é muito mais difícil e pode agravar o estado de saúde de doentes mais graves com ventilação mecânica invasiva.
TSF\audio\2017\05\noticias\05\filipe_froes_2
Filipe Froes acrescenta que todos os médicos envolvidos neste surto seguiram, naturalmente, os critérios da DGS e não valia a pena sujeitar os doentes a mais exames, sendo que no caso dos falecidos é muito baixa a possibilidade de retirar, com sucesso, amostras respiratórias.
Aliás, das 152 amostras deste tipo, apenas metade se aproveitaram e permitiram avaliar a estirpe de legionela que afetava os doentes, o que justifica que apenas 73 estejam na acusação.
Vítimas pensam processar Estado
A advogada da Associação de Apoio às Vítimas do surto de legionela de Vila Franca de Xira conta que entre os doentes de fora da acusação há quem tenha sequelas graves, outros estão de baixa desde o surto (no final de 2014) e cerca de uma dezena fazem mesmo parte do grupo de vítimas mortais.
Ana Severino argumenta que as entidades oficiais que acompanharam este surto têm de ser responsabilizadas, pois alguém falhou, não se podendo descartar eventuais responsabilidades da DGS.
TSF\audio\2017\05\noticias\05\ana_severino_1
TSF\audio\2017\05\noticias\05\ana_severino_2
TSF\audio\2017\05\noticias\05\ana_severino_3
Sobre o argumento das autoridades de saúde de que não tinham de pensar na justiça, Ana Severino afirma que não faz sentido, pois a DGS também é "interveniente processual e promove diligências importantes para o caso", recordando que os doentes estavam disponíveis, incluindo os internados durante dias ou semanas, para fazer qualquer análise.
As vítimas estão a avaliar uma ação contra o Estado que poderá ser por falta de legislação, mas que pode incluir as autoridades de saúde devido à falta dos exames respiratórios a cerca de 250 vítimas.