Sara Roy: "Tive a mesma sensação de pavor ao ler o plano de Trump que tive quando li os Acordos de Oslo"

Reprodução/Universidade de Harvard
Viveu em Gaza durante a primeira Intifada e é investigadora da Universidade de Harvard. Tem mais de cem publicações sobre a Palestina. Veio a Lisboa, a convite do novo Observatório para os Estudos da Palestina no ISCTE, e foi entrevistada na TSF
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Como vê a situação atual após o plano de Trump - que não foi assinado por escrito no papel, nem por Israel, nem pelo Hamas - mas no qual ambos parecem estar relativamente comprometidos?
O plano de Trump não tem viabilidade. Contém as sementes da sua própria destruição nesse sentido, porque o plano não aborda o que eu e muitos outros consideramos ser o problema fundamental, que é a continuação da ocupação israelita dos palestinianos em Gaza e na Cisjordânia. O plano não fala sobre a soberania palestiniana, exceto por uma declaração muito vaga e tímida sobre trabalhar em prol da criação de um Estado palestiniano, o que é meramente formal. Não é substantivo nem significativo. Portanto, tem algo a ver com a autodeterminação palestiniana, com a soberania palestiniana. Não aborda a divisão, a separação de Gaza e da Cisjordânia e desses territórios de Jerusalém. Basicamente, fala sobre impor um órgão administrativo estrangeiro, uma autoridade transitória internacional sobre os palestinianos para 'governar' a Faixa de Gaza até que a Autoridade Palestiniana (AP) seja reformada, seja lá o que isso signifique, e quem defina o que é reforma. Embora tenham afirmado que a reforma da Autoridade Palestina é medida de acordo com certos atos que a Autoridade Palestina tem de realizar. Mas, basicamente, permite a continuação do controlo militar israelita em Gaza. E dá a Israel o direito - que Netanyahu inscreveu no plano depois de os Estados de maioria árabe e muçulmana terem concordo com um rascunho original, tendo inscrito certas exigências com as quais os Estados árabes não concordaram, mas então Trump anunciou o plano - de determinar quando, como e em que condições se retirará, não do território inteiro, mas em retiradas faseadas.
E até mesmo quais as nacionalidades podem fazer parte da força internacional de manutenção da paz?
A ISF, como estão a falar sobre ela, não se destina a ser uma força de proteção, mas uma força de imposição. E, nesse sentido, será percebida e provavelmente se comportará como mais uma camada de ocupação sobre os palestinianos, porque está lá ostensivamente para proteger este conselho de paz que Trump vai liderar, esta autoridade internacional de transição. Está lá para preservar este órgão colonialista que controlará Gaza. Agora, mais uma vez, o que é declarado e o que pode realmente acontecer e o que realmente acontecerá são duas coisas muito diferentes. No meu discurso na apresentação do Observatório de Estudos da Palestina falei sobre algumas das condições muito desafiadoras e sem precedentes que os planeadores enfrentarão em termos de reconstrução e reabilitação de Gaza. É preciso entender o plano de Trump no contexto da ocupação israelita, não fora dele, mas como parte dele. O plano, penso que num dos seus pontos, diz que Israel não ocupará nem anexará Gaza. Em primeiro lugar, Israel tem sido a potência ocupante em Gaza há quase 60 anos e continua a sê-lo. E, em segundo lugar, a última coisa que Israel gostaria de fazer neste momento é anexar Gaza. Gaza sempre foi um problema para Israel. Israel nunca soube realmente o que fazer com Gaza, porque Gaza tem sido, historicamente, a fonte da resistência nacionalista à ocupação. E Israel tentou, ao longo de muitas décadas, reprimir essa resistência de diferentes formas.
Quando ocorreu a atrocidade de 7 de outubro, que foi claramente uma atrocidade e um crime de guerra, isso deu a Israel, finalmente, a desculpa ou a razão, do ponto de vista deles, para aniquilar Gaza, algo que acredito que eles sempre quiseram fazer. Eles sempre quiseram enfraquecer a capacidade dos palestinianos em Gaza de agir coletivamente como uma força política unificada. Os Acordos de Oslo foram concebidos para separar a Cisjordânia e Gaza, para isolar Gaza, para fragmentar a política palestiniana, para separar um território do outro, para eliminar a base geográfica da economia palestiniana. E a principal força motriz da política israelita em relação aos palestinianos desde o início da ocupação em 1967 deve ser impedir o estabelecimento ou o surgimento de um Estado palestiniano. Quando eu era uma jovem estudante de doutoramento, quando comecei a fazer investigação nessa área em meados dos anos 80, passei um tempo considerável a entrevistar funcionários israelitas em diferentes ministérios. E escrevi sobre isso em alguns dos meus trabalhos. Alguns deles foram muito diretos comigo. Foram muito explícitos. Outros foram menos diretos. Mas a mensagem era sempre a mesma: naqueles primeiros dias, iríamos prestar serviços aos palestinianos, mas não permitiríamos que a sua economia se desenvolvesse ao ponto de poder competir com a nossa economia. Mas essa não era a razão principal. Alguns desses funcionários disseram-me isso de forma muito direta e franca; 'Não permitiremos o desenvolvimento de uma infraestrutura económica em Gaza ou na Cisjordânia, porque essa infraestrutura poderia formar a base de um Estado. E nunca permitiremos que um Estado palestiniano surja na Cisjordânia ou em Gaza. Essa era a sua principal dinâmica informativa. E têm sido muito bem-sucedidos nesse aspeto.'
Com tudo isso e a distância que temos dos Acordos de Oslo, acha que o conteúdo desses acordos e a forma como foram redigidos foram uma espécie de armadilha para Arafat?
Absolutamente. Com certeza. Quando Oslo foi anunciado, ou quando nós, que realmente lemos os acordos, pudemos realmente lê-los, ficou muito claro para nós, mais uma vez, que tínhamos uma noção da história desse conflito, que compreendíamos a política israelita em relação aos palestinianos ao longo do tempo, que os Acordos de Oslo foram claramente concebidos não para acabar com a ocupação, mas para continuá-la, embora de uma forma diferente. Mas as pessoas, compreensivelmente, em Israel e entre os palestinianos, inicialmente estavam muito esperançosas de que esses acordos levariam, eventualmente, ao fim da ocupação. E o surgimento de um Estado, algo que nenhum dos acordos previa. Mas se alguém tivesse noção da história política, do contexto da política de ocupação, das principais dinâmicas que informam a política israelita em relação aos palestinianos, ficaria claro que os Acordos de Oslo não foram concebidos para acabar com a ocupação, mas para facilitar o controlo e a gestão da ocupação por parte de Israel. E, nesse sentido, eles foram muito bem-sucedidos. Oslo foi talvez a medida política ou o conjunto de acordos mais prejudicial para os palestinianos nos últimos 50, 60 anos. Foi um desastre total.
E, como disse na minha palestra aqui em Lisboa, tive a mesma sensação de pavor, preocupação e medo ao ler o plano de Trump que tive quando li os Acordos de Oslo pela primeira vez, há mais de 30 anos.
Como descreveria a luta entre as diferentes fações em Gaza ou entre o Hamas e outros grupos palestinianos?
Bem, mais uma vez, a resposta a essa pergunta é longa.
Mesmo que seja uma consequência da própria ocupação...
O papel do Hamas em Gaza e na política palestiniana tem sido amplamente escrito, não só por mim, mas por muitos outros. E é muito mais complexo do que normalmente é apresentado. Mas se estamos a olhar... Então, estou a responder à sua pergunta sem fornecer um contexto histórico, que é realmente importante para entender esse movimento e contextualizá-lo. Mas o que está a acontecer agora em Gaza com o Hamas é que eles estão a tentar... Na verdade, eles estão a perseguir essas pessoas... Eles estão a perseguir as pessoas que consideram colaboradoras das autoridades israelitas. Estão a perseguir os grupos, os gangues, as tribos que Israel financiou e apoiou contra o Hamas. Estão a tentar reafirmar algum controlo sobre a vida em Gaza. E eles fazem essas execuções públicas, como vimos. E é muito fácil simplesmente descartar isso como um grupo extremista perseguindo o seu próprio povo. Não estou a dizer que defendo ou apoio isso, mas estou a dizer que é preciso entender isso no contexto do que está a acontecer e no contexto da ocupação contínua de Israel, dos ataques contínuos, das violações contínuas do cessar-fogo. Sabe, nas duas ou três semanas desde que o cessar-fogo foi anunciado, 240 palestinianos foram mortos, creio eu. Os ataques continuaram. A ajuda não está a chegar na mesma medida que foi prometida. E assim por diante. E, novamente, é um quadro muito complicado. Mas acho que o Hamas está a tentar fazer o que fez quando tomou o controlo de Gaza em 2007, ou seja, tentar reafirmar o seu controlo, claramente, e o seu poder sobre o que está a acontecer ou sobre certas áreas de Gaza e, nesse processo, tentar lidar com os indivíduos e grupos que consideram colaboracionistas com as autoridades, com as autoridades israelitas. E não há dúvida: as autoridades israelitas têm sido muito abertas sobre isso, que financiaram grupos como o al-Shabaab, financiaram alguns desses grupos como uma contramedida, uma força contrária ao Hamas, que foi o que fizeram com o Hamas nos primeiros tempos. Eles financiaram e apoiaram o Hamas quando comecei a trabalhar em Gaza, ou um pouco mais tarde, contra a OLP e a Fatah. Portanto, é uma tática antiga que falha, não funciona.
No seu livro de 2014, Hamas and Civil Society in Gaza, fala e desenvolve a sua investigação sobre o papel civil do Hamas...
Bem, retifico, do setor islâmico, do setor islamista. De facto, uma das questões com que me debati foi até que ponto o Hamas controla realmente todas estas organizações sociais islâmicas. E, naquela época, algumas delas eram controladas diretamente, outras não. Mas, por fazerem parte da comunidade islâmica, elas submetiam-se ao Hamas, ou o Hamas reivindicava-as como suas. Mas esses eram grupos que, fossem eles diretamente afiliados ou não ao Hamas, desempenhavam um papel muito importante, um papel social na sociedade civil.
Isso pode permanecer assim hoje, depois do que aconteceu no dia 7 de outubro? Essa ideia aguenta-se depois dos atentados do Hamas naquele dia?
Houve tanta destruição. Nem consigo responder a essa pergunta. Não sei se as ONG locais são islâmicas ou seculares ou relacionadas com a Fatah ou o Hamas ou qualquer outro grupo. Houve tanta destruição. De acordo com a ONU, 84% da Faixa de Gaza foi danificada ou destruída, 92% da cidade de Gaza. Portanto, neste momento, não se pode sequer falar de qualquer tipo de infraestrutura institucional viável. Isso não quer dizer que não possa ser reconstruída. E, se os palestinianos recebessem os recursos para reconstruir a sua própria sociedade, eles poderiam fazê-lo. Mas o que está a acontecer é que há uma imposição de outra autoridade estrangeira sobre Gaza, que acabará por fracassar. Posso garantir com toda a certeza que irá falhar.
Se eles pudessem fazê-lo, se pudessem restaurar a sua sociedade, ou se alguma vez forem capazes de o fazer, acha que o fariam ou farão sem o Hamas? Ou o Hamas continuará a desempenhar um papel no futuro palestiniano?
Quando as pessoas me fazem essa pergunta ou uma pergunta semelhante, eu digo que não cabe a nós determinar quem governará os palestinianos. Cabe aos palestinianos determinar por si próprios quem os governará, como serão governados e que tipo de Governo desejam ter. Agora, se isso inclui o Hamas, cabe ao povo palestiniano decidir. Mas posso dizer-lhe, com base na minha longa experiência lá, que se os palestinianos tivessem realmente o direito e o poder de decidir por si próprios quem os governaria, eles deixariam claro para quem quer que fosse a autoridade governante que têm certas condições e aceitariam certas condições e rejeitariam outras. E o próprio Hamas há muito tempo diz que estaria disposto a realizar um referendo e que aceitaria qualquer decisão dos palestinianos. Mas isso não significa que eles se retirariam completamente de Gaza. Eles gostariam de ter algum tipo de papel. Mas se os palestinianos elegessem um Governo diferente, eles dizem, e já dizem há bastante tempo, que estariam dispostos a se afastar e a ajudar a estabelecer algum tipo de Governo tecnocrático.
Mas pensa que aceitariam serem colocados de lado se houvesse eleições?
Acho que se fossem viáveis, acho que se fossem eleições reais, verdadeiramente viáveis, que não fossem manipuladas ou dirigidas ou controladas por uma autoridade externa, seja Israel, os EUA, a UE ou qualquer outra entidade, acredito que sim. credito que se o povo votasse contra o Hamas, eles achariam muito difícil não aceitar isso.
Mas o meu ponto não é se o povo votaria. O meu ponto é: o Hamas aceitaria não participar nas eleições?
Não posso falar pelo Hamas, claro. Mas se o Hamas fizesse parte do mapa eleitoral, se o Hamas quisesse concorrer como partido em futuras eleições que fossem verdadeiramente independentes e democráticas e fosse derrotado, penso que eles aceitariam, eu diria; não posso prever, é claro, mas diria que eles aceitariam isso, não necessariamente porque ficariam felizes com esse resultado, mas porque o povo palestiniano, o eleitorado como um grupo, insistiria nisso. Mas aos palestinianos nunca lhes deram esse direito. Nunca.
A Sara pesquisa, escreve e, pelo que entendi, também defende uma Palestina livre e fim da ocupação?
Com certeza.
Como é defender uma Palestina livre hoje nos Estados Unidos, em Harvard, uma das universidades alvo de Trump?
Obviamente, o ambiente nos Estados Unidos está tenso, mas está menos tenso e a ficar cada vez menos tenso. Eu, na minha longa carreira em Harvard e no mundo académico em geral, nos EUA, nunca fui silenciada. Nunca fui ou me senti silenciada. E, sabe, antes de 7 de outubro, o ambiente em Harvard - e só posso falar por Harvard porque é onde estou - era muito aberto, extremamente aberto. E, como sabe, convidámos e encorajámos uma variedade de pontos de vista sobre esta questão, sobre este conflito e convidámos pessoas de todos os lados do espetro político. Depois de 7 de outubro, é claro, tudo mudou imediatamente. Da noite para o dia. Não apenas no nosso campus, mas em muitos campus. E foi muito difícil durante algum tempo. Houve e há tensões. Houve uma tentativa de silenciar certas vozes, mas isso também está a mudar agora. Há uma mudança muito clara na sociedade americana, tanto no... sabe, é menos óbvio no nível político, mas está a ocorrer, como vimos nas eleições desta semana. Mesmo no Congresso, e mencionei isso aqui em Lisboa durante a sessão de perguntas e respostas, embora não ouçamos falar sobre isso, há membros democratas do Congresso dos EUA que estão a manifestar-se de uma forma que seria impossível há cinco anos, talvez até há dois anos. E o número deles ainda é pequeno, não quero exagerar, mas, relativamente falando, é maior do que nunca.
E, também, ao nível da sociedade civil, houve protestos e mobilizações organizados em diferentes locais, nas galerias de artes, nas igrejas, nas sinagogas, nas instituições educativas, nos museus. Há um impulso que está a crescer e há uma mudança em direção à responsabilização e à justiça. E é trágico que tenha sido necessário um genocídio para catalisar este tipo de ação, mas é isso que está a acontecer. E é importante que as pessoas - sejam elas ativistas, cidadãos preocupados ou alguém que simplesmente se preocupa com os direitos humanos - se informem para que a posição que defendem ou a causa que apoiam seja informada, cuidadosamente pensada, baseada em factos e fundamentada em algum sentido de história. E, como disse o meu amigo e colega, o professor Norman Finkelstein, que talvez conheçam, os factos são coisas teimosas. É muito difícil mudar os factos. E ele fez uma excelente palestra recentemente na Universidade de Massachusetts sobre isso. E é preciso sempre atermo-nos aos factos, à verdade e ser preciso e rigoroso. E ao longo das minhas quatro décadas a fazer este trabalho, sempre foi um desafio apresentar um contraponto aos paradigmas dominantes que nos foram impostos pelas pessoas no poder. E muitos de nós, sendo Norman um dos mais proeminentes e expressivos, temos lutado contra essa estrutura de resistência há décadas. E temos feito isso de forma cuidadosa, ponderada e baseada em factos. Norman é um investigador forense - o seu domínio dos factos e da história é realmente impressionante. E muitos de nós baseamos a nossa posição na experiência direta e na pesquisa no terreno. Mas tudo é baseado em factos e expresso em análises. Mas análises cuidadosas e bem pensadas.
É importante não deixar que as emoções tomem conta. É importante desafiar esses paradigmas dominantes, muitos dos quais, na minha opinião, são mitológicos e falsos. E fazê-lo de forma ponderada e rigorosa. Porque, como diz Finkelstein, os factos são coisas teimosas, difíceis de mudar. E foi isso que tentei enfatizar durante a sessão de perguntas e respostas aqui em Lisboa com alguns dos alunos. E, com alguns deles, conversei em particular. Não basta dizer que isto é horrível. Sim, é horrível. E devemos resistir. Devemos lutar contra isso. Mas como avançamos? E qual é a melhor maneira de avançar? A melhor maneira de defender um resultado justo para que todas as pessoas possam viver com um mínimo de paz no Médio Oriente. Israelitas, palestinianos, libaneses, sírios, quem quer que seja.