Está de perfeita saúde o bebé nascido ontem após quatro meses de morte cerebral da mãe, num caso inédito em Portugal. Se tudo correr bem, deve ir para casa daqui a três semanas.
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Os médicos que acompanharam o caso desde o primeiro instante falam numa "vitória da vida", mas também numa "viagem" ainda muito longa.
O menino, segundo filho de uma mulher vítima de uma hemorragia intracerebral às 15 semanas de gravidez, não tem qualquer dano no cérebro ou outro problema de saúde. As primeiras horas foram vividas com alegria, mas também alguma tristeza, pelos familiares e pela equipa médica que acompanhou todo o processo.
A morte cerebral da mãe foi declarada no dia 20 de fevereiro, pouco antes da meia-noite. Logo no dia seguinte, uma comissão científica composta por vários especialistas concluiu que "havia condições para avançar", revelou António Sousa Guerreiro, Diretor Clínico do Centro Hospitalar de Lisboa Central.
Contactada a família, ficou garantido o acordo de ambos lados, tanto da mãe, como do pai.
"Incubadora viva"
Pouco depois, a Comissão de Ética do hospital também deu parecer positivo. Gonçalo Cordeiro Ferreira diz que, considerando que o bebé não parecia ter sofrido nenhuma consequência do facto que tirou a vida à mãe e que não foi detetada nenhuma malformação; e que se tratava de um filho desejado, a decisão deveria ser "próvida do feto".
A partir daí, seguiu-se um longo processo, acompanhado também por uma equipa da Maternidade Alfredo da Costa. António Sousa Guerreiro sublinha a "total consonância" entre os dois hospitais (MAC e São José), apesar das localizações geográficas diferentes.
E como compatibilizar uma gravidez com o uso de medicamentos? Ana Campos, obstetra da MAC, sublinha que, à grávida em morte cerebral, apenas foram administrados os químicos absolutamente indispensáveis à "manutenção das funções vitais", aquelas necessárias ao desenvolvimento do feto.
Ou seja, "substâncias que já existem no nosso organismo, quando as funções vitais estão em estado normal".
E, sendo certo que a Ciência diz que é possível nascer em segurança, a partir das 24 semanas, a equipa que seguiu o caso decidiu prolongar um pouco mais esse prazo. As 32 semanas foram o tempo de gestação considerado seguro para uma grande probabilidade de sobrevivência, sem consideráveis riscos de sequelas.
Gonçalo Cordeiro Ferreira descreve a mãe como uma expressão que ele próprio classifica de "terrível": ela foi uma "verdadeira incubadora viva, uma doadora do seu corpo para que o filho pudesse viver".
Ao longo de todo este tempo, foram feitos vários exames, como ecografias ou ressonâncias magnéticas, para avaliar do bem-estar do feto. Avaliar, sobretudo, se haveria danos cerebrais, eventuais consequências do que causou a morte à mãe. Nada foi detetado
De qualquer forma, está previsto que, por volta das 40 semanas, seja feita nova ressonância.
Emoções contraditórias
De acordo com os médicos, a família - e, em concreto, o pai - está bem, mas a passar por momentos de emoções contraditórias. Por um lado, o nascimento do filho; por outro, a morte da mãe, consumada tantos meses depois.
O hospital garante que os familiares foram apoiados psicologicamente ao longo de todo este processo. E os próprios profissionais não escondem o quanto este foi um processo difícil.
Susana Afonso, responsável pela Unidade Cuidados Intensivos de Neurocríticos do CHLC, onde nasceu esta criança, afirma que "é impossível não ficar afetado", sobretudo, no princípio. Com o tempo e alguma estabilidade, torna-se mais fácil lidar com a ansiedade, garante.
Ministério Público informado
O CHLC revela ainda que o Ministério Público acompanhou todo o processo. Foi uma "medida cautelar", assegura Gonçalo Cordeiro Ferreira, decidida numa fase muito inicial, em que não havia ainda certezas sobre a posição da família.
O objetivo era prevenir problemas futuros de proteção da criança, caso as diversas partes envolvidas não conseguissem entender-se, o que não veio a verificar-se.