"Estou enormemente preocupado com a Colômbia: polarizada, intolerante com a dissidência e com o debate"
Uma mulher morreu à mesa de jantar. Em frente a Gabriel García Márquez. Gabo escreveu, dias depois, que Feliza tinha morrido "de tristeza". Aquilo marcou Juan Gabriel Vásquez, um dos grandes escritores latino-americanos da atualidade. Jornalista como o mestre. Entrevista TSF com o mote "Os Nomes de Feliza"
Corpo do artigo
Juan Gabriel Vásquez, muito obrigado por estar connosco. Gostaria que nos apresentasse este livro, Os Nomes de Feliza. Que livro é este?
Antes de mais, é um romance. É um romance, mas é igual ao meu livro anterior, Olhar Para Trás. É um romance sobre uma pessoa real interpretada através dos mecanismos da imaginação, mas sem inventar acontecimentos. É um romance que conta a história de Feliza Bursztyn, escultora colombiana que, em 1982, durante um jantar com Gabriel García Márquez, com o marido de Feliza, com Mercedes, a mulher de García Márquez, e outros amigos, teve um ataque cardíaco repentino e morreu à frente de García Márquez. Uma semana depois, García Márquez escreveu um artigo no El País que começava por dizer que a escultora colombiana Feliza Bursztyn morreu de tristeza em Paris na sexta-feira passada, entre outras coisas. Eu li esse artigo quando tinha 23 anos, em 1996, e pensei: porquê de tristeza? Porque é que García Márquez diz que ela morreu de tristeza? E agora, nos últimos dez anos, tenho investigado as causas dessa tristeza, a vida de Feliza Bursztyn, e este romance que proponho aos leitores é isso. É o resultado da investigação dessa questão. Feliza Bursztyn morreu de tristeza ou não? É isso.
E através de Feliza Bursztyn acaba por contar a história, a vida da Colômbia ao longo das décadas. A presença dos judeus na Segunda Guerra Mundial e após a Segunda Guerra Mundial, a instauração da ditadura, a vida boémia e artística, acaba por ser também um retrato. Por exemplo, de Bogotá, mas não só. Sei que há Nova Iorque no livro, há Paris no final da vida de Feliza, mas também há muita Colômbia.
Sim, bem, a vida de Feliza Bursztyn parece-se muito com as vidas dos meus personagens em todos os romances que escrevi. É um lugar onde chegam as forças da história, as forças da política, e isso é o que sempre me interessou contar. Ela é, de facto, filha de um casal judeu que está na Colômbia por acaso quando Hitler chega ao poder e decide não voltar, de modo que Feliza nasce em Bogotá por um acaso da história. Ela cresce num país violento, convulso, no meio de uma quase guerra civil entre liberais e conservadores, e isso marca a sua vida. Ela cresce nos anos 60, nos movimentos feministas, nos movimentos da esquerda revolucionária, e tudo isso marca a sua vida. Portanto, é uma daquelas vidas em que se reúnem as dinâmicas da história e da política e que acabam por afetá-la. E é isso que sempre me interessou contar nesta vida, como nas outras.
E de onde vem essa tristeza? A tristeza vem da vida familiar, da maternidade, do marido conservador, piloto, nova-iorquino, que ela conhecera nos Estados Unidos?
A tristeza vem dos obstáculos, das amarras que a vida lhe impõe a cada passo. Feliza sempre teve um grande impulso de liberdade, uma obsessão, digamos, por se definir a si mesma, diante de todas as forças da sociedade que queriam defini-la. Queriam dizer-lhe como deve ser mulher, como deve ser judia, como deve ser artista, e ela queria ser artista, ser mulher, ser judia, ser de esquerda nos seus próprios termos. E a sua vida foi uma luta constante contra as restrições que a sociedade da sua época lhe impunha.
É possível, apesar de estar situada num determinado contexto histórico, transpor a vida dessa mulher para os nossos tempos? Também tiveste essa preocupação?
Sim, absolutamente. Nunca me interessei pelo passado, em particular pelo passado colombiano, a não ser como uma forma de comentar o presente.
É por isso que escreves "a reconstrução do passado, esse lugar desconfortável que só existe quando o contamos"?
Sim, bem, essa é uma das preocupações que sempre tiveram os meus livros. O passado como território não existe, só existe enquanto o contamos. Isso significa que nós, que o contamos, os romancistas, os jornalistas, os historiadores, temos sempre uma enorme responsabilidade, estamos a dar forma com palavras à imagem que se tem de um tempo que já passou. No caso de Feliza Bursztyn, esse tempo foi marcado pelas forças da política, a sua vida terminou no exílio, perseguida politicamente pelo governo colombiano, num momento que tem uma relação direta com o nosso presente político, polarizado, incerto, intolerante, intolerante com a dissidência, intolerante com o debate, e por isso também me interessou explorar como, em certo sentido, embora Feliza tenha morrido há 40 anos, o nosso momento não mudou.
Estás preocupado com este momento atual de polarização política na Colômbia?
Bem, sim, enormemente, enormemente. Acho que o meu país está a passar por um momento crítico, como todas as democracias ocidentais, aliás, mas acho que, em particular, a Colômbia corre hoje o risco de desperdiçar, de não aproveitar uma grande conquista de há alguns anos atrás, que foram os acordos de paz assinados em 2016, para pôr fim ao conflito entre uma das maiores guerrilhas do mundo, as FARC, e o Estado colombiano. Esses acordos foram elogiados em todo o mundo, reconhecidos em todo o mundo como uma grande conquista, mas os governos seguintes, às vezes de forma maliciosa, às vezes de forma desastrada, não os aproveitaram, não os implementaram como deveriam. O primeiro governo após os acordos, o governo de direita de Iván Duque, sabotou-os, ignorou-os, e o governo atual, o governo de esquerda de Gustavo Petro, abandonou-os para embarcar noutro projeto pessoal do presidente que se chama 'A Paz Total', que tem boas intenções, mas foi mal concebido, mal pensado e mal executado. Entretanto, os acordos bem-sucedidos de 2016 foram abandonados e relegados com consequências terríveis. Por isso, sim, estou muito preocupado.
Consequências terríveis como a permanência da onda de sequestros... lia hoje num jornal colombiano o seguinte: os acordos do Exército de Libertação Nacional com a Venezuela vieram para mínimos históricos com a assinatura do acordo de paz em 2016 com as FARC, mas agora a prática de crimes revive nas mãos das dissidências e do ELN. O crime de sequestro registou um aumento de 57% neste ano 2025, com 256 casos, de acordo com a Fundação Ideias para a Paz. Portanto, é algo que dramaticamente não se pensava que pudesse acontecer nove anos após o acordo de paz...
Sim, efetivamente. É longo de explicar, mas após 2016 e os acordos, a maior guerrilha do continente desmobilizou-se. As FARC largaram as armas, mas após a sabotagem dos acordos de paz levada a cabo pelo governo de Iván Duque, criou-se uma situação em que um grande grupo de guerrilheiros preferiu retomar as armas. E a situação que parecia controlada de repente degenerou em novos movimentos, como as dissidências, que provocaram uma situação de violência e insegurança em certas zonas do país que não se via há muitos anos.
A situação da ordem pública hoje é profundamente preocupante. O governo de Gustavo Petro tem sido negligente, as pessoas abandonaram vários territórios do Estado, permitiu que estruturas criminosas se consolidassem em várias zonas do país, e isso está a levar a uma situação de insegurança que não se via desde 2013 ou 2014. E isso tem consequências muito graves, que são, em primeiro lugar, sociais, o sofrimento das pessoas, mas também políticas.
O teu desencanto com a política reflete-se em frases como esta que aparecem no livro, e o livro é uma ficção, mas quando escreves: "Na Colômbia, a proximidade com os poderosos gerou neles um sentimento de desilusão. Era melhor mantê-los a uma distância segura, era melhor não se deixarem devorar pela sua força gravitacional." Este é também o teu desencanto com a política e com os poderosos?
Bem, sim. Acho que a política entendida como a arte de melhorar a vida das pessoas, a arte de tornar a vida daqueles que têm uma vida mais difícil um pouco mais fácil, falhou estrondosamente na Colômbia. Nesse sentido, o novo governo, o governo de Gustavo Petro que agora está a terminar, foi uma enorme desilusão. É o primeiro governo de esquerda na história do país e, embora eu nunca tenha tido uma boa opinião de Gustavo Petro, acreditava que um governo de esquerda poderia ser uma solução, uma correção após anos e anos de governos de direita que tinham abandonado a possibilidade da paz ou a tinham sabotado e também abandonaram políticas sociais que eram importantes. Não foi assim. O governo de Petro tem sido incompetente, populista no pior sentido da palavra, tem jogado com o confronto, a polarização, a ruptura da conversa e do diálogo, e embora tenha enchido a boca de palavras, nunca levou nenhuma política real à prática, e as pessoas estão à espera disso.
O romancista sai do jornalismo, mas o jornalismo nunca sai do romancista?
São dois lugares, em certo sentido, completamente opostos, mas dependentes um do outro. Acredito que os romances são escritos a partir de perguntas, de incertezas, de dúvidas, enquanto o jornalismo que escrevo nos meus artigos de opinião é escrito a partir de certezas, mesmo que sejam momentâneas. Portanto, são duas éticas completamente diferentes, mas fazem parte ou coexistem na mesma pessoa, num cidadão chamado Juan Gabriel Vásquez, que é romancista seis dias por semana e escreve artigos de opinião no último dia.
O que é que te traz a vida em Madrid de diferente da vida em Medellín?
Ou Bogotá!
Ou Bogotá...
Sim. Bem, acho que principalmente a sensação de estranheza, que para mim é importante, gosto de me sentir estranho, gosto de estar num lugar que não é o meu, e tenho uma longa relação com Espanha, morei durante 13 anos em Barcelona, de 1999 a 2012, e tenho essa relação de amizade que também passa pela língua, pelos livros que publico, de modo que me sinto confortável em Madrid. Mas Bogotá e a Colômbia continuam a ser a minha obsessão, o tema dos meus livros, a fonte das minhas ansiedades e o centro das perguntas que me faço.