Guiné-Bissau. "As pessoas acreditavam que o Presidente não ia ser reconduzido, existia um cansaço muito expressivo sobre ele"

Cidadãos guineenses ocupam a estrada que liga o aeroporto ao centro de Bissau no último de campanha, 21 de novembro, antes do comício de encerramento do Presidente, Umaro Sissoco Embaló
Mário Cruz
O fotojornalista Mário Cruz, a desenvolver um projeto sobre a Guiné-Bissau, regressou ao país, acompanhou o momento eleitoral e foi apanhado pelo 'golpe de Estado'. Conta na TSF o que viveu nestes dias
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"É a terceira viagem que faço num ano e meio, precisamente porque quero documentar um país que está permanentemente em suspenso e este período eleitoral permitia-me acompanhar esta vontade democrática de uma mudança que eu ouvia falar muito nas ruas. A verdade é que as eleições no domingo decorreram com bastante normalidade, pelo menos do que eu pude testemunhar. Acompanhei várias mesas de voto em Bissau e senti que existia uma grande mobilização, havia muitas pessoas a votar, sobretudo no período da manhã, e, depois, quando as mesas encerraram às 17h00, também vi uma coisa que não estava à espera de ver de forma tão expressiva: as pessoas junto às mesas de voto, a assistir à contagem, a celebrar à medida que os votos iam sendo contados e eu fiquei com a sensação, até porque, por aquilo tudo que ia falando e pelo que eu ia ouvindo das pessoas, que iria existir uma mudança política na Guiné-Bissau. Existiu quase uma pré-celebração logo no dia das eleições, porque se percebeu que realmente o resultado poderia não ser aquele que permitiria a continuidade do atual Presidente", começa por dizer Mário Cruz à TSF.

Cidadãos guineenses ocupam a estrada que liga o aeroporto ao centro de Bissau no último de campanha, 21 de novembro, antes do comício de encerramento do Presidente, Umaro Sissoco Embaló. Créditos: Mário Cruz
Mas, logo na segunda-feira, surgiram as visões contraditórias: "Ambos os candidatos declararam vitória e, já na altura, a Comissão Nacional de Eleições tinha dito que até quinta-feira iria divulgar os resultados oficiais." Na quarta-feira, deu-se "todo este percalço, que ainda hoje é um bocado difícil de escrutinar", mas, para Mário Cruz, "é um golpe de Estado muito encapotado".
O fotojornalista conta como o viveu: "Eu estava precisamente na zona do mercado do Bandim, que é a zona onde estão mais pessoas concentradas em Bissau, onde estão a fazer a sua vida, onde está o comércio, e era perto da hora do almoço, meio-dia, à volta disso, eu começo a ver imensas pessoas a correr. Eu estava acompanhado por uma pessoa que vive cá e as pessoas começam a correr de uma forma completamente desorientada, em pânico, nós perguntámos o que se estava a passar e é quando começam a dizer que está a haver tiros, nós começamos a ouvir uns barulhos lá ao fundo, que não conseguimos perceber de onde é que vinha. E depois, em poucos segundos, gerou-se o caos, tentativas de invasão de espaços comerciais, as estradas ficaram ocupadas."
Mário Cruz revela que, naqueles momentos de caos, chegaram a ser assaltados. "Ficámos sem tudo o que tínhamos, felizmente apareceu um grupo de pessoas que nos ajudou e nós conseguimos rever as nossas coisas e voltar para o centro de Bissau, que, naquela altura, era de onde, na generalidade, as pessoas estavam a fugir. E depois quando cheguei à zona onde estou, onde estou a dormir, que é aqui mesmo junto ao Forte São José da Amura, que é o principal forte militar aqui em Bissau Velho, já havia militares a ocupar cada esquina das ruas de Bissau, já estavam a dizer que ninguém podia estar ali. Foram momentos de muito pânico, em que numa hora um país estava com o seu ritmo normal e de repente não há ninguém nas ruas e ninguém sabe muito bem o que se está a passar."

Vista da avenida Amílcar Cabral, onde se encontra o palácio presidencial, completamente vazia no dia das eleições, 23 de novembro. Um cenário que se voltou a repetir após o golpe de Estado. Créditos: Mário Cruz
Passados alguns dias, a situação em Bissau já está normalizada e mais calma? "Sim, hoje, sexta-feira, há uma aparente normalidade. Os militares não param de passar de um lado para o outro ou em carrinhas. Mas parece-me que as pessoas já retomaram a sua vida."
O premiado fotojornalista português (duas vezes com o World Press Photo, por exemplo) explica na TSF a sensação vivida em Bissau: "Existe uma estranha naturalidade e normalidade em tudo isto. Não é o primeiro golpe de Estado, se é que podemos dizer que isto é um golpe de Estado verdadeiramente, seria o quinto, mas, ainda assim, não deixa de ser estranho como ninguém podia sair das suas casas porque a questão do recolher obrigatório, na prática, não foi só entre as 19h00 e as 06h00. Ao longo de todo o dia, as ruas tiveram desertas e eu tentei sair para tentar ter comida e água e a presença militar era muito expressiva em todo o lado. Agora existe esta normalidade, mas também acho que existe uma grande indignação com tudo o que está a passar."
Cruz acompanhou o último dia de campanha eleitoral do Presidente, Sissoco Embaló, com "milhares e milhares de pessoas à volta do Presidente". "Mas percebia-se que havia uma grande tensão. Mesmo na semana passada, quando cheguei à Guiné-Bissau, todas as conversas que fui tendo apontavam para essa mudança. As pessoas acreditavam mesmo que o Presidente não ia ser reconduzido, existia um cansaço também muito expressivo sobre ele, mas da mesma forma que expressavam essa garantia de mudança, ou pelo menos essa expectativa de mudança, também expressavam que seria impossível ele aceitar o resultado eleitoral e, portanto, isto de alguma forma era previsível que acontecesse."
Não se sabia como é que seria, "se através deste golpe militar ou ser ele a ligar para jornais franceses a dizer que tinha sido preso ou que tinha sido detido". "Provavelmente não se imaginava concretamente este cenário, mas a verdade é que tudo isso já era expectável", diz.
O fotojornalista conta que "já há muito tempo que há uma grande pressão sobre jornalistas e ativistas", ou seja, todo o ambiente social na capital guineense fazia antecipar que "se houvesse um resultado eleitoral desfavorável ao Presidente, o cenário não seria positivo".
