Uma Turquia sociologicamente de direita conservadora e uma dinâmica eleitoral favorável a Erdogan. A segunda volta das eleições presidenciais turcas na conversa com o investigador José Pedro Teixeira Fernandes.
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A oposição turca procura os votos das donas de casa para derrotar Erdogan, relata a reportagem da agência France-Presse. Uma mulher grita no bazar Besiktas, bairro de Istambul: "Vamos livrar nos de Erdogan! Defendam os vossos direitos na segunda volta", grita Roda Azoia, uma mulher que caminha entre áreas de vendas de azeitonas e morangos. "O Rais (Chefe, o nome pelo qual é conhecido Erdogan) vai ganhar", responde outra mulher simpatizante do presidente turco no poder há duas décadas. Erdogan não conseguiu a reeleição na primeira volta, há 15 dias. O diálogo duro registado no bazar é parte da batalha para convencer os 64 milhões de eleitores turcos na votação mais relevante do país nas últimas décadas.
A oposição procura votos em todos os cantos para conseguir a vitória do político social-democrata e laico Kemal Kiliçdaroglu. Um dos segmentos mais visados nesta campanha é precisamente o das donas de casa, uma base de apoio de Erdogan. O atual chefe de estado é herói para os conservadores turcos, ao ter acabado com várias restrições religiosas, incluindo o uso de véu em prédios públicos e nas universidades. Num país oficialmente laico, o apoio ao presidente entre as donas de casa alcançou 60% nas eleições de 2018, de acordo com um estudo do Instituto Ipsos, quase 8% acima da votação que o presidente teve a nível nacional. Mas a desvalorização constante da lira turca e a inflação elevada, atualmente nos 43%, afetaram a vida quotidiana das famílias das mulheres, naquela que é a pior crise económica da Turquia desde os anos 90 do século passado. Recep Tayyip Erdogan obteve 49,5% dos votos na primeira volta, contra 44,9 do rival Kemal KIliçdarogu. Quem é favorito este domingo? Pergunta para José Pedro Teixeira Fernandes, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais.
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"Tudo indica, pelos dados que vamos tendo nesta altura, que é Erdogan. A dinâmica eleitoral instalada, depois do resultado das eleições da primeira volta, parece ter acentuado esse favoritismo que já se antecipava de alguma forma. Mas o facto, obviamente, mais marcante aqui é o terceiro candidato que disputou também as eleições na primeira volta ter feito abertamente um apelo de voto em Erdogan. Ele representa um pouco mais de 5% dos votos. Portanto, se esse eleitorado maioritariamente passar para Erdogan a vitória, à partida, será garantida. As sondagens também sugerem isso. É verdade que as sondagens são falíveis. Nós vimos isso bem na primeira volta, mas realmente todas aquelas que eu conheço até agora sugerem a vitória de Erdogan e sugerem também uma tendência que é essa vitória ser mais expressiva."
Mas não são só as sondagens e o apoio de Sinan Ogan explicam a dinâmica favorável de Erdogan. Há, no entender do investigador portuense, razões mais profundas, algumas que "devem preocupar mesmo muito a oposição e outras que têm mais a ver com o Estado autoritário que também se instalou na Turquia com Erdogan. Temos aqui entre nós, nos media ocidentais, falado também muito, e que infelizmente tem todo o fundamento, do facto de estas eleições serem disputadas também com muitas restrições para a oposição. Porque Erdogan, e sobretudo a partir daquele golpe de Estado falhado em 2016, embora a questão já fosse anterior, conseguiu um domínio enorme de todo o aparelho do Estado, desde o sistema educativo até ao aparelho judicial, até aos militares, da administração pública em geral. Portanto, tudo de alguma forma vai ter ao seu partido os seus próximos. Isto num país onde uma parte importante da população depende provavelmente do Estado ou do dinheiro do Estado, até para fazer negócios. A família ou os próximos de Erdogan estão em muitas das empresas que têm sido mais faladas na Turquia, por exemplo, até na parte da indústria militar. Esta rede é uma rede muito poderosa e extraordinariamente difícil para oposição contornar".
A oposição, para o académico entrevistado no programa O Estado do Sítio na TSF, "tem um segundo problema que é - esse já não tem a ver com a lógica autoritária do Estado, nem com manobras de subversão de mecanismos democráticos e liberais do partido de Erdogan e do seu círculo dirigente - ou tem a ver com as próprias características sociológicas da Turquia. E eu penso que este segundo aspeto é talvez, o mais preocupante no longo prazo. Porque se o primeiro nós podemos dizer que com outro tipo de partido e com outro tipo de presidente da República na Turquia isto não seria assim, mas o segundo mostra que há um eleitorado na Turquia largamente de centro direita, até diria de direita mesmo, e nalguns casos, de extrema direita nacionalista muito marcada, embora alguma secular e outra religiosa. Ou seja, sociologicamente, o terreno na Turquia é muito difícil para uma oposição de esquerda quando vai a votos".
O único partido que efetivamente cabe claramente nesse perfil é o CHP, o partido de Kiliçdaroglu, mas é "um partido que quando vai a votos, normalmente não passa dos 30%, normalmente nos 20 e tal, o que grosso modo nos dá uma ideia que o secularismo mais liberal, mais centro esquerda Turquia - e, mesmo assim, também ele tem a sua componente nacionalista - não representa mais um terço do eleitorado. O resto são partidos de centro direita, alguns até na coligação eram ex-governantes do AKP. Portanto, há mais rivalidades pessoais com Erdogan do que propriamente uma visão ideológica e política muito diferente".
Depois há a importância da questão dos curdos que, para José Pedro Teixeira Fernandes, "mostram uma coisa interessante e complexa. Na Turquia, os curdos, para a oposição ganhar, seriam sempre chave. Só que os curdos, se por um lado dão votos à oposição, por outro lado, dividem a oposição e apelam ao sentimento nacionalista turco, que é transversal. E isto prejudica sistematicamente os partidos que querem tirar Erdogan do poder".
Para o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, um dos problemas nucleares da Turquia e da sociologia política do país, é não conseguir integrar as populações curdas: "Aceitar os curdos como uma componente política normal da Turquia, com autonomia, com a proteção das minorias como nós entendemos aqui em contexto europeu e da União Europeia. Porque aí poderíamos ter uma aliança mais ou menos natural entre estes partidos de centro esquerda e as populações curdas, porque esses partidos curdos têm este perfil mais secular e penso que mais liberal. Agora, há uma coisa que os coloca em rota de colisão: é o nacionalismo, num país com uma cultura nacionalista tão profundamente impregnada."
O académico e autor de "Turquia, metamorfoses de identidade" (2005) recorda que o maior partido da oposição, o CHP, "considera-se o partido na linha direta de Ataturk, mas Ataturk deixou um cunho marcadamente nacionalista. Foi um secularizado e modernizador, indiscutivelmente, mas também não foi um democrata. Portanto, aqui estão as linhas contraditórias na própria dinâmica política da Turquia, que funcionam também contra a oposição. E nós estamos a ver isto ocorrer em circunstâncias que, em teoria, seriam talvez das mais favoráveis que alguma vez a oposição conseguirá ter. Pela crise económica grave, pela inflação, pela desvalorização da lira, pelo sismo e por todo o desgaste da corrupção".
É evidente que também há explicações relacionadas com os abusos e o controlo da máquina do poder por parte de Erdogan, nomeadamente "usar os dinheiros públicos para aumentos salariais feitos de última hora e provavelmente a população recear perder os apoios do Governo e receando que o que vêm condenando no poder, depois pudesse ainda ficar pior. Mas também não podemos explicar tudo nisso desta forma na Turquia. Nós, no Ocidente, temos que perceber que há um problema na Turquia. Não é apenas Erdogan ou o AKP autoritário, mas também a oposição secular. Há um problema muito mais profundo, onde há uma oposição que também não é assim tão democrática e liberal como às vezes nós dizemos aqui. Basta ouvir até, por exemplo, as declarações de Kiliçdaroglu nesta última semana".
Sobre os curdos e sobre a imigração? "Exatamente. Declarações completamente radicais a dizer que iria eventualmente denunciar o acordo com a União Europeia se a União Europeia não pagasse para repatriar os refugiados sírios, dizendo que iria endurecer também a política face aos curdos e, em particular face ao PKK. Ora bom, eu só interpreto isto de uma forma: ele vê que o único sítio onde pode ir buscar votos, é com este tipo de discurso. Mas isto mostra onde está a Turquia sociologicamente, nesta altura, e como uma esquerda mais liberal, mesmo que convicta, não tem grande margem de manobra para chegar ao poder com outro tipo de discurso que seria genuinamente o de uma esquerda democrática e liberal".
Erdogan insiste em chamar terrorista ao rival, alegando exatamente o apoio que não tem recebido do partido curdo HDP, que o regime de Ancara tenta associar aos grupos armados classificados como promotores de atos terroristas como o PKK, Partido dos Trabalhadores do Curdistão. Mas Kiliçdaroglu também disse exatamente o contrário, acusando o chefe de Estado de, no passado, ter negociado com os chamados terroristas curdos. Portanto, ambos estão a usar a retórica anti-curda nesta nesta fase decisiva da decisão presidencial: "Sim. Na realidade, o assunto curdo é extraordinariamente divisivo na Turquia e isso mostra-se até pela estratégia destes dois partidos que, ironicamente, se replicam. Elas são muito parecidas. Porque, na realidade, se nós lembrarmos o que era um governo na Turquia antes de Erdogan chegar ao poder há 20 anos, onde estavam os partidos da oposição secular, eles não tinham de forma nenhuma uma atitude favorável aos curdos. Pelo contrário, tinham uma atitude até bastante belicosa."
Quando Erdogan chegou ao poder, naqueles primeiros tempos "em que deu a ideia que queria até fazer umas reformas como a União Europeia achava que deviam ser feitas na Turquia, aquela aproximação significou algumas concessões aos curdos." Há uma nuance, considera Teixeira Fernandes, que à primeira vista, escapa-nos, mas que "pode ser atrativa para parte da população curda. Se nós colocarmos o eleitorado curdo face ao eleitorado turco, turco, etnicamente turco, quais são as pontes que se podem estabelecer? Uma ponte na base secular e europeia é integrá-los de uma forma secular, de uma forma que lhes garanta os seus direitos como uma minoria, os seus direitos culturais, linguísticos, religiosos, políticos, etc. A outra é uma forma mais tradicional islâmica, que é apelar ao facto de os curdos serem também muçulmanos sunitas como os turcos". Aí, no aspeto religioso, estão fundamentalmente ambos na mesma lógica tradicional: "O que os divide é o lado étnico. Ora, o partido de Erdogan, com o seu lado mais conservador religioso, consegue chegar a algumas populações curdas com esse discurso, onde o caráter étnico os divide, o caráter religioso os aproxima."
Mas ambos os partidos, AKP de Erdogan e CHP de Kiliçdaroglu, no fundo, "mostram um discurso que, quando lhes é conveniente, faz algumas concessões, aqui e ali, aos curdos. Mas, fundamentalmente, também ambos têm uma atitude hostil" face a esse segmento da população do país. Na realidade, nenhum deles tem mostrado até agora qualquer vontade de grande compromisso e de resolver o problema de uma forma flexível. "E ambos trocam acusações de estarem a fazer o jogo dos curdos quando isto é conveniente, que é o que estamos a ver nesta altura. Ou seja, dá votos na Turquia quem se mostra mais firme, mais duro e tem o discurso de que vai ainda tratar mais do terrorismo e aqueles exageros de que todos os curdos são terroristas e aquele tipo de coisas, mas isso parece ser o discurso que poderá fazer ainda desequilibrar algum eleitorado para um lado ou para outro, o que é extraordinariamente preocupante. E mostra também o grau de discussões políticas na Turquia, que não tem nada a ver com uma Turquia democrática e liberal."
Ao agradecer o apoio do candidato que ficou em terceiro lugar, Erdogan afirmou que Sinan Ogan "conhece muito bem a nossa posição clara na luta contra o terrorismo e pela sobrevivência da pátria, especialmente no que diz respeito às relações com o mundo turco", enfatizou, sublinhando que "esta união de forças vai beneficiar a nação e o país". Revelou também que durante a reunião com Ogan foi discutido o processo de repatriamento dos refugiados sírios e estimou em 450.000 o número de sírios que regressaram a casa nos últimos meses. Disse que estão a trabalhar para garantir um regresso seguro. O presidente turco acusou ainda os meios de comunicação ocidentais de tentarem influenciar os resultados eleitorais e defendeu que na Turquia, "a maioria dos avanços democráticos foi alcançada a lutar contra as manchetes".
O que é que a reeleição de Erdogan pode significar em termos de política externa? Uma continuidade ou um reforço daquilo que já tem sido um certo grau de afastamento em relação ao Ocidente? Para o investigador do IPRI, "Erdogan provavelmente vai continuar esta estratégia onde se percebe que ele tem tido sucesso nesta navegação e neste jogo duplo que faz entre ter um pé nas instituições ocidentais, de onde, no limite, nunca também quer desligar-se, mas jogando noutros tabuleiros. Na aproximação com a Rússia, com a China, na Organização de Cooperação de Xangai, nos BRIC, por exemplo, em terrenos que estão sempre do outro lado, pelo menos de alguma rivalidade ou competição, pelo menos económica, comercial, em certos casos mais de política ou essas coisas todas ao mesmo tempo".
Erdogan, acredita Teixeira Fernandes, tem todo o estímulo para continuar esta estratégia. "Porque se nós olharmos para o legado dele nos últimos 20 anos, foi bem sucedido nisto. Temos que reconhecer que isto desagrada ao Ocidente, não foi bom para a União Europeia, criou problemas também à NATO, mas na realidade ele conseguiu reforçar a sua posição a nível internacional, passar a ideia de que a Turquia é cada vez mais uma potência regional incontornável e até podendo olhar um pouco mais para fora da área regional mais óbvia", por exemplo, com a aposta nas indústrias de defesa. Com a guerra na Ucrânia, "vimos o caso dos drones que forneceu à Ucrânia que mostram os avanços do equipamento militar e indústria militar da Turquia. Isso vai continuar e provavelmente todas as tendências, no mínimo, vão estar em continuidade. Eu diria que isto também vai depender muito das circunstâncias internacionais que se gerarem. Há aqui, obviamente, muitas incógnitas. Desde logo perceber como é que vai ficar a guerra na Ucrânia e desde logo também perceber como é que evoluirá esta rivalidade entre os Estados Unidos e a China".
A Turquia, naturalmente, irá ser um dos estados observadores mais atentos disto e procurar posicionar-se o melhor possível, antecipando o investigador a "se não a intensificação, pelo menos a continuidade dos problemas no âmbito da NATO, na linha daqueles que já vimos com a UE. A Turquia vai continuar a fazer este jogo de que não vai formalmente sair do processo de negociações, porque lhe interessa ter um pé sempre dentro para ver, eventualmente uma possibilidade de voltar, teoricamente, a relançar. Aliás, se eventualmente a União Europeia avançar mesmo com as promessas que tem feito à Ucrânia e elas avançarem de uma forma clara de integração da Ucrânia, a minha intuição é que a Turquia vai aparecer aí, vai criar aí um problema a União Europeia. Porque na realidade, sabendo que no limite não quer entrar, mas vai sempre jogar, dizer que é um país com o estatuto de candidato oficial, que é um país mais antigo, vai jogar com aqueles sentimentos de culpa, provavelmente do ocidente em relação ao passado colonial e às questões com os muçulmanos".
Recep Tayyp Erdogan tem mostrado ser "extremamente estável a jogar nestas situações e ter um sentido de oportunidade estratégica. Frio, calculista, de jogo duplo, mas eficaz. Aliás, basta vermos, por exemplo, o que ele fez aqui com a Suécia. E vamos ver também como fica a questão da adesão da Suécia. Portanto, eu antevejo vários problemas se não a intensificarem-se, pelo menos em continuidade". Para Teixeira Fernandes, "todas as oportunidades que Erdogan vir que se geram no ambiente internacional para maximizar o seu poder, vai usá-las contra a UE e a NATO, eventualmente, se isso lhes interessar".