Qual o seu sonho para o Irão? "Liberdade." Jafar Panahi em Lisboa não "Foi Só Um Acidente"

DR
Podendo finalmente sair do Irão, Jafar Panahi está pela primeira vez em digressão. Com o filme que venceu a Palma de Ouro em Cannes 2025, é agora forte concorrente ao Óscar do Melhor Filme Internacional, nomeado por... França
Corpo do artigo
Jafar Panahi, o maior nome do cinema iraniano desde Kiarostami, figura de culto no mundo da sétima arte, esteve muitos anos sem poder sair do Irão. Foi inclusive condenado a não filmar nem trabalhar em cinema dentro do Irão. Filmar, nunca deixou de o fazer, quanto mais não fosse através a câmara instalada no táxi que conduziu, captando as histórias dos passageiros, o que também deu origem a um filme, Táxi, em 2015 ou com Isto Não É Um Filme, alguns anos antes.
Jafar Panahi foi preso por motivos políticos duas vezes, condenado a não filmar durante vinte anos, o que não o impediu de já ter vencido os prémios principais nos maiores festivais de cinema europeus, entre outros prémios internacionais. Fez filmes ilegalmente, de acordo com as leis impostas pelas autoridades iranianas, outros foram banidos antes do lançamento.
Fuma, é afável, mas sem grandes simpatias com quem não conhece. Como era o caso do jornalista Ricardo Alexandre. A entrevista na TSF foi estritamente limitada a 20 minutos, com tradutora de persa para inglês, o que reduz o tempo útil total. Foi cerca de 12 minutos com um realizador que não larga o entrevistador quando não gosta da abordagem de determinada pergunta. Como vão perceber aqui. Não foi uma conversa fácil. Foi Só Um Acidente estreia esta quinta-feira nas salas portuguesas.
Jafar Panahi, obrigado por estar connosco. Foi Só Um Acidente: de que trata este filme, afinal? É, por vezes, engraçado, bizarro, como quando Vahid carrega o torturador na carrinha, mas também é um filme que nos mostra como é difícil perdoar aqueles que cometeram agressões, e violações físicas e psicológicas graves?
O tema do perdão e perdoar alguém é apenas aquilo que se vê à superfície, não faz parte da infraestrutura do filme. O perdão é aquilo com que se consegue acompanhar o filme. O principal é: o que é que vai acontecer no futuro? No futuro este ciclo de violência vai terminar ou vai parar a dado momento? Creio que isso é muito mais importante do que o aspeto do perdão ou da vingança de que toda a gente está a falar.
Quanto às partes engraçadas de que fala, depende. Depende, desde logo, dos contextos culturais onde estamos. Nalgumas partes do mundo e nalgumas culturas, as pessoas não riem, noutras partes, aquilo que você considera engraçado ou surreal é visto de forma mais sombria.
Por exemplo, vi este filme com pessoas americanas e canadianas e eles riram-se imenso com algumas cenas, mas quando vi este filme na Ásia, reparei que eles riam muito menos do que noutras partes do mundo.
Falou no futuro e em como este filme pode ser sobre o futuro. Quer explicar um pouco melhor isso? Porque entende que se pode aferir das ações dos protagonistas, pela forma como expõem o seu sentido de vingança e ódio, como poderá vir a ser o futuro da sociedade?
Quando se fala sobre a vingança, estamos a falar da parte excitante da vingança, quando não se está a pensar nas consequências que da vingança podem advir. Como Vahid fez, baseado nos seus sentimentos mais primários, mas depois não sabia o que fazer. E isso permite-nos pensar sobre as consequências e naquilo que podemos retirar disso enquanto filme. E tudo isso faz com que o espetador esteja muito mais interessado em chegar ao final do filme, em ver o que acontece cena após cena.
Foi para não ser demasiado óbvio que decidiu não recorrer ao flashback, isto é, não mostra cenas a recriar o tempo em que aquelas pessoas foram torturadas. Foi para não parecer demasiado óbvio para o espetador?
O cinema sobre a sociedade tem as suas próprias premissas e estrutura. Tento evitar tudo aquilo que possa ferir a realidade. Os flashbacks normalmente são sobre algo que é criado na tua mente, não são sobre a realidade. Normalmente, porque estamos a fazer filmes relacionados com a sociedade, evitamos os flashbacks porque são feitos com falas e palavras dos atores e isso acabar por ficar construído dessa forma na mente dos espetadores.
Já que faz filmes sobre a realidade, pensa que sentimentos negativos, como vingança, ódio, raiva, estão a crescer em relação ao regime iraniano?
Há três anos houve um movimento no meu país chamado "Mulheres, Vida, Liberdade". As mulheres demonstraram que podem ultrapassar as chamadas linhas vermelhas. Podemos chamar-lhe vingança, podemos chamar-lhe raiva, mas é, acima de tudo, um esforço para recuperar os direitos humanos. É uma tentativa de dizer aos nossos governantes que estas políticas já não funcionam e que as pessoas não as vão seguir.
É, por isso, que alguém no filme diz: "Não lhes cavem as sepulturas porque eles próprios já cavaram"?
Mais uma vez, insisto: isto não é sobre vingança. Não é correto, está errado. Não é o tema de um personagem em particular, nem o tema do inspetor que o torturou, mas sim de alguém que a todos dá ordens. Vou dar-lhe um exemplo: o que é que aconteceu na Europa de Leste? Os governos foram derrubados e viemos a descobrir que cerca de um terço das pessoas continuavam a apoiar os governos que foram derrubados. O que é que o novo poder deveria fazer, matar esses 30% das pessoas? Vingar-se desse 1/3? Não lhe podemos chamar vingança, mas tão pouco podemos dizer que é perdão. Aquelas pessoas simplesmente param a tempo e demonstram que não querem ser como os governantes que as submeteram à tortura.
É possível, com um filme, unir os iranianos, além das divisões políticas que possam existir?
Não é assim tão simples dizer que podemos unir as pessoas. É apenas um filme e cada pessoa pode fazer as interpretações que quiser. Pensar o cinema dessa forma é absolutamente idealista...
O Jafar Panahi está pela primeira vez em digressão com um filme e a viajar. Foi a França para receber a Palma de Ouro em Cannes. No seu discurso de agradecimento, disse que sonha com o dia em que ninguém no Irão determinará o que pode ser dito ou feito... diria que esse dia está prestes a chegar num curto espaço de tempo? Acredita nisso?
Porque não? Agora ou no futuro. Não aconteceu também no seu país?
Com este prémio principal em Cannes, tornou-se o único cineasta da história a ganhar os maiores prémios nos quatro principais festivais internacionais de cinema do mundo: Berlim, Veneza, Locarno e Cannes. Qual é a importância disso para si?
Eu diria que Cannes é o mais importante. Quando um filme tem sucesso, cresce a curiosidade em todo o mundo para o ver. E isso é o melhor que pode acontecer a um realizador, o filme poder ser visto por muita gente.
De onde vem a sua resiliência e coragem?
Do meu trabalho. Adoro o meu trabalho. Por isso tenho de fazer filmes. Claro que há dificuldades nesta profissão, mas eu escolhi o cinema, então tenho de resistir perante as dificuldades.
E teve isso em mente quando foi preso? Dois meses na prisão, depois sete meses... Como foram esses dias encarcerado, nomeadamente na prisão de Evin?
Quando estive na prisão, estava com um grupo de pessoas em que algumas estavam presas por crimes financeiros, mas cerca de trinta éramos presos políticos e tentávamos encontrar assuntos de conversa.
O sistema político iraniano, que se manifesta através do controlo rigoroso das expressões artísticas, como o cinema, está num impasse, sem meios ou conhecimentos, exceto através da repressão, para lidar com uma geração de criadores culturais que se atrevem cada vez mais a expressar a sua liberdade artística e cada vez menos dispostos a aceitar as limitações que lhes impõem?
Há dezassete anos, quando me condenaram a não poder filmar e não poder trabalhar em cinema, tentei encontrar uma forma de trabalhar e de continuarmos a fazer os nossos filmes. Nessa altura, os estudantes apareciam a perguntar-me como é que podíamos trabalhar e eu dizia-lhes que não era possível trabalhar. Pensei melhor e senti que era preciso encontrar uma forma. Com um amigo decidi fazer um filme e chamar-lhe Isto Não é Um Filme (2011). Mais tarde, pensei: se não posso fazer um filme, o que é que posso fazer? Ao menos podia ser motorista. Sendo motorista, posso colocar uma câmara no carro e fazer um filme, contando as histórias dos meus passageiros. Depois disso, vários filmes de estudantes têm sido feitos dessa forma no Irão.
Qual é o seu sonho para o Irão?
Liberdade.
Jafar Panahi esteve esta semana Cinema Ideal, em Lisboa, uma iniciativa desta sala no Chiado e da Midas Filmes, que organizou duas sessões de ante-estreia com perguntas e respostas sobre o filme Foi Só Um Acidente e organizou um pequeno ciclo sobre o realizador com os filmes 3 Faces e Táxi.