"Se fosse durante o dia teria havido centenas de mortos." Cicatrizes da Leslie, um mês depois
Um mês depois, a Reportagem TSF volta aos locais por onde passou a Tempestade Leslie. Os sinais da destruição ainda são visíveis e vão demorar muito tempo a desaparecer. Os prejuízos ultrapassam os 50 milhões.
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Era esperada uma entrada forte por Lisboa. Holofotes ligados, câmaras apontadas ao mar. Repórteres a testar a intensidade do vento. E depois, pouco passava das nove da noite, quando se confirma o pequeno desvio para Norte e a passagem intensa pelo litoral centro do país.
Apagam-se os holofotes. A capital passa ilesa ao lado da tempestade Leslie e o Centro fica às escuras. Permanece às escuras nos três dias seguintes a contar os prejuízos. Contas que não param. Milhão em cima de milhão. A cada nova localidade onde a luz é reposta, ficam a olho nu os estragos que a passagem dos ventos fortes, na noite de 13 para 14 de outubro, fizeram.
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Alunos sem aulas, placas de trânsito derrubadas até ao chão pela intensidade do vento, caravanas projetadas para o exterior dos parques de campismo, casas destapadas e a nu pela força do vento, milhares de árvores vergadas, decepadas e esventradas pela intensidade da tempestade, passadeiras de cacos alaranjados nas ruas dos concelhos da Figueira da Foz, Montemor-o-Velho, Soure, Condeixa-a-Nova, Coimbra, Cantanhede, Mealhada, Anadia, e muitos outros mais. No total, foram 29 concelhos afetados. Mais de cem mil pessoas sem luz durante vários dias, sem água, sem telecomunicações.
Mais de 60 milhões de euros só para recuperar a Figueira da Foz
Um mês depois, na Figueira da Foz ainda se apanham os cacos e tenta planear o futuro. Foi aqui que a tempestade se fez sentir com mais intensidade. A TSF fez questão de abrir a porta do pavilhão do clube de remo do Núcleo de Antigos Remadores da Associação Naval 1º de Maio. A porta fica numa das paredes que teimou em ficar de pé.
Depois da Leslie, os 60 atletas treinam em águas livres apenas uma vez por semana, e no concelho vizinho de Montemor-o-Velho. As telhas que cobriam o clube foram encontradas nas águas do rio Mondego e as embarcações estão agora num hangar emprestado pela Federação Portuguesa de Remo.
José Canhola é um dos treinadores do clube e foi o primeiro a entrar nas instalações. Reconhece que vai demorar tempo até que tudo volte ao normal, até porque a estrutura da escola de remo ficou danificada. Só se aproveitam os pilares de ferro, o resto será para reconstruir. E, para que isso aconteça são precisos, pelo menos, 90 mil euros.
Ao lado do treinador José Canhola, está Carlos Gil, que faz parte da direção do Núcleo de Antigos Remadores da Associação Naval 1º de Maio. O filho é um dos atletas do clube e o próprio Carlos Gil foi remador. Aliás, continua a remar, todos os dias, fora de água para que tudo volte ao normal, num clube que deu origem à Naval 1º de Maio, e onde tudo foi feito e conseguido "com a ajuda e o esforço de todos", e que vai ter de buscar nessa "ajuda de todos" a vontade para se reerguer.
Reerguer é uma certeza. Mas de onde poderá vir o dinheiro que é preciso? Os cerca de 90 mil euros necessários para voltar a reerguer a escola de remo?
Carlos Gil garante que a direção do clube já se sentou à mesa para pensar no assunto.
Ali logo junto à Foz, onde agora as paredes do Núcleo de Antigos Remadores da Associação Naval 1º de Maio lutam por se manter de pé, se atravessarmos o rio Mondego para a outra margem, vamos surfar na onda de problemas que a Leslie representa para as escolas de surf.
Eurico Gonçalves é membro da organização do Gliding Barnacles, um evento que junta ao surf exposições e residências artísticas culturais. Aqui, nas instalações da associação, a Leslie arrombou a porta e entrou sem pedir licença. "Lembro-me de estarmos a dizer que o pior que nos poderia ter acontecido era que a porta tivesse cedido com o vento", diz. E cedeu. Abriu-se e fez tombar as pranchas que estavam em fabrico como se fossem um baralho de cartas.
Teto arrancado e estrutura danificada, pranchas de surf projetadas pelo ar, protótipos e moldes irrecuperáveis, ou talvez não. Alguns vão continuar na produção, "assumindo-se o erro", e no final, com mais ou menos risco ou amolgadela, serão pranchas de surf "Leslie Model".
Só no teto das instalações da associação de surf pode estar um investimento superior a 80 mil euros. E também aqui a estrutura do edifício foi afetada. Salvou-se a parte que funciona como escritório.
A poucos metros do sítio onde estamos, percebemos a força do vento quando olhamos através da rede. No parque de campismo da Gala, na Figueira da Foz, há caravanas destruídas, desventradas, pedaços de metal espalhados pelo chão, roupas, mobília, eletrodomésticos arrastados pela força do vento. Um emaranhado que lembra um cenário de guerra.
À vista está o porto da Figueira da Foz, onde a Leslie deixou uma encomenda de cinco milhões de euros de prejuízos.
Há, contudo, um lado positivo da passagem da tempestade pelo centro do país: os danos são apenas, quase apenas, materiais.
"Se isto fosse durante o dia teria havido centenas de mortos"
Amâncio é de Pombal e tem a sua propriedade de criação de gado em Soure. Não estava prevenido nem tinha ouvido falar na tempestade. "Comecei a ouvir um barulho enorme e achei que fosse uma trovoada forte. Só me apercebi quando cheguei aqui de manhã. Pelo caminho, à medida que me fui aproximando foram aumentando os indícios", conta.
Os estragos começam a contar-se um pouco mais abaixo em Leiria e na Marinha Grande e observam-se a olho nu ao longo de mais de 120 quilómetros para norte até Aveiro.
"Isto se era de dia tinha sido muito pior", vaticina este agricultor e criador de gado. Amâncio só pensava numa das cabras que tinha deixado a pastar no monte. Temeu o pior, mas há histórias com final feliz: "Deixei-a na borda do rio, presa a uns salgueiros. Quando lá cheguei pensei que não estava. Era um emaranhado de salgueiros caídos, mas lá estava ela debaixo daquilo tudo. Foi um milagre".
No concelho vizinho de Montemor-o-Velho, o segundo mais afetado pela tempestade Leslie, o autarca Emílio Torrão não dormiu e passou a noite a acompanhar a situação e a desimpedir a circulação a viaturas de emergência. "Foi uma devastação completa, uma tragédia. Cerca de 70% dos telhados e todo o parque urbano do concelho foi afetado", afirma. "Vamos ter mais repetição deste tipo de fenómenos, que é diferente dos incêndios e das inundações", acrescenta.
Emílio Torrão confessa que o país não está preparado para este tipo de fenómenos. No caso concreto da Câmara sabia-se do que podia acontecer, preveniu-se, reagiu-se rápido, mas a dimensão foi maior. Pelas estradas do concelho só se avistavam telhas caídas, por isso "imagine-se se havia pessoas na rua. Se fosse uma tempestade à séria, que pode ocorrer. Havia mortes".
E depois de tudo o que viveu, o autarca Emílio Torrão aconselha as pessoas a terem kit de primeiros socorros e geradores, "para que possam sobreviver ao fenómeno". Em Montemor-o-Velho faltou a água, a luz e as telecomunicações. Tudo foi sendo reposto com alguma normalidade. O município chegou a funcionar com dezenas de geradores. O que não funcionou, segundo o edil, foi a mensagem que a Proteção Civil Nacional deveria ter enviado para as populações da região centro, porque o alerta que seguiu pelos meios de comunicação social não chegou a muita gente.
Matas nacionais com perdas irrecuperáveis
Até aqui só temos falado nos prejuízos em estruturas, nos campos e propriedades agrícolas, nas escolas e unidades de saúde, mas há que lembrar as centenas, talvez milhares de árvores decepadas, arrancadas pela raiz, esventradas. Algumas delas até centenárias em áreas protegidas como a Mata Nacional do Buçaco, o Jardim Botânico de Coimbra ou a Mata Nacional do Choupal.
Os portões fechados da Mata Nacional do Buçaco, candidata a património mundial da humanidade, abriram-se para deixar entrar, com cuidado, a reportagem da TSF.
O adernal do Buçaco é único no país e também aqui houve estragos consideráveis. Estava intransitável. As principais artérias foram as primeiras a serem desobstruídas. O grande problema reside nos pequenos trilhos, onde não chegam os tratores. Aqui, tudo será cortado, acartado, limpo manualmente. E isso levará horas, dias, semanas.
António Gravato é o presidente da Fundação Mata do Buçaco e, no dia seguinte à tempestade, dizia-nos que abrir totalmente a Mata do Buçaco só mesmo em 2019. Há dezenas de árvores que não tombaram, mas que se apoiam noutras tantas e que qualquer pequena rajada de vento pode agora derrubar.
A prevenção para situações futuras passa pela limpeza do que ficou destruído e pela análise das árvores que possam estar em risco de cair. O desejo de limpar tudo em tempo útil significou fechar a Mata durante duas semanas e reabrir os espaços destes mais de 140 hectares a conta-gotas, à medida que as áreas foram sendo limpas e avaliadas.
No meio da desgraça que foi acordar com um dos principais pulmões da zona centro intransitável, o sorriso abriu-se quando foi percorrido a pé o trilho das árvores notáveis: um trilho com seis quilómetros e 300 metros, homologado em maio pelo ICNF, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas.
Às outras, àquelas que não fazem parte deste trilho de árvores notáveis, mas que ficaram com danos muito variados, António Gravato fala em cirurgia plástica: serão analisadas e cortadas cirurgicamente para que voltem a renascer.
Só na Mata Nacional do Buçaco, os prejuízos passam os 400 mil euros. Miguel João Freitas, o secretário de Estado das Florestas, passeou pelos trilhos mais afetados, foi às portas de Coimbra, e desceu à Fonte Fria, e depois do que viu disponibilizou a verba para reerguer o Buçaco - verba que há-de chegar do Fundo Florestal Permanente.
Do Buçaco, pela força do vento, o secretário de Estado foi levado a visitar a Mata Nacional do Choupal em Coimbra, que foi também fechada por razões de segurança. Quarenta por cento da área foi afetada e há perdas irrecuperáveis neste pulmão verde de 80 hectares.
Olhando para cima, a partir do Choupal junto ao rio Mondego, a Torre da Universidade chama-nos para o Jardim Botânico, onde são agora precisos meio milhão de euros para recuperar tudo o que ficou destruído: árvores, caminhos, muros, a estufa-fria.
Por aqui pensa-se, desde já, em plantar o futuro. O Jardim Botânico reabriu a parte do jardim clássico quinze dias depois, mas deixou a mata para mais tarde. "Era uma passadeira verde no domingo de manhã", descreve. "Como temos árvores cujos ramos são autênticos troncos de árvores, não conseguíamos perceber de onde vinham", denota.
Mãos à obra antes que chegue o dinheiro
Em quase todos os casos que abordámos nesta reportagem não se vai esperar que chegue o financiamento do Estado para que se volte ao ativo. Há alunos para ensinar, remadas para voltar a dar, maçãs para exportar, animais para alimentar, trilhos para reabrir aos turistas. Confessa-nos José Canhola, do Clube de Remo Naval 1º de Maio que, se pudesse, "já estava aqui com uma picareta, martelos, pás e enxadas e ajudava na recuperação, mas a estrutura tem que ser vista por engenheiros. Não ponho de parte que, nos próximos seis meses, não conseguimos entrar aqui", explica. Um longo trabalho pela frente, quer para voltar a erguer as paredes do clube, quer para manter os atletas motivados.
De cabeça levantada estão também os proprietários dos bares de praia na costa da Figueira da Foz. "Eu vou arranjar e depois logo vejo o que vai dar. Primeiro que se proporcione vai demorar muito tempo. Já encomendei tudo, já arranjei orçamento e tenho que arranjar", sublinha o proprietário do Surf Bar na Praia do Cabedelo, que aponta as principais dificuldades sentidas na reconstrução.
Mais acima no mapa de Portugal, no pomar de Maçãs de David Marques, em Soure, os prejuízos chegam aos 120 mil euros. A candidatura está feita, a papelada está entregue. "Se cumprirem o que disseram vão existir apoios, esperamos que sim. Apresentámos a candidatura na DRAP centro, em Coimbra, com o valor dos prejuízos e as fotografias a fazer prova do que aconteceu", esclarece.
Em Montemor-o-Velho, a agricultura foi o setor que mais sofreu com os ventos fortes da tempestade Leslie. O autarca Emílio Torrão fala em 10 milhões de euros, que afetam sobretudo o arroz e o milho. "Fala-se em mais de 10 milhões de euros de perda de produção. Neste momento, as infraestruturas de secagem, descasque e preparação do arroz e do milho estão danificadas. Mesmo a cooperativa que tratava 12 toneladas está inoperante". O secador está avariado. E o milho, depois de colhido, tem de ser seco de imediato", avança Emílio Torrão. Só a cooperativa agrícola de Montemor tem um milhão de euros de prejuízos em mãos.
Um cenário grave num concelho que está a ser afetado por uma praga, que chegou depois da tempestade. Vários ninhos de vespa asiática caíram e cada um deles pode dar origens a dezenas de outros ninhos.