Inspeção declarou que estrada da morte de Pedrógão estava limpa. Contra todas as evidências

Pedrógão, 01/06/2018- Reportagem na região de Pedógão Grande, 1 ano após o devastador incêndio de junho de 2017. Estrada nacional N-231 2 entre Vila Facaia e Pobrais, local onde faleceu a maioria das vítimas do incêndio de junho de 2017. (Pedro Granadeiro/Global Imagens)
Pedro Granadeiro/Global Imagens
Inspeção feita dias antes do fogo não encontrou uma única zona com limpeza da vegetação mal feita. Conclusões contrariam Ministério Público e até relatórios depois encomendados pelo Estado.
A empresa pública responsável pela fiscalização das estradas em Portugal esteve na fatídica EN236-1 dias antes do incêndio de Pedrógão Grande e não encontrou qualquer problema de falta de limpeza da vegetação.
A Infraestruturas de Portugal (IP) contrariou assim as conclusões dos relatórios encomendados mais tarde pelo Governo, pelo Parlamento e a acusação do Ministério Público.
A TSF teve acesso a um documento que leva o diretor do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais a ficar muito preocupado.
Relatório fechado três dias depois da tragédia
A inspeção semestral à manutenção que a empresa privada Ascendi fazia da EN236-1 - onde viriam a morrer mais de 30 pessoas - foi feita, no terreno, uma semana antes da tragédia (a 8 de junho de 2017), mas o relatório da vistoria só foi fechado a 20 de junho, ou seja, três dias depois do incêndio que deflagrou a 17 de junho.
Ao contrário dos outros quatro anteriores relatórios semestrais, que a TSF também consultou, este último dá maior destaque à limpeza do mato e vegetação perto da estrada, tema que ocupa 12 das 27 fotografias apresentadas.
Em cada uma dessas 12 fotografias o comentário da Direção de Gestão das Concessões da IP é sempre o mesmo: "Corte da vegetação executado". As imagens denotam que as máquinas de limpeza tinham andado, de facto, há pouco tempo na zona, mas é evidente que os 10 metros previstos na lei não estavam cumpridos, sendo a faixa de corte muito mais curta.
O objetivo da fiscalização e do respetivo relatório era perceber se a Ascendi estaria ou não a cumprir o contrato de subconcessão que tinha assinado com o Estado, sendo apenas, nas conclusões, apontadas "algumas deficiências" que nada têm a ver com a polémica falta de limpeza que segundo o Ministério Público e os relatórios encomendados pelo Governo e Parlamento potenciaram a propagação e consequências das chamas.
Defesa usa relatório da empresa pública
O caso encontra-se agora em análise nos tribunais. O relatório da IP que valida a limpeza da EN236-1 é um dos argumentos apresentados por um dos funcionários da Ascendi que é acusado pelo Ministério Público de 34 crimes de homicídio por negligência e sete crimes de ofensa à integridade física por negligência.
No pedido de abertura de instrução lido pela TSF, Rogério Mota explica mesmo que a IP nunca impôs a limpeza da vegetação numa faixa de 10 metros, distância que, recorde-se, estava prevista na lei de defesa da floresta.
Especialista preocupado
A TSF mostrou o relatório da IP ao professor da Universidade de Coimbra que coordenou o estudo pedido pelo governo sobre o incêndio de Pedrógão Grande e cujas conclusões apontaram responsabilidades - entre outros problemas - à falta de limpeza da vegetação na estrada nacional.
Xavier Viegas diz que este documento da IP, que nunca tinha visto, é importante porque revela como o Estado não olhava minimamente para os riscos dos fogos florestais.
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O diretor do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais, que está a fazer um novo relatório a pedido do Governo sobre os mega fogos de outubro de 2017, admite que fica preocupado com o que viu neste relatório da IP.
Xavier Viegas diz que é evidente que a estrada estava mal limpa, longe dos limites dos 10 metros impostos pela lei, algo bem visível, inclusive, nas fotos presentes no documento da IP, acrescentando que tanto assim é que depois da tragédia a limpeza foi feita.
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O especialista sublinha que o relatório a que a TSF teve acesso revela "fotos de troços com árvores muito perto da estrada e o veredicto é que está tudo bem e em ordem, quando se sabe que aquela via não era segura do ponto de vista dos incêndios".
Xavier Viegas vai, no entanto, mais longe e diz que a falta de limpeza que acontecia na EN236-1 continua a acontecer, ainda hoje, noutras estradas do país.
O incêndio que em junho de 2017 matou 66 pessoas e fez mais de 250 feridos levou o Ministério Público a acusar 13 arguidos.
O caso está a ser avaliado pelo juiz de instrução criminal que vai decidir pelo arquivamento ou julgamento. Entre os arguidos estão autarcas, responsáveis da proteção civil, da EDP e da Ascendi, empresa privada que tinha a subconcessão pública para fazer a manutenção da EN236-1, num contrato cuja execução era fiscalizada pela IP.
Empresa pública garante que não tinha de fiscalizar limpeza da floresta
A Infraestruturas de Portugal assegurou, entretanto, que não tinha de fiscalizar o cumprimento da legislação de defesa da floresta contra incêndios na vistoria que fez à EN236-1.
Depois de durante meses ter preferido não comentar o assunto quando foi questionada pela TSF, a empresa pública reagiu, hoje, à notícia da TSF sobre esta inspeção.
Num e-mail enviado esta manhã, a IP argumenta que "a vistoria noticiada enquadra-se no âmbito das inspeções periódicas, tendo como único objetivo monitorizar o cumprimento das obrigações contratuais da subconcessionária, nomeadamente em matéria de conservação, operação e manutenção".
"No dia da vistoria, 8 de junho de 2017, as obrigações no que se refere à manutenção vegetal estavam cumpridas no âmbito do contrato de subconcessão", defende a empresa pública que fiscaliza o estado das estradas.
Para justificar a sua posição, a IP argumenta com a lei - nomeadamente, o artigo 37º do Decreto-Lei 17/2009, que atribui a outras entidades a obrigação de fiscalizarem a limpeza da floresta para evitar a propagação dos fogos: "Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública, Polícia Marítima, Autoridade Florestal Nacional, Autoridade Nacional de Proteção Civil, câmaras municipais, polícias municipais e vigilantes da natureza".
Notícia atualizada com reação da Infraestruturas de Portugal