Memórias e heranças de 20 anos de Correntes d'Escritas, segundo Valter Hugo Mãe
Para Valter Hugo Mãe, o festival Correntes d'Escritas deslocam, descentralizam, desmistificam a elite literária e cultural.
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A memória de Valter Hugo Mãe está intacta. Recua, com facilidade, ao ano 2000, à primeira edição das Correntes d'Escritas. "Era um muito jovem editor. Tinha acabado de entrar na Quasi Edições. Lembro-me de o Casimiro de Brito participar e nós organizarmos uma antologia do António Ramos Rosa, assinada pelo Casimiro de Brito. Os exemplares ficaram impressos e nós viemos a correr entregar ao Casimiro o livro com muito orgulho. Havia menos gente, mas havia assim uma, diria até, uma perplexidade por de repente e tão perto de nós, eu sou de Vila do Conde, haver um evento literário tão bom, tão qualificado".
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Um evento que permitiu ao então jovem editor ver e conhecer muitos dos escritores que tanto admirava. "Eu lembro-me de encontrar o Hector Abad Faciolince, um escritor colombiano que muito admirava e que nunca imaginei que um dia iria conhecê-lo. Ou o Leonardo Padura, ou ouvir a Hélia Correia ou o Jaime Rocha, por exemplo, que é um poeta que eu adoro. Lembro-me, também, de uma vez pasmar a olhar para o Sérgio Godinho. Foi há muitos anos, talvez na primeira vez que participou nas Correntes d'Escritas. Ele passou e eu disse «olha o Sérgio Godinho!».
De editor a escritor, Valter Hugo Mãe guarda deste projeto, desenvolvido na Póvoa de Varzim, um dos momentos mais marcantes do seu percurso. "Nunca me hei de esquecer quando editei o 'Máquina de Fazer Espanhóis', eu estava ainda em fase de promoção do livro e o carinho do público nessa altura foi muito importante".
Para Valter Hugo Mãe, as Correntes d'Escritas deslocam, descentralizam, desmistificam a elite literária e cultural e criam uma benesse, que descreve como algo sagrado, o sentido da vida. "Há todos aqueles instantes informais, de encontro em que nos sentamos uns com os outros. Antes de escrevermos somos leitores e essas pessoas ganham novas dimensões na nossa vida".
A vigésima edição das Correntes d'Escritas é a maior de sempre, com mais de cento e quarenta participantes, oriundos de vinte países. Luís Diamantino, vice-presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, diz que o sucesso da iniciativa decorre, também, de sementes há muito plantadas nesta terra de pescadores e escritores. Ao longo das edições deste encontro anual de escritores de expressão ibérica há heranças e memórias sem fim. No caso de Luís Diamantino, o momento mais marcante teve ritmo africano. "Foi quando o Malangatana, numa mesa, estava sentado, estava a conversar, e decidiu levantar a camisa. Começa a tocar batuque na sua barriga e a cantar e as pessoas ficam todas perplexas e boquiabertas".
No presente e para o futuro, o também vereador da Cultura, tem por certo que as Correntes d'Escritas vão continuar a fazer crescer gerações de leitores. Tem sido assim desde sempre. "Desde a primeira edição, os escritores vão a todas as escolas do concelho. Por isso agora há muita gente jovem que adere ao evento".
Ondjaki falhou a edição do ano passado, mas são poucas as faltas que conta nas Correntes d'Escritas. Das coisas que o escritor angolano mais gosta de observar é a evolução do público. "Conhcei aqui muita gente. Muitas crianças que há uns anos estavam na escola e agora são jovens e visitam-me".
Durante o evento, o escritor angolano diz que existe, na Póvoa de Varzim, um outro tempo. "Eu noto que o público sente que há aqui uma oportunidade de alguma intimidade. As pessoas procuram-nos, sabem que estamos à noite no hotel e vão ter connosco, lemos poesia. Também se conversa, as pessoas à procura disso, de uma conversa. Há aqui um outro tempo". O tempo da edição 20 das Correntes d'Escritas, corre, este ano, até ao dia 27 de fevereiro.
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