João Francisco Guerreiro, enviado da TSF, acompanha a primeira volta das eleições presidenciais francesas.
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Por diversas razões, as campanhas eleitorais, de um modo geral, trazem a abordagens demasiado simplistas para os assuntos tratados. A verdade é que França chega ao dia da primeira volta das presidências com uma "overdose" dos três temas que marcaram a campanha: emprego, imigrantes e, principalmente, o terrorismo. Mas, com muitas dúvidas sobre soluções relevantes.
Talvez não tivesse sido necessária a morte de um polícia, a três dias das eleições, à hora do último debate entre os 11 candidatos, para que o terror que, desde janeiro de 2015, se abateu sobre a cidade fosse um tema marcante. Mas deixa uma certa insatisfação e é até frustrante ver um assunto tão sensível abordado de forma leviana por candidatos à presidência de um país que exportou os valores da Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Evocar medo, para conseguir votos é simplesmente abjeto.
Com uma certa admiração, registei a atitude dos parisienses, após cada um dos atentados: "la vie continue". Devo dizer que, da segunda vez que escutei estas palavras, na Boulevard Voltaire, em Paris, mais do que admiração, questionei-me perante de tamanha capacidade de superação. Paris continua uma cidade fervilhante. Há filas à porta das salas de espetáculos, as ruas estão cheias e as esplanadas mais ainda. Mas, será que a vida continua da mesma maneira?
Permitam-me, neste ponto, um olhar menos distanciado. Vi o sangue de todos os atentados de Paris. Sei bem que o terror não tem a ver com o momento, mas com um sentimento que permanece.
Em novembro de 2015, enquanto testemunhava a reação dos parisienses, no dia que se seguiu ao massacre no Bataclan e noutros cinco pontos da cidade, as buscas para encontrar cúmplices dos atacantes, decorriam em Molenbeek e em Schaerbeek, o bairro em que vivo em Bruxelas. A minha família ali. Os explosivos fabricados ali, soube-se depois. E, dali mesmo sairiam os atacantes do aeroporto, de Bruxelas. Aquele, cuja fotografia correu mundo, tornando-o conhecido como o homem do chapéu caminhou à porta de minha casa, na fatídica manhã de 22 de março, enquanto regressava ao centro da cidade.
Por imperativo profissional estive no aeroporto e na estação de metro de Maelbeek. Novamente o sangue. Um enervante "tinóni" da polícia. A cidade bloqueada num caos total. Os telefones aos soluços. Na única comunicação que conseguimos, durante todo o dia, a Joana disse-me que todo o pessoal do hospital em que trabalha estava convocado para doar sangue e ela estava na fila. A que horas regressaríamos a casa, não sabíamos. Menos mal, na creche as educadoras estavam preparadas para ficar enquanto houvesse crianças. A "noite toda", se fosse preciso. A nossa tinha ficado lá antes da explosão no metro. Hoje, evidentemente, só queremos que nada disto se repita.
Quando um atentado acontece na cidade em que vivemos, somos todos sobreviventes. A expressão "la vie continue" ganha um novo sentido. Só aí o percebi. A vida continua, sim, "il faut continuer". Tem de continuar, voltando à normalidade. A uma nova normalidade. Mas, há uma nódoa que fica. Uma sensação, uma raiva. Não volta a ser como se não tivesse acontecido. Mas, não, não é medo o que se sente. Não posso generalizar dizendo que é um sentimento comum a todos.
Mas, a exploração destes sentimentos, evocando o medo e confundindo os temas, com intuitos eleitoralistas é uma coisa completamente sórdida. E, não resolve o problema. Lamentavelmente, assisti a isso durante a campanha para as eleições deste domingo, em França. Não digo que o tema do terror deva ser evitado, mas que o seja num discurso que devolva alguma serenidade. Queremo-lo para nós e para os nossos filhos. Fará algum sentido dizer-se que "temos de nos habituar"? Não, não faz. Mas, sim isto foi dito na campanha. Ou podemos acreditar que odiando o nosso vizinho estaremos mais seguros? Não é esse o caminho.
Sempre imaginei Paris como uma cidade universal, onde as diferentes culturas se juntam e formam a uma identidade própria. E, Paris é isso. Mas, tal como outras cidades francesas, é também o reverso. É o espelho da falta de eficácia, nas políticas para a organização de uma sociedade com as características da França de hoje.
No poema escrito com que se eternizou, escrito em 1913, "La Ronde Autour du Monde", o poeta parisiense, Paul Fort lançou um apelo à fraternidade humana, dizendo que se todos pudéssemos "dar as mãos" e se "não falarmos das diferenças", "Le bonheur serait pour demain". Relendo este poema e sabendo o contexto em que foi escrito, diria que dentro do pragmatismo que é necessário na política, penso que um pouco de inspiração só faria bem ao futuro presidente francês. Esperemos que ela exista entre algum dos candidatos.
O que vier a ser eleito terá pela frente vários desafios à espera de engenho e inspiração. Num prazo mais dilatado e por ventura com mais complexidade para se concretizarem, podia pensar-se na educação ou no emprego. Mas, de forma imediata, o silêncio seria muito mais eficaz, em vez das leituras simplistas sobre terrorismo. E, isso, podem fazê-lo já. Mesmo sem mandato presidencial.