Entrevista ao programa O Estado do Sítio da TSF, após as 13h00, a propósito da publicação do livro "Ligar: uma reflexão sobre a política externa portuguesa de 2015 a 2022". Aqui, sobre Portugal no mundo e o papel da língua.
Corpo do artigo
Assumido otimista por natureza e convicção política, o presidente da assembleia da república é cauteloso quanto ao sucesso do cessar-fogo em vigor na Faixa de Gaza, Diz que a responsabilidade do que está a acontecer é do Hamas. Para o atual presidente da Assembleia da República, nada justifica o terrorismo. Nesta entrevista à TSF, Augusto Santos elogia os mandatos de António Guterres como secretário-geral da ONU, apesar das enormes dificuldades que teve de enfrentar, desde logo um conselho de segurança paralisado, que já não reflete o mundo atual. Aqui, a primeira parte da entrevista.
Este livro tem um título que é um verbo que implica ação "Ligar", sobre as principais orientações da política externa da democracia portuguesa. Mesmo com a complexificação das relações internacionais e aquilo que tem acontecido no mundo nos últimos anos, mais um aspeto também refere no início do livro, a internacionalização da economia, esses aspetos não estão ligados. Ou seja, escolheu o título ligar porque é um trabalho ainda por fazer?
Eu escolhi o verbo ligar porque me parece dar bem conta do que pode ser o essencial da contribuição de Portugal à comunidade internacional. A política externa portuguesa é muito fácil de caracterizar. Em primeiro lugar, na sua estabilidade e continuidade, desde a institucionalização da democracia, portanto desde o primeiro governo constitucional e depois nas grandes opções estratégicas que estruturam essa estabilidade e continuidade que nós nos habituámos a dizer e bem, que são, em primeiro lugar, a integração europeia - essa foi a grande opção do país democrático pós colonial -; segundo: a continuidade na OTAN, na NATO, e essa nova fundação que é a Portugal, membro da Aliança Atlântica, agora como uma democracia, porque a Aliança Atlântica é a aliança de democracias. Em terceiro lugar, a atenção às comunidades e o desenvolvimento de uma política das comunidades, e não apenas de uma política de apoio a emigrantes. E, em quarto lugar, a CPLP. Portanto, o projeto comum com países de vários continentes unidos pela mesma língua. E nós definimos muito bem o essencial do nosso posicionamento geopolítico. Nesta lógica, abandonado o império colonial e os sonhos delirantes de ter um império colonial em pleno século XX, nós reposicionámo-nos na Europa sem perdermos a nossa ligação ao mundo. A minha opinião é que entretanto fomos evoluindo e daí que eu tivesse proposto, usando justamente esse verbo Evoluir, que significa não romper, mas desenvolver. Daí que eu tivesse proposto que nós acrescentássemos a estas quatro grandes orientações, mais duas em que nos fomos reforçando. Uma é a internacionalização, a internacionalização da nossa língua na nossa cultura, da nossa economia, do nosso ensino superior e da nossa ciência. E outra é o multilateralismo, porque Portugal ficou, de facto, um país cada vez mais importante nas agendas multilaterais, liderando aliás algumas dessas agendas, como por exemplo, a Agenda dos Oceanos e da política global para os oceanos. Esta já é a lógica de um hexágono, que pode caracterizar o essencial da nossa política externa. O valor acrescentado por Portugal ao mundo está cada vez mais nessa nossa capacidade de mediar, de moderar, de compreender diferentes realidades, de articular diferentes realidades. E é isso que o verbo ligar quer exprimir.
Tem a sensação de ter sido o primeiro titular da pasta dos Negócios Estrangeiros a dizer que em 1500 o Brasil foi "achado" pelos portugueses para o para o velho Mundo?
Não, não tenho essa memória. Eu acho que vários outros ministros dos Negócios Estrangeiros e ministros da Cultura tinham tornado claro antes, que a terra a que se veio chamar o Brasil já existia antes de os portugueses lá chegarem. Agora, eu devo dizer que não tenho nenhum problema com a palavra descobrimento ou a palavra descoberta. Aliás, acho uma palavra que se deve empregar.
Mas está ou não na altura de começarmos a considerar os descobrimentos e aquele período histórico, não só nos seus lados de façanha e de descoberta propriamente dita, mas também pelo lado negativo, pelos crimes que foram praticados, pela escravatura, pela pelas mortes que a ocupação dos territórios acarretou?
Claro, isso sim, foi uma primeira vez há coisa de um ano, se não me falha a memória. Pela primeira vez, os três titulares de órgãos de soberania política em Portugal foram unânimes no pedido de desculpas pelo massacre de Wiriyamu. Fez o Primeiro-Ministro, fiz eu próprio e fez o Presidente da República e isso foi um movimento muito importante. Aliás, o Presidente da República já tinha também feito um pedido de desculpas, eu assisti a isso enquanto MNE em São Tomé e Príncipe, por um massacre cometido nos tempos coloniais. E eu acho que é mesmo muito importante nós olharmos para a história do nosso colonialismo. Como o Eduardo Lourenço diz num conjunto de textos que foram reunidos em livro com o nome muito impressivo Do Colonialismo, Como o Nosso Impensado, de facto, nós temos pensado pouco sobre o nosso colonialismo e devemos pensar mais. Mas isso não significa que nós devamos pensar no colonialismo contra as descobertas. Isto é, nós fomos ao mesmo tempo capazes de uma aventura que é a aventura da expansão marítima dos séculos XV a XVI, e depois a aventura do Império e da construção de países como o Brasil, mobilizando o melhor do saber europeu da altura, cruzando influências judaicas, árabes, italianas, espanholas e as nossas próprias. Antecipando nós, como bem diz o professor Henrique Leitão, a revolução científica do século XVII, fazendo coisas extraordinárias como a viagem marítima até a Índia, a viagem de circum-navegação. Nós e os espanhóis, naturalmente. E também devemos pensar nisso. Essa é a nossa memória, esse é o nosso património. Portanto, os dois lados são necessários para nós termos uma compreensão do que fomos e do que somos.
Quando no livro nos dá os números dos falantes de português em países onde o português foi adotado como língua oficial ou como uma das línguas oficiais, pergunto lhe se não é um falhanço da diplomacia portuguesa, que considera a língua como um instrumento de ligação e também de ação política, se não é um falhanço que só 0,1% dos timorenses falem português depois de tanto investimento feito no território, nomeadamente através do Camões, etc?
Não, essa estimativa, aliás, surpreendeu-me quando eu a conheci e creio que necessita de revisão. Eu utilizei sistematicamente os números da mesma estimativa devida à equipa do professor Luís Rato para que esses números fossem comparáveis. O que acontece em todos os casos, incluindo Timor-Leste, em relação aos países que foram colónias portuguesas ainda no século XX e se tornaram entretanto independentes, é este facto extraordinário: é que o número de falantes em português multiplicou-se. Cresceu muito em alguns países, mesmo exponencialmente, depois da independência. Fala-se muito mais português hoje em Angola do que se falava no tempo, vamos dizer assim, dos portugueses. Fala-se muito mais em português em Moçambique do que se falava antes de 1974 e assim sucessivamente. E, portanto, a nossa língua é a língua de cada um de nós. Eu adoro e estou sempre a citar, e não vou perder a oportunidade de citar mais uma vez, a frase com a qual o Mia Couto recria o célebre dito do Fernando Pessoa: A minha pátria, diz o Mia Couto, é a minha língua portuguesa, isto é, a língua portuguesa que eu fiz minha da maneira como eu falo, a maneira como a escrevo, com o vocabulário enriquecido que ela tem e a maneira moçambicana. Os linguistas dizem: a variedade moçambicana do falar português; e isso é muito importante. Portanto, a nossa língua é nossa porque é de cada um de nós. E é nossa também, porque ela é a língua oficial de Angola, porque os angolanos a escolheram como tal. É a língua oficial de Moçambique, porque os moçambicanos a escolheram como tal. Aliás, o Mia Couto conta uma história muito, muito interessante, que é no segundo congresso da Frelimo, em 1962, que a Frelimo decide que o português será a língua do Estado quando Moçambique se tornar independente. E como o Congresso foi feito em Sar-es Salam, na capital da Tanzânia, as atas foram publicitadas em inglês e, portanto, é em inglês que a resolução diz que o português vai ser também a língua. O Samora Machel dizia que o português tinha sido o troféu de guerra. Isto é, num certo sentido, a língua portuguesa tinha sido arrancada ao colonizador para fazer língua nacional. E nós compreendemos porquê. Porque o facto de o português ser a língua nacional de Angola foi um elemento muitíssimo importante para a construção do Estado angolano como um Estado unitário e como unificador, claro, para contrariar derivas tribalistas ou separatistas. E, no caso de Moçambique, também. Moçambique tem várias línguas muito importantes, mas o português é a língua veicular, porque há falantes de línguas do norte de Moçambique que não compreendem falantes do sul de Moçambique. E, portanto, a língua veicular é o português, é a língua em que as pessoas se podem entender todas.