A mulher de um madeirense naufragado no Titanic ainda tentou demovê-lo da viagem, mas Manuel Gonçalves Estanislau ignorou todos os avisos, conta a neta quando passam cem anos do grande desastre marítimo.
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«A avó dizia que não queria que ele fosse quando tinha os cinco filhos e o mais não eram grandes. (...) E não tinha com que viver para os sustentar.»
Maria Aldora Estanislau, de 71 anos, neta de Manuel Gonçalves Estanislau, madeirense da Calheta que morreu aos 38 anos no naufrágio do Titanic, desfia as lembranças que o legado familiar lhe deixaram da tragédia que se abateu no Atlântico de 14 para 15 de abril de 1912 com o «navio maior que havia no mundo».
Como muitos que o antecederam e tantos outros que o sucederam, Manuel Gonçalves Estanislau, agricultor, partiu «para ganhar um tostãozinho», mas com vontade de regressar e arranjar a casa que «era de colmo» e a cozinha «de terra, mas de telha».
Segundo o Instituto Nacional de Estatística, em 1912 emigraram 3.238 madeirenses, projeto de vida que mantiveram outros ilhéus ao longo do tempo.
«Nesse tempo não havia televisões, nem eletricidade, em casa ninguém tinha quarto de banho, a roupa lavava-se nas levadas», conta Maria Aldora Estanislau, acrescentando que o sustento das famílias saía da terra, onde a agricultura, que ainda molda a paisagem da ilha da Madeira, era um trabalho penoso, feito encosta acima, encosta abaixo.
A braços com cinco filhos, um dos quais Francisco, o pai de Aldora, a mulher de Manuel Gonçalves Estanislau agarrou-se à terra como se viesse dali o ar que respirava.
«Tinha batatinhas e semilhas na fazenda, mas não se vive só com semilhas e batatas», refere Maria Aldora, explicando que a avó, que a conheceu com «roupinhas mais tristezinhas», ainda «criava uma bezerrinha na venda de um senhor que dava a erva e o palheiro».
Mas para dar comer aos filhos, que andavam descalços e com roupa «remendada», foi ao Funchal «levantar bordados» que distribuía a outras mulheres. «Foi assim que ela sobreviveu e os filhos», garante.
«Custou a dar de comer aos filhos, porque não tinha dinheiro, não tinha nada, só tinha era as coisinhas da fazenda», declara Maria Aldora, cujo pai, seguiu, também, os trilhos da emigração.
Os familiares de Domingos Fernandes Coelho, outro dos agricultores madeirenses que estava no Titanic, continuaram, igualmente, a emigrar, fazendo jus à tradição.
O mesmo aconteceu com a mulher e netos de José Neto Jardim. A primeira, depois de um segundo casamento, partiu para o Brasil. A filha, que ficou pela ilha, teve nove crianças. Das três vivas, duas partiram.
É o caso de Ângela Jardim Figueira, de 72 anos, com casa na Calheta, próxima de onde o avô José Neto Jardim viu a família pela última vez antes de sair para o Funchal e embarcar rumo a Inglaterra para «apanhar» o Titanic.
Numa parede de casa, um painel de azulejos, fixado na parede exterior mostra a Nossa Senhora dos Emigrantes.
«Para Ela dar uma boa viagem à gente», justifica Ângela, que está a preparar o regresso à África do Sul no final do mês.
Sobre a tragédia que atingiu a família há 100 anos, no mar que acolhe a ilha da Madeira e é o cemitério do avô, a emigrante tem a panaceia para todos quantos vão além-mar à procura de melhor vida: «Tudo se faz, tudo passa, Nosso Senhor experimenta as pessoas, temos que ter força».