Entre os rituais místicos e as obras feitas, entre a lenda e os factos. A TSF foi conhecer por dentro a mais antiga casa maçónica em Portugal para saber onde acaba o mito e começa a verdade.
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No Oriente nasce a luz que coloca Portugal na sombra da dúvida. Muitos críticos da maçonaria acusam a sociedade secreta de mobilizar forças para traçar planos políticos. "Grande parte dos presidentes da República foi maçom", explica Inês Moreira, curadora do Museu Maçónico Português, onde está guardado "o plano preparatório original da instauração da República". Perseguidos pela Inquisição e mais tarde pelo Estado Novo, muitos membros da maçonaria nacional foram mentores de reformas estruturais que vieram mudar o curso da História.
"Há causas que nos preocupam como a Lei de Bases da Saúde, que nos é um tema muito querido e que António Arnaut nos deixou como legado", confidencia a comissária do museu à TSF. "A última pessoa da esfera política a dizer-se maçom foi Arnaut, que chegou a ser Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano (GOL). Ele foi o pai do Serviço Nacional de Saúde. Às vezes diz-se, a brincar, que o projeto nasceu aqui, no templo, em discussão entre todos os maçons", admite Inês Moreira.
A curadora descreve o grupo como "uma sociedade de sonhadores", e frisa: "Foi o maçom Fernão Botto Machado que, em 1911, apresentou na Assembleia da República o projeto de lei das oito horas de trabalho".
Apesar disso, o Grão-Mestre adjunto do GOL, António Ventura, em entrevista à TSF, defende que o compadrio "nada tem a ver com os ideais da ordem, mas não quer dizer que não tenha acontecido tal ao longo da História, como em qualquer associação humana".
Nem só nos corredores políticos se move a influência dos seguidores mais célebres da escola iniciática, igualmente ligados ao surgimento de instituições de peso no país. "O banco de apoio mútuo Montepio foi criado por maçons do Grande Oriente Lusitano e por isso é que o logótipo tem um pelicano, que, para nós, tem o significado da dádiva. O pelicano tem uma particularidade: há quem diga que regurgita a comida para dar de comer às crias", conta a curadora.
A vertente filantrópica da maçonaria fica também patente no envolvimento das obediências em projetos sociais. "Muitas instituições foram criadas por maçons. Por exemplo, A Voz do Operário surgiu através da ordem", afiança Inês Moreira. No site d'A Voz do Operário, faz-se referência ao primeiro Presidente da República, Manuel de Arriaga, que lançou "a primeira pedra de construção da sede".
"São personagens marcantes da nossa História", e, "se pensarmos nos nomes das ruas em Lisboa, vemos que se referem a maçons", concretiza a curadora do espaço museológico.
Os intervenientes da maçonaria e da História de Portugal são os mesmos
O Museu Maçónico Português, em Lisboa, abre as portas aos curiosos, ávidos por "conhecer a história da escola de pensamento", que é "também conhecer a própria História de Portugal, porque os intervenientes são essencialmente os mesmos". Desfiar os capítulos do passado português é pousar os olhos em brasões e símbolos dourados dos protagonistas dos primórdios da ordem.
Nomes como os de D. Pedro IV, primeiro imperador do Brasil e liberal que por cá travou o absolutismo, o do poeta Bocage, D. Fernando II ou o Duque de Saldanha - presidente do Conselho de Ministros - figuram entre as elites maçónicas. Mas também Marquês de Pombal, Carlos Mardel e Eugénio dos Santos, peças fundamentais para erguer uma nova Lisboa, após o terramoto de 1755, Bernardino Machado, Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano e Presidente da República, foram estandartes de princípios basilares que assentam numa primeira pedra.
Inês Moreira, formada em História, olha para essa pedra, em bruto ainda, no pilar norte do templo, onde se sentam os aprendizes, primeiro grau da escola iniciática. No seu lugar, outros "construtores" já firmaram os pés, para depois caminharem até aos seus assentos, num ritual desenhado a compasso e esquadro, representativos dos ideais maçónicos. Envergavam o avental - símbolo do ofício de pedreiro ["mason"] - e de uma lenda basilar, que é a da construção do Templo de Salomão. Depois, procediam a trabalhar a pedra do seu templo interior.
O sol, a lua, o chão axadrezado a preto e branco, o vermelho e o azul das paredes e do teto criam uma aura de ocultismo e de constante dualidade. "A lua representa o lado emocional, o lado feminino. O sol representa o racional e masculino", desvela Inês Moreira, à TSF. Entre o claro e o escuro, permanece uma área cinzenta que não branqueia as dúvidas socialmente enraizadas. "Nunca foi a maçonaria a controlar o poder político. Eles [políticos] eram maçons, evidentemente, mas aqui dentro trabalha-se o sagrado, não se trabalha o profano. O profano fica lá fora", garante a historiadora.
O profano não entra num templo em que a simbologia egípcia e helénica convivem com códigos milenares, numa dança difícil de desvendar aos olhos do cidadão comum. "(...) na Estalagem do Assombro/ Tiram-te os anjos a capa/ Segues sem capa no ombro,/ Com o pouco que te tapa", escrevia assim Fernando Pessoa e deixava à meia-luz um ritual secular de iniciação à vida maçónica. O Grande Oriente Lusitano (GOL), a mais antiga obediência maçónica de Portugal não levanta o véu do misticismo a qualquer um. Apenas os preparados para erguer a mudança e demolir as ideias preconcebidas têm a chave para entrar.
"A maçonaria é como um clube inglês reservado a sócios"
Apesar de a escola maçónica defender o aperfeiçoamento individual para a edificação de uma sociedade melhor, as lojas têm-se mantido, ao longo de quase três séculos, praticamente na penumbra. Para António Ventura, no entanto, a manutenção do sigilo não se prende com a prática de atividades duvidosas. "É uma sociedade discreta e reservada aos seus membros. A maçonaria não é diferente de um clube inglês que é reservado a sócios. É apenas secreta para aqueles que não são membros", exemplifica o Grão-Mestre adjunto do Grande Oriente Lusitano. "Se eu quiser ir assistir a um conselho de ministros, não me deixam porque eu não faço parte dele", acrescenta.
A maçonaria pode não ser um negócio, mas o segredo é a alma das lojas. "Não é nenhuma organização de massas, não é nenhum partido nem religião. Deve haver um certo cuidado na qualidade dos seus membros", diz o professor catedrático da Universidade de Lisboa.
António Ventura, "construtor" de um ideal de "aprendiz eterno", quer abalar a ideia de "gruta misteriosa" que chama mais as atenções pela extravagância dos rituais do que pelas boas práticas de "homens livres e de bons costumes". "A questão da discrição é pessoal. Nada impede que o maçom se assuma, ou não, publicamente. Muitos dos que fazem coisas muito positivas não se revelam", garante o maçom.
Os maçons só podem ser revelados pelo Grande Oriente Lusitano após a morte. Pelo estigma e "por uma ideia negativa criada deliberadamente", muitos mantêm-se tapados por uma capa. "Um maçom, por exemplo, ligado à instituição da Igreja pode achar que será marginalizado se admitir", remata o Grão-Mestre adjunto do GOL.
"A Maçonaria de Portas Abertas" não dá a outra face à luz do dia. Ficam mais perguntas do que respostas, ideologia promulgada pela ordem que diz estimular "o questionamento e a reflexão". Talvez seja esse, então, o propósito: deixar a sociedade a pensar.
"Não se pode alterar um texto histórico", que deixa as mulheres de fora
"A maçonaria, quando surge em Inglaterra em 1717, assenta sobre a constituição de Anderson, a qual contempla apenas 'homens livres e de bons costumes'. Temos de pensar este texto no contexto da época. As mulheres não tinham participação na sociedade", conta Inês Moreira.
O mundo da maçonaria é, então, um "clube de sócios" que abrange "todas as cores partidárias e religiões", mas onde a igualdade de género ainda não foi iniciada. "A grande maioria do mundo da maçonaria é masculina. A mulher continua à parte em muitos casos", revela a historiadora. Inseridas numa sociedade patriarcal, foram as mulheres da maçonaria "as grandes impulsionadoras da instituição do direito feminino ao voto".
Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a votar em Portugal, em 1911 - porque era viúva e cabeça-de-casal -, Ana de Castro Osório, Maria Veleda, que lutou pela educação das crianças e pelos direitos das mulheres e ideais republicanos, Maria Belo, que foi Grã-Mestra da Grande Loja Feminina de Portugal, Manuela Cruzeiro, ainda viva, e que teve "um grande papel no pós-25 de Abril", marcaram a sociedade por fora e também no seu avesso, porque nas linhas invisíveis também se escreve História.