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Ernesto Silva abre com cuidado uma caixa forrada a pele vermelha. Lá dentro uma medalha especial: a Cruz de Mérito da Ordem do Governo Alemão da Águia. O galardão tem a forma de uma cruz de ferro branca, rodeada por quatro águias, símbolo do poder nazi, assentes sobre cruzes suásticas.
"Sente-se respeito", suspira Ernesto, "quando olho para isto faz-me lembrar os campos de concentração e Auschwitz... foi um tempo bárbaro".
A medalha foi atribuída pelo estado nazi ao avô de Ernesto, Vitorino Cuco, que em 1943 foi o homem que dirigiu as operações quando um avião alemão foi abatido por caças ingleses. Esta segunda-feira, passam 75 anos.
Reportagem de Joana Carvalho Reis com sonoplastia de Pedro Simões Ribeiro.
O avião caiu na Atalaia, a cerca de 2 quilómetros de Aljezur, junto à costa. Ernesto conduz-nos por uma vereda no cimo da arriba. Passo acelerado, enquanto vai mostrando a flora local, com explicações e nomes científicos. Finalmente, chegamos. "Foi aqui que o avião caiu".
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No local, uma pedra de granito assinala a tragédia. É pequena, discreta. As inscrições quase desapareceram, mas ainda é possível ler: "In Memoriam", 9 de julho de 1943. Abaixo, sete cruzes, uma por cada aviador que ali ficou.
O relatório do acidente, encontrado há dois anos no sótão da antiga câmara municipal, revela os pormenores do que aconteceu naquele dia. No mar, quatro navios carregueiros dos Aliados passavam em direção ao Norte de África. Os faroleiros avistaram condores alemães a sobrevoar as águas. "No dia 9 do corrente, pelas 7 horas, foram avistados 4 quadrimotores que vindos de Leste seguiram em direção ao mar. Ao romper do sol foi ouvido forte canhoneio dando a impressão que os navios estavam sendo atacados e se defendiam", lê-se no documento.
De repente, aparecem três caças ingleses que começaram a disparar sobre os aviões alemães. Três fugiram. O outro foi abatido. "O aparelho atingido, aí pelas alturas de Ponta da Carrapateira, seguia em chamas, tendo caído no sítio da Costa de Aljezur denominado "Parede" (...), pelas 9 horas, tendo-se dado uma grande explosão e continuava a arder".
A cerca de 800 metros do local do acidente, Ernesto, de 5 anos, ouviu tudo. "Lembro-me do barulho da metralha e da minha tia agarrar em mim e tentar esconder-me", conta, "recordo perfeitamente os porcos a grunhirem, as galinhas a cacarejarem... os animais aperceberam-se do que estava a acontecer, como se fosse o fim do mundo para eles. E para nós também".
O avô, chefe do posto da Guarda Fiscal, mandou a família esconder-se dentro de casa, enquanto tentava perceber o que se passava.
A 2 quilómetros dali, no centro da vila, Luís Proença assistia. "Comecei por ver um avião que vinha muito baixinho, em voo rasante, a Norte da Serra de Monchique e que passou por Aljezur também muito baixinho. Eu, juntamente com outros miúdos que vivíamos naquele bairro próximo do Castelo, subimos a colina e fomos para o Castelo".
Naquela altura, era frequentar avistar a partir da costa os grandes navios dos Aliados que passavam para o Norte de África e os aviões que sobrevoavam a zona.
À noite, Luís e as outras crianças juntavam-se aos adultos na Casa do Povo para ouvir os relatos da guerra na BBC com o Fernando Pessa. "Nós, miúdos, seguíamos aquilo quase um filme de aventuras".
Os avanços das tropas, os mortos ao serviço da pátria, os bombardeamentos, os ataques do inimigo - a voz que dava as notícias lá de longe ilustrava os conflitos, que as crianças coloriam com as subidas ao Castelo para adivinhar de onde vinha o avião que de vez em quando passava, a missão dos navios gigantes que cruzavam a costa.
Mas naquele dia foi diferente. A coluna de fumo branco se erguia ao fundo, junto à falésia, indicava que algo se tinha passado. Mais tarde, chegou a notícia: um avião alemão tinha sido abatido.
"Nós víamos os alemães como um povo inimigo porque a informação era favorável aos Aliados. Por isso, foi quase como uma vitória. Eram os inimigos que tinham caído".
Na encosta da ponta da Atalaia, entre os destroços do avião, encontraram os corpos dos sete aviadores. As autoridades, coordenadas pelo guarda fiscal Vitorino Cuco resgataram os corpos e transportaram-nos numa carreta de bois, o único meio que conseguia subir a arriba.
O relatório do presidente da câmara sobre os acontecimentos desse dia descrevia o que encontraram: "os tripulantes apresentavam um horrível aspeto, carbonizados, nus, irreconhecíveis, vendo-se no entanto, na fivela dos cintos a águia e a cruz suástica".
Uma imagem que ficou gravada para sempre na memória de Luís. "Recordo aquele episódio da carreta com os corpos como uma coisa chocante. Totalmente em carvão!"
Agora já não era só na rádio. A guerra chegava a Aljezur. E havia um funeral importante.
Um funeral com pompa e circunstância
De Lisboa e de Berlim chegaram as entidades oficiais. A câmara de Aljezur apressou-se a montar uma cerimónia pomposa. Foram prestadas honras fúnebres na Igreja Matriz e os corpos foram conduzidos ao cemitério por 28 homens.
O relatório do acidente revela o aparato. "À frente as crianças das escolas com galhardetes e estandartes, a seguir os prelados católicos, depois as urnas ladeadas por meninas com bouquets de flores naturais e uma senhora à cabeceira de cada urna conduzindo coroas de flores artificiais. Seguia-se o corpo diplomático, oficialidade portuguesa e presidente da câmara, a seguir funcionalismo público, guarda republicana, guarda fiscal, legião portuguesa e enorme multidão do povo".
No cemitério, um pastor protestante "proferiu um veemente discurso" e dispararam-se salvas. No documento é possível ler que "prestavam as honras fúnebres o pelotão, dando as descargas do estilo, ao mesmo tempo que os Oficiais Alemães e Portugueses lançavam sobre as urnas mãos cheias de terra".
Uma neutralidade pouco neutral, repara Luís. "Se nós tivéssemos outra política, não era admissível que isso acontecesse. Mas aconteceu".
Foi a primeira vez que as gentes de Aljezur viram um alemão. "Vinham fardados. Aquele boné impressionava qualquer um. Impunha respeito", lembra.
A medalha nazi e um diploma com a assinatura do Führer
Pelos bons serviços prestados, quatro homens da terra foram homenageados pela Alemanha: José Viriato-França, comandante da Legião Portuguesa em Aljezur, Amândio da Luz Paulino, administrador do concelho, Albano de Oliveira, presidente da câmara e Vitorino Cuco, o chefe da Guarda Fiscal e avô de Ernesto.
"Tomou conta da ocorrência e tratou de tudo. Primeiro por obrigação profissional e depois porque era uma boa pessoa, bem formada", lembra Ernesto.
A medalha e o diploma que recebeu foram, por isso, um reconhecimento e, na altura, uma honra.
Ernesto mostra uma capa de cartão com o símbolo do estado nazi a dourado. Lá dentro, um certificado. "Em nome do povo alemão, condecoro o comandante da Alfândega, Vitorino da Silva Cuco. Em 20 de outubro de 43. O Führer".
A assinatura salta à vista. Mete respeito, diz Ernesto. O avô era reservado sobre o assunto. "Até um bocado envergonhado, porque era uma condecoração nazi. Uma pessoa olha para aquilo e diz logo: 'uma cruz gamada, a suástica aqui, o que é que este homem fez?' Quando afinal fez o que qualquer cidadão normal faria, tratar com dignidade os corpos".
75 anos depois, cabe a Ernesto preservar a memória. É ele o fiel depositário das condecorações.
São muitos os que lhe pedem para mostrar os documentos. Ernesto acede sempre. É uma forma de continuar a passar a história. Homem de muitos talentos, encontrou na poesia uma forma de registar o momento e homenagear os que partiram.
Na ponta da Atalaia, o sítio onde há 75 anos morreram os aviadores, Ernesto afina a voz e declama:
"Cacarejam galinhas, grunhem suínos
Pelos ares faz eco o ruído da metralha
Pede-se a Deus que deste mal nos valha
Que nos deixe seguir nossos destinos.
Um avião por fim é abatido
Sobre a falésia, em vivas chamas cai
Não há tempo sequer para dar um ai
Nem jeito de poder ser socorrido.
Sete corpos a jazer no cemitério
O resultado de um combate aéreo
Que fez cobrir de mágoa a nossa terra.
Jovens ainda em amena flor da idade
Que nem sequer tiveram mocidade
Por mor do seu país andar em guerra".
Na Manhã TSF, Fernando Alves conversou com José Augusto Rodrigues, autor do livro "A Batalha de Aljezur".