A história do "campo de esquecimento" dá voz aos prisioneiros condenados ao silêncio no Tarrafal
A preocupação destes homens é "limpar o seu nome", uma oportunidade ganha com o livro "Tarrafal, 1975 - O Campo do Silêncio", de Sandra Inês Cruz. Eles não querem morrer e deixar os filhos e netos com a mínima suspeita de terem sido colaboradores ou informadores da PIDE
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Os presos que o campo do Tarrafal acolheu após o 25 de Abril, por discordarem do rumo do processo de independência em Cabo Verde durante décadas ignorados, ganham voz num livro que investiga os pontos cegos desta prisão.
"Tarrafal, 1975 - O Campo do Silêncio" (Edições Afrontamento) é o nome do novo livro de Sandra Inês Cruz, uma jornalista e investigadora que durante os anos em que fez o doutoramento pesquisou o Tarrafal, enquanto "campo de esquecimento".
Em declarações à agência Lusa, sublinha que o campo funcionou continuamente durante 39 anos, entre 1936 e 1975. Isto, apesar de o fecho oficial da prisão ser 1 de maio de 1974, cinco dias após o 25 de Abril de 1974.
A investigação da autora focou-se, pois, nos 58 presos que ali estiveram privados da liberdade nesse período após a revolução em Portugal e os seus reflexos num "território que foi incapaz de suportar as contingências da liberdade, incapaz de suportar a livre expressão e a discordância própria de qualquer democracia".
Nesse "verão quente, em que tudo aconteceu no arquipélago", ocorreram também essas prisões, sobre as quais há um manto de silêncio, ainda hoje, e que privaram da liberdade "algumas vozes discordantes do processo que estava em curso com vista à independência".
Em Cabo Verde, era o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que liderava este processo e era com ele que Portugal estava a tratar dos respetivos procedimentos.
O caminho que estava a ser seguido apontava para a junção de Cabo Verde e da Guiné-Bissau como um país único, ideia com que não concordavam os que entretanto foram encarcerados no Tarrafal, assim como outras pessoas que defendiam uma consulta popular sobre o destino do país após a independência.
"Estamos a falar de homens sem processo, sem acusação formal, sem nada, que são enfiados ali para serem silenciados, no fundo, para não atrapalharem o processo de independência, nos moldes que estava a ser tratada", disse.
Um tempo que, segundo Sandra Inês Cruz, teve um grande impacto e consequências na vida destas famílias.
"Em alguns casos, eu atrever-me-ia a dizer, [um impacto] superior a casos anteriores, em que os homens lá tinham estado anos presos e que depois retomaram as suas vidas. Obviamente uma prisão destas deixa marcas para toda a vida, mas no caso de muitos destes homens [presos após o 25 de Abril], foi um corte com Cabo Verde, até hoje".
Em fevereiro de 1975, ano em que é decretada a independência de Cabo Verde, começam por sair dois portugueses da metrópole, detidos no campo e que vão para Portugal, onde são libertados.
Segue-se um conjunto de "outros homens que são libertados lá em Cabo Verde e que são homens que não têm um papel cultural ativo. São trabalhadores, alguns comerciantes, trabalhadores camponeses, gente mais humilde que assume que não se vai voltar a meter em política, nem ter voz ativa e, portanto, podem sair".
Em junho, são levados para Portugal 19 homens, sob prisão, suspeitos de serem da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Ficam em Caxias presos e depois são transferidos para a Penitenciária de Lisboa.
A autora refere que, em Cabo Verde, a alegada colaboração com a PIDE era utilizada como justificação para as detenções no campo, após o 25 de Abril.
Contudo, foram os próprios Serviços de Coordenação da Extinção da PIDE que não encontraram qualquer ato incriminatório nestes homens, que foram libertados da Penitenciária de Lisboa, em setembro.
A autora apurou, inclusive, que alguns destes homens suspeitos de ser informadores da PIDE foram vigiados por esta polícia política durante muitos anos, precisamente porque tinham "ideias de independência" e estavam "do lado da independência", de acordo com os arquivos da organização.
A preocupação destes homens é "limpar o seu nome". Eles não querem morrer e deixar os filhos e netos com a mínima suspeita de terem sido colaboradores ou informadores da PIDE.
Dos últimos 12 presos a serem libertados do campo, dez vão para Portugal no voo que leva de regresso as autoridades portuguesas que participaram nas cerimónias de independência de Cabo Verde, em 5 de julho de 1975. Dois ficam no arquipélago.
"A grande maioria ficou cá [em Portugal] a trabalhar, outros emigraram para os Estados Unidos, para a Holanda. É, sobretudo, gente que, por meia dúzia de meses na prisão, nunca mais voltou a Cabo Verde", disse.
E concluiu: "Nunca mais se sentiram queridos nem acolhidos no país, ou no território de onde eram originários. Portanto, houve uma dissociação desta gente com Cabo Verde."