"A pior herança" de um Governo e uma Argentina "em emergência" na tomada de posse de Milei
Novo Presidente argentino elenca como "instituições fundamentais" do país "a propriedade privada, o mercado livre de intervenção estatal, a livre concorrência, a divisão do trabalho e a cooperação social" e avisa: "Não há dinheiro."
Corpo do artigo
O ultraliberal Javier Milei tomou este domingo posse como Presidente da Argentina, numa cerimónia realizada na sede do Congresso em Buenos Aires, e tornou-se assim no décimo líder do país em regime democrático. No discurso de tomada de posse falou da "pior herança" que um Governo já recebeu, garantiu que está acabada a "história de decadência e declínio" do país e pintou a imagem de um país a mãos com várias "emergências".
Entre gritos de "Argentina, Argentina!", Milei e a sua nova vice-presidente, Victoria Villarruel, proclamaram a sua lealdade ao Estado argentino na presença dos seus antecessores, Alberto Fernández e Cristina Kirchner, a quem deixou críticas.
Milei passou em revista o legado deixado pelo Governo do peronista Alberto Fernández (2019-2023) para traçar um duro retrato em que se encontra o país e no qual terá de tomar decisões económicas difíceis e, nesse sentido, comparou o impacto da queda do Muro de Berlim ao resultado das últimas eleições argentinas.
"Tal como a queda do Muro de Berlim, estas eleições marcaram um ponto de viragem na nossa história", afirmou o novo Presidente argentino.
"Nenhum Governo recebeu pior herança do que a que estamos nós a receber. O kirchnerismo, que no início se vangloriava de ter excedentes gémeos, deixa-nos hoje com défices gémeos de 17% do PIB", atirou, a par de uma inflação que cresce a uma taxa anual de 300%, uma atividade económica paralisada, uma taxa de pobreza de 45% e uma taxa de indigência próxima dos 10%.
No primeiro discurso como Presidente argentino, passou em revista a história do país, começando pela declaração da independência e pela Constituição de então, que assegurou que era liberal e fez da Argentina "a primeira potência mundial".
"No princípio do século XX éramos o farol do Ocidente", assegurou num discurso a que assistiram milhares de apoiantes e outros chefes de Estado, como o rei de Espanha ou o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.
O agora líder argentino culpou os responsáveis políticos dos últimos cem anos pelo estado atual da Argentina, argumentando que estes "insistiram em defender um modelo que só gera pobreza, estagnação e miséria", um ciclo que disse terminar a partir de hoje.
"Damos por terminada uma grande e triste história de decadência e declínio e começamos o caminho de reconstrução do nosso país", prometeu, elegendo como "instituições fundamentais a propriedade privada, o mercado livre de intervenção estatal, a livre concorrência, a divisão do trabalho e a cooperação social".
Anunciou que o ajustamento fiscal e o fim da emissão monetária fazem parte do seu plano económico e garantiu que a estagflação "será a gota de água" para "a reconstrução da Argentina".
"Infelizmente, tenho de o repetir: não há dinheiro. A conclusão é que não há alternativa ao ajustamento e não há alternativa ao choque", disse Milei, após tomar posse.
O Presidente admitiu que o plano de choque que irá implementar terá um impacto negativo no nível da atividade, no emprego, nos salários reais e na taxa de pobreza e indigência.
"Haverá estagflação, é verdade, mas não é muito diferente do que aconteceu nos últimos dois anos", afirmou.
Confirmou que irá aplicar um ajustamento fiscal de 5% do PIB, que, prometeu, recairá "quase inteiramente" sobre o Estado e não sobre o setor privado, e também que vai "limpar" o passivo do Banco Central e acabar com a emissão monetária que, insistiu, é a causa da elevada inflação argentina.
Mas disse que a política monetária atua com um desfasamento de 18 a 24 meses, razão pela qual antecipou que a inflação continuará elevada, citando previsões de entidades privadas que preveem taxas mensais entre 20 e 40% entre dezembro deste ano e fevereiro próximo.
Milei falou num cenário fiscal e monetário delicado que, na sua avaliação, coloca a Argentina à beira da hiperinflação, que pode chegar a 15.000% ao ano.
"É nossa prioridade máxima envidar todos os esforços para evitar essa catástrofe, que levaria a pobreza para mais de 90% e a miséria para mais de 50%", insistiu.
Milei alertou também para a "herança" em termos de endividamento: "A bomba em termos de dívida ascende a 100 mil milhões de dólares (cerca de 92,8 mil milhões de euros), que terão de ser adicionados aos cerca de 420 mil milhões de dólares (cerca de 390 mil milhões de euros) de dívida existente", alertou.
A estes juntam-se os vencimentos em 2024 da dívida soberana emitida em pesos, no valor equivalente a cerca de 90 mil milhões de dólares (cerca de 83,5 mil milhões de euros), e os vencimentos com organismos multilaterais, no valor de 25 mil milhões de dólares (cerca de 23,2 mil milhões de euros).
Um país em emergência
Num discurso em que defendeu que "em todas as esferas, para onde quer que se olhe, a situação da Argentina é de emergência" e a da economia "deplorável", Milei insistiu, a partir de uma tribuna instalada ao pé da escadaria do Congresso Nacional, que em termos de segurança, "a Argentina se tornou um banho de sangue", que uma das cidades mais importantes do país - referindo-se a Rosário - foi "raptada" pelo tráfico de droga e pela violência, que os cidadãos foram "abandonados" pela classe política e que apenas 3% dos crimes são condenados.
"Acabou o siga, siga aos delinquentes", afirmou, sendo seguido pelos gritos dos populares: "Polícia, polícia, polícia."
No que se refere às questões sociais, Milei descreveu que "metade da população é pobre, com o tecido social completamente quebrado", pelo que cerca de 20 milhões de argentinos "não podem viver uma vida digna" e seis milhões de crianças vão para a cama com fome, andam descalças na rua ou caem nas drogas.
"Os planos de luta contra a pobreza geram mais pobreza", afirmou, insistindo que "a única forma de sair da pobreza é com mais liberdade".
Milei sublinhou ainda os números preocupantes da educação na Argentina e comparou-os com o facto de o país ter sido o primeiro "a acabar com o analfabetismo no mundo", tendo o povo respondido: "Fizeram de propósito!"
Sobre a saúde, afirmou que o "sistema está completamente colapsado", porque há hospitais "destruídos", médicos que cobram "uma ninharia" e falta de serviços básicos de saúde e que, por essa razão, a Argentina poderia ter tido 30 mil mortos durante a pandemia de Covid-19, em vez de 130 mil.
Milei criticou o "estado atual" de que falam os políticos como fórmula "para justificar o enorme aumento da despesa pública que só os beneficia".
Em termos de infraestruturas, alertou para o facto de apenas 16% das estradas serem asfaltadas e 11% estarem em bom estado, razão pela qual 15.000 argentinos morrem todos os anos em acidentes de viação.
Antes, no seu primeiro ato formal, Milei assinou o livro de honra da Câmara dos Deputados com a mensagem: "Viva la libertad, carajo" (Viva a liberdade, caramba). Milei não se dirigiu à câmara legislativa, tendo a vice-presidente Villaruel agradecido em seu nome.
"É um momento que ficará para sempre nos nossos corações e quero agradecer-vos por este gesto de nos acompanharem de outros países do mundo e das províncias", disse a vice-presidente.
Javier Milei será o Presidente da Argentina para o período 2023-2027, depois de vencer a segunda volta das eleições, realizada em 19 de novembro.