
Porto, 30/01/2017 - Reportagem nas novas instalações dos albergues noturnos do Porto. (Pedro Correia/Global Imagens)
Pedro Correia / Global Imagens
A remodelação dos Albergues Noturnos do Porto valeu ao arquiteto Nuno Valentim o Prémio Teotónio Pereira. Quem vive sem abrigo, na "condição do silêncio", tem agora mais conforto. Quer entrar?
Dina tem uns olhos muito negros e a cabeça coberta de tranças fininhas. Os braços, quase tão delicados como as tranças, agarram um monte de lençóis e toalhas lavadas, brancas, a contrastar com a cor da pele dela. É um dos momentos esperados da semana, aquele em que Dina vem à lavandaria buscar roupa para mudar a cama. Acomoda os rolos de papel higiénico dentro da camisola, junto ao sutiã, porque os braços não chegam para tudo.
"É tudo ótimo aqui, tudo limpinho, maravilhoso, é um lugar em que uma pessoa pode por a cabeça no sitio e organizar a nossa vida", diz.
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Nos Albergues noturnos do Porto, lá fora é o resto do mundo, Dina quer refazer a vida, "trabalhar e arranjar uma casinha". Para já, diz que ainda não se sente preparada para isso.
A história de Dina - que passou pela droga e pela prostituição, que viveu debaixo de uma ponte, que ocupou uma casa velha, que esteve internada antes de vir para aqui - é só mais uma história de mais uma pessoa na situação de sem-abrigo.
É só mais uma história, é só mais uma vida. Mas é tão importante como a de qualquer outra pessoa, nem que seja o Presidente da República.
"A nossa máxima é que os utentes têm que ser tratados como se fossem o Presidente da República e o Presidente da República, se algum dia se lembrar de vir cá, é tratado exatamente como um utente", explica o psicólogo Miguel Neves, o diretor técnico dos Albergues do Porto. E esta máxima ajuda a explicar a necessidade de fazer obras, que era tão urgente. Que o diga Dina: "Não tem nada a ver, os balneários, o conforto, tudo, está tudo espetacular, não tem nada a ver".
A remodelação dos Albergues, feita no ano passado, valeu agora ao arquiteto Nuno Valentim o Prémio Nuno Teotónio Pereira 2017*. "Os albergues há algum tempo que não tinham uma obra de fundo e tinham graves problemas: infiltrações, péssima localização das instalações sanitárias, que estavam muito degradadas, falta de aquecimento, excessivo número de ocupantes por quarto. Para além de resolver as anomalias, era necessário reposicionar os quartos de banho no sítio correto, retirá-los das zona de luz e aproveitar para resolver outras anomalias", descreve o arquiteto.
"Conseguimos diminuir o número de utentes por quarto sem prejudicar a sua capacidade", acrescenta. A capacidade foi até aumentada. Há agora mais 15 camas disponíveis que há um ano aguardam a autorização da Segurança Social para serem ocupadas
A Segurança Social, contactada pela TSF, garante que a acordo de cooperação está em revisão e que a sua conclusão "acontecerá com a brevidade possível", sendo que em julho há um novo concurso para alargamento dos acordos em vigor.
"Corta-nos o coração recusar três, quatro, cinco pedidos diários", lamenta Miguel Neves. As camas estão alinhadas, colchões novos, um cacifo ao lado de cada uma. Predomina o tom cinzento, o rigor simétrico das linhas retas.
"Isto não é propriamente uma casinha, não podemos cair na tentação de ter um ar demasiado doméstico. É uma instituição de permanência temporária, é bom não perder esse ar higiénico, quase hospitalar", sublinha Nuno Valentim.
"Inicialmente estávamos numa de domesticar com cores mais quentes, mas fomos caminhando no sentido de ser muito espartano e muito claro nos materiais", adianta, fazendo notar que "é sempre o mesmo material que faz tudo em cima da mesma laje de betão, a mesma paleta de cores".
Para o arejamento, encontrou-se uma solução muito particular neste número 237 da Rua dos Mártires da Liberdade, quem vira à esquerda, no fim da Rua dos Bragas: "Como esta rua é bastante ruidosa e poluída, fazemos a admissão de ar natural através do tardoz para não ir à rua buscar o ar novo".
Os Albergues Noturnos do Porto são uma passagem para a nova vida que há de bater à porta de Dina. Foram uma passagem para a nova vida de Laudelino Jesus. "Quando entrei aqui, aninhei-me, o que já não fazia há dois anos. Foi o sítio onde me pude aninhar tomar um banho e pensar «o que está isto, que se está a passar?»", conta.
"Eu vivia no terceiro andar, estava a bater o sol, eu via o por do sol e sentava-me nessa posição fetal a olhar para o mar e a pensar «o que é que me aconteceu»".
Laudelino diz que ficou "sem cara", escondia-se, fugia das pessoas por vergonha. "Quando uma pessoa vive uma condição de sem abrigo é um fechar de tudo, nem nos atrevemos a abrir as gavetas para resolver as coisas, está tudo misturado. As equipas técnicas ajudam a abrir as gavetas".
O antigo empresário tem superado desafios. Deixou deixou as drogas, deixou o anonimato da rua, deixou aquilo que ele chama "a condição do silêncio".
"Alguém que vive algum tempo nessa condição vive fora do normal, não tem declaração de finanças, cartão de cidadão, estão afastados de todo o social. Quando voltam a aparecer e o nome começa a entrar nos registos, começam a aparecer as faturas e, se não tiverem uma equipa que os ajude a resolver o imbróglio, acabam por desistir. É fácil voltar outra vez para o escuro".
Laudelino teve uma equipa que o ajudou. Agora é ele que ajuda os outros. Pertence a uma equipa de apoio de rua e arranjou emprego como vigilante dos Albergues do Porto. "Chega aqui muita gente e eu tenho que ter noção que posso fazer a diferença numa pessoa que vem desconfiada de tudo e de todos", refere, recordando o dia em que entrou: "Vinha tão desconfiado que quando me perguntaram se queria comer disse que não, embora estivesse cheio de fome".
Laudelino diz apenas um "está tudo bem" a quem aqui chega agastado e assustado. O edifício do fim do século XIX está agora recuperado, de cara lavada, pronto a receber com dignidade. "Isto não estava muito bom, estava no limite. As obras vieram trazer alguma privacidade e condições".
Falta a parte onde se servem as refeições. Essa obra ficou para uma segunda fase, até porque o dinheiro não chegava para tudo. Miguel Neves garante que o resto da intervenção está prevista para breve.
Para já, os psicólogos, assistentes sociais e monitores dos Albergues do Porto preocupam-se em dar ferramentas que possam ajudar à reintegração das pessoas que têm aqui um abrigo temporário. Isso passa também pelos ateliês ocupacionais: "É algo muito importante para preparar as pessoas para uma linha de autonomização".
Essas atividades são fundamentais para Dina: "Depois disso, estou mortinha que chegue as seis horas para ir para cima, tomar o meu banhinho e descansar".
Às seis horas, ainda nem sequer é de noite. Mas Dina sobe as escadas para trocar de roupa, vestir o pijama, sentir o fim de dia calmo nas traseiras do edifício, onde sobrevive um antigo jardim romântico, à moda das típicas casas da burguesia portuense. Aqui ela tem tudo. Ou pelo menos tudo o que precisa. E ainda há de vir cá abaixo fumar um último cigarro com os olhos semicerrados a enfrentar a luz do pôr-do-sol.
*O prémio Nuno Teotónio Pereira 2017 foi atribuído aos arquitetos Nuno Valentim, Frederico Eça e Margarida Carvalho, na categoria Edifício de Equipamento, com o projeto de reabilitação dos Albergues Noturnos do Porto; e ao arquiteto Manuel Aires Mateus na categoria Edifício Habitacional, com o projeto de reabilitação de um edifício em Lisboa.