Artur Dron, escritor, ex-soldado ucraniano, escreve porque "tem medo de esquecer". Tem dois livros publicados, "Nos estávamos aqui", poesia, e o recente livro de prosa "Hemingway não sabe nada". A TSF falou com ele no Festival de Literatura Frontera em Lutsk, na Ucrânia
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Artur alistou-se poucos dias depois da invasão da Ucrânia em larga escala em 2022, quando tinha 22 anos. Natural da região de Ivano-Frankivsk e a viver em Lviv desde 2017, estudou jornalismo e trabalhava na editora The Old Lion, à qual deseja voltar. Entrevista para a TSF, a convite do Festival Frontera, um festival de literatura em Lutsk, cidade próxima ao rio Styr no noroeste da Ucrânia, capital do Oblast de Volínia.
Porquê este título no livro "Hemingway não sabe nada"?
Para entender a situação na Ucrânia temos que ouvir o que os ucranianos estão a dizer. Acho que os europeus estão a tentar comparar a nossa guerra com a sua maior e última guerra, a Segunda Guerra Mundial. Por exemplo, o facto de não ser uma guerra por territórios. Não ser uma guerra de Putin. Não é uma guerra entre Putin e Zelensky, não é uma guerra pela Crimeia, não é uma guerra pelo Donbas. É uma guerra da nação russa contra a nação ucraniana, pela nossa existência. Não é uma guerra que começou em 2022 ou mesmo em 2014. Esta guerra já dura há 300 anos, por isso tem um contexto muito profundo. Não podes compreender os ucranianos totalmente se não tiveres como referência a experiência do nosso passado ou se tiveres em conta apenas alguma literatura militar, por exemplo, Hemingway, Remarque, Jünger, Vonnegut. Hemingway é um símbolo mas ninguém, exceto nós, sabe o que se passa a um nível muito profundo. Temos de tornar as vozes ucranianas mais altas, temos de escrever livros sobre isso, temos de dar entrevistas, conversar com os nossos amigos estrangeiros.
E também é a minha resposta a esta pergunta muito popular na Ucrânia desde 2014 e especialmente desde 2022: onde está o nosso Hemingway? Porque temos esta grande guerra e as pessoas estavam à espera do nosso Hemingway, que escrevêssemos sobre ela como Hemingway escreveu. Esta é a minha resposta. Não precisamos de um Hemingway ucraniano, porque Hemingway não sabe nada e ninguém sabe o que está a acontecer. Teremos os nossos escritores, a maioria deles agora na linha da frente, outros sob ocupação, talvez no hospital ou mortos. E acrescentarei que é uma história muito pessoal, porque Hemingway sempre foi o meu escritor favorito desde os meus tempos de estudante. Era uma grande influência para mim até ter a minha própria guerra, até me tornar um soldado na guerra. E então compreendi que era hora de dizer adeus a Hemingway.
Como é que a guerra alterou a tua escrita?
Escrevia poesia antes da invasão em larga escala, mas parei quando me alistei. Todos os dias víamos nas notícias fotos de crianças mortas ou ou cidades bombardeadas. Achava que não fazia sentido coloca-lo em palavras. Levei meio ano a repensar a poesia, a literatura. Foi no início da nossa história de combate, em setembro de 2022, perto da cidade de Kramatorsk, que recomecei a escrever, mas já era outra escrita, outra linguagem poética, outra forma de escrever. A linguagem tornou-se mais concisa, dura, essencial e honesta. Resta apenas o cerne. Foi nesta altura, entre 2022 e 2023, que escrevi a coleção de poesia "Nós estávamos aqui". É um livro totalmente diferente do meu primeiro. O meu poema favorito, e para mim o texto mais forte escrito durante esta guerra, é da Kateryna Kalytko. Li o poema pela primeira vez em 2022, ainda não estávamos numa zona de combate. Guardei-o no telemóvel. Depois, li-o várias vezes durante toda a minha vida de soldado. Após experiências de combate em diferentes locais da linha de frente.
Enquanto combatias, como fazias para escrever? Era algo que querias escrever ou que precisavas de escrever?
Não é uma história romântica de balas a voar sobre a minha cabeça e eu simplesmente peguei um pedaço de papel da minha mochila e comecei a escrever e a dizer: "Malta, parem por alguns minutos, quero escrever algo porque os céus estão a falar comigo." Acontece principalmente em locais mais tranquilos. Escrever poesia não é realmente a escrever, é também pensar. Mesmo nas trincheiras, ou nas aldeias onde vivíamos perto da linha da frente, pensava sobre algumas experiências, ou percebia que queria dizer algo sobre alguém. Literatura e poesia, adoro repetir sempre que a literatura para mim é uma forma muito boa de falar sobre alguém. Na maioria das vezes, era quando voltávamos do nosso serviço nas trincheiras e tínhamos alguns dias ou um dia para descansar na aldeia onde vivíamos. Aí tínhamos os nossos telefones, tínhamos internet, tínhamos até computadores e então eu escrevia essas linhas no meu telefone e depois, podia fazer um poema a partir disso. Gosto de escrever e reescrever até ter a certeza de que é a única forma possível de colocar essas palavras.
Num dos teus poemas falas de alguém que estava a lutar contigo. O sonho dele era uma bicicleta. Foi comovente para mim ires à sua aldeia, mas para o funeral. Escreves para fixar memórias? Tens medo que essa história se perca ou queres prestar homenagem a essa pessoa que perdeu a vida a lutar contigo?
Na verdade, descobriste um dos meus maiores medos. Tenho muito medo de me esquecer. Mesmo quando tenho de passar por uma experiência difícil, mesmo que sejam memórias difíceis, quero tê-las. Quero lembrar-me delas. Ter a oportunidade de pensar sobre elas. Quando, após os primeiros meses de batalhas, já estava muito cansado, apercebi-me que havia algumas coisas pelas quais tinha passado há alguns meses que já não me conseguia lembrar. Isso tornou-se um grande medo. Então, uma das minhas razões para escrever é corrigir isso. Escrever sobre isso, porque nada pode mudar essas palavras. A segunda coisa, e talvez mais importante, quando escreves sobre alguém, por exemplo, que foi morto. É claro que as palavras não podem trazê-lo de volta à vida. Mas essas palavras podem tornar a sua dor menos dolorosa. Podemos guardar algo dessa pessoa. Como neste exemplo com o nosso amigo Ivan, não posso trazê-lo de volta, mas posso tentar pegar esse sentimento infantil da vida, esse doce sonho da bicicleta, essa parte muito profunda, honesta e, dum homem adulto numa guerra mas como um sonho de criança. Posso tentar pegar nessa luz e colocá-la em algumas palavras.
Quando começaste a combater e quando foste ferido?
Alistei-me nos primeiros dias da guerra em grande escala numa brigada nova criada naqueles dias, a 125.ª Brigada de Defesa Territorial de Lviv. Feri-me no outono do ano passado, 31 de outubro. Pensava que era o meu último dia antes, de duas semanas férias militares. Tinha um plano de voltar das posições e, naquela noite, ir para Zaporijía e, dali ir de comboio para Lviv. E em uma semana pedir a minha namorada em casamento e fazer algumas mudanças na minha vida. Mas não foi bem como eu pensava. Os meus colegas já estavam a caminho para nos ir buscar às posições. Quando chegaram, tínhamos três feridos e dois, infelizmente, mortos. Foi a primeira vez que me feri, e espero que seja a última. Mas já tinha tido contusões, provocadas por explosões e queimaduras pelo frio nas minhas pernas.
Escreveste sobre esse momento?
Sim, mas não como um poema. Está no meu primeiro livro de prosa, "Hemingway não sabe nada", publicado no final de Agosto. Pequenas histórias em prosa. Há um texto sobre essa história da lesão, relacionado com o meu relacionamento com a minha atual esposa, antes minha namorada.
És da parte ocidental da Ucrânia. Quando estavas a lutar no Donbass, nunca, nem um único dia, te perguntaste: 'O que estou aqui a fazer?'
Não. Porque acho que também é muito importante compreender que quem é da Ucrânia ocidental e está a lutar, por exemplo, na região de Donetsk ou na região de Kharkiv, na verdade, tem sorte, porque temos a oportunidade de defender Lviv, a mil quilómetros de Lviv. Lembro-me sempre disso. Não estou a lutar apenas por Kramatorsk ou por outra região. É uma batalha por toda a Ucrânia, incluindo a minha própria aldeia. Talvez seja difícil pensar que na minha aldeia, em Pidmykhailinsk, um dia haverá tanques russos ou algo do género, mas é possível. E graças a essas pessoas que estão a lutar agora na região de Donetsk, isso não está a acontecer agora.
Conheces alguém que tentou fugir da Ucrânia para evitar o serviço militar?
Sim, conheço alguns que fizeram isso.
E também há desertores na linha da frente. Alguém que simplesmente desaparece...
Neste novo livro há um texto chamado "Até ao fim". Há uma parte da história do meu camarada que se alistou no exército nos primeiros dias. A sua família, esposa e os dois filhos foram para a Alemanha. Ele estava a servir, lutou durante dois anos e meio. No ano passado, teve a oportunidade de ir à Alemanha nas férias militares e tencionava passar esses dias com a família. Percebeu que já não fazia parte dessa família porque a esposa encontrou outro homem. Uma situação muito difícil. Depois ele teve a oportunidade de ir para o estrangeiro mais uma vez, e decidiu nunca mais voltar. Não é uma história sobre um homem que não queria servir no exército e atravessou a fronteira. É a história dum homem que serviu dois anos e meio, que passou por momentos difíceis e batalhas e que estava tão cansado quanto um ser humano pode estar. Teve todos esses problemas e simplesmente desistiu. Não é bom, mas nunca escreveria sobre ele sem contexto. Porque é muito mais difícil, mais duro do que parece à primeira vista. Há muitos, muitos homens na Ucrânia que poderiam substituí-lo no exército, por exemplo, no segundo ano de guerra total. Talvez ele ainda estivesse na Ucrânia. Talvez pudesse descansar e depois continuar. Mas agora ele é um infrator da lei. Mas há muitos homens que nunca estiveram no exército. Que nunca viram esta guerra. Que nunca fizeram nada do que ele fez e são bons cidadãos que vivem aqui. Não têm problemas com a lei. Por isso, é muito difícil julgar.
Há alguma história que te tenha marcado tanto que não conseguiste escrever sobre ela?
Sim. Mas este é um lugar onde a poesia mostra o seu poder. Porque quando se escreve prosa, as coisas são mais óbvias. Mas na poesia pode-se colocar coisas muito pessoais em palavras. A poesia ajuda. Podemos escrever sobre essas emoções, sem contar a história. Mas existem coisas sobre as quais talvez ainda não queira escrever.
Desejas continuar a escrever?
O principal é o trabalho literário. Sou um homem feliz por ter saído vivo da guerra. Não sei quanto tempo tenho, mas agora tenho este tempo. E quero dedicar este tempo à minha família, às pessoas próximas e ao meu trabalho literário. Quero escrever.Quero tornar-me um escritor mais profissional. Mas também quero voltar à editora The Old Lion. Talvez nos encontremos no próximo festival da The Old Lion, com Kateryna Kalytko.
O teu livro está traduzido em português?
Não. Está traduzido em sueco, norueguês, inglês e em breve em polaco e francês. E pelo que sei, estamos à espera também da tradução para lituano e alemão. Para português ainda não planos mas seria ótimo. Italiano, português. Mas não tenho notícias sobre isso. Estou com os dedos cruzados para que haja o máximo de traduções possível. Perdi muitos convites para festivais internacionais, apresentações e residências por causa do meu serviço militar. Agora tenho a oportunidade para ir ao estrangeiro durante pelo menos um ano.
Como vês o futuro desta guerra?
Tenho muito poucos pensamentos positivos. Acho que vai demorar muito. É muito difícil para mim imaginar como isso vai acabar. Obviamente, queríamos que os russos saíssem de todos os territórios ocupados, incluindo a Crimeia, em breve, e restaurar as fronteiras de 1991. Não será esse o caso. É difícil. Não sabemos como esta guerra vai acabar nem quando vai acabar. Temos de fazer o nosso trabalho. Temos de ajudar os nossos soldados. Temos de nos tornar soldados. Temos de falar sobre isso. Temos de manter esta amizade com os nossos amigos no estrangeiro. Temos de manter o foco em toda esta situação. É claro que não somos pessoas todo-poderosas. Temos apenas de fazer a nossa pequena parte do trabalho.