Coreia do Norte. "Manobras" do país que diz não ter casos de Covid-19 mas quer criar a vacina
Com uma fronteira de 1400 quilómetros com a China, a Coreia do Norte continua a levantar dúvidas sobre a contenção da pandemia. A quimera de um país sem casos que está na corrida pela vacina não convence Luís Tomé, investigador da Universidade Autónoma e especialista em relações internacionais.
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Do medo por antecipação, ao orgulho nacional de não reportar qualquer contágio de Covid-19, até à retoma do clima inicial de pânico suscitado por um único caso de suspeita, a Coreia do Norte mantém-se uma muralha de dúvidas junto da comunidade internacional. Com uma fronteira de 1400 quilómetros com a China, país onde surgiu o primeiro surto de SARS-CoV-2, o país asiático mantém a fabulação de um Estado tão firme nas medidas de contenção que só agora é alertado para a possibilidade da primeira suspeita, de um caso importado do eterno rival a Sul.
Para Luís Tomé, diretor do departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma, a quimera de um território vizinho da China onde o vírus não chegou é uma quimera, aliás, "uma manobra propagandística do regime de Kim Jong-un".
"É muito suspeito o caso que eles reportam como possível contágio de Covid-19. Ninguém acredita que a Coreia do Norte não tenha infetados, até porque é um país que faz fronteira terrestre direta com a República Popular da China - e estamos a falar de 1400 quilómetros, em que é possível passar de um lado para o outro, sobretudo no inverno, quando os rios ficam gelados..." Até "sobre os dados da China há dúvidas, e por isso mesmo está a decorrer uma investigação independente", completa.
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Braço de ferro com o Sul
O investigador também não vê acaso no facto de o caso suspeito ser importado da Coreia do Sul, "por via de um indivíduo que ilegalmente fugiu [do Estado] do Sul e atravessou a fronteira na zona desmilitarizada", e que culminou com um "estado de emergência máxima" e no confinamento aplicado de imediato à cidade de Kaesong. "A Coreia do Norte quer dar ênfase a essa situação. É tão raro haver desertores da Coreia do Sul para a Coreia do Norte que o regime quer dar visibilidade a isso, embora algumas notícias na Coreia do Sul digam que é muito provável que o indivíduo tenha fugido porque era suspeito e estava a ser acusado de raptos na Coreia do Sul."
O clima de tensões constantes é já uma realidade de décadas, com provocações a surgirem em especial por parte do país regido por Kim-Jong Un. Há duas semanas, o centro de ligações intercoreanas esteve no centro da disputa, acabando os escritórios por explodir, e, "nos últimos dias, Kim Jong-un tem-se esforçado por aparecer e, a 27 de julho, celebrou-se o aniversário do armistício que pôs fim à guerra da Coreia, pelo que o regime tem estado a exibir as fotografias bastante pitorescas de Kim Jong-un rodeado de pistolas", assinala Luís Tomé.
O investigador lembra que "temos assistido, nos últimos dois anos, a um relativo apaziguamento do Norte com o Sul, mas, nos últimos meses, o regime de Kim Jong-un tem feito uma série de provocações contra a Coreia do Sul, e agora soma este novo episódio, que é uma chamada de atenção para a comunidade internacional". É importante não esquecer que, quando se trata da Coreia do Norte, há uma "dificuldade em perceber o que será real e o que será especulação", e até o estado de saúde de Kim Jong-un foi alvo de boatos e dúvidas há pouco mais de dois meses.
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Mas há duas narrativas que não fazem sentido para Luís Tomé: a métrica de zero infetados por Covid-19 e o recente anúncio de que o país estará na corrida para o desenvolvimento de uma vacina contra o novo coronavírus. "Num país que tem tão más condições de saúde e de alimentação, sem casos, como poderiam fazer investigação de ponta para serem capazes de produzir uma vacina?"
A resposta é também imediata: "Tudo isto é propagandístico. Estamos a falar de um dos países mais pobres e isolados do mundo."
"A vizinha China tem muitos mais progressos nessa área, e a Coreia do Norte não tem mecanismos de introdução no mercado de produtos de farmacêuticas. Seria um completo contrassenso um dispêndio de recursos num país que, segundo as fontes oficiais, não tem sequer infetados." A insinuação por parte do regime de Kim Jong-un de que a Coreia do Norte seria capaz de suplantar os países mais desenvolvidos não passa de uma "manobra propagandística, que nem sequer terá uma verdadeira respeitabilidade da comunidade científica", assegura Luís Tomé.
Já a primeira "fachada", de uma ausência de surtos no território, pode dever-se a um volume tão baixo de testes "que o regime não tem noção da real dimensão da pandemia no país, e cá fora é impossível saber".
"A manobra propagandística - para consumo interno, porque, para fora, a credibilidade é zero - é dizer que assumiram medidas tão boas de contenção que o país não teve um único caso de infetado, quanto mais mortes. Nunca ninguém acreditou que a Coreia do Norte não tivesse casos, mas também há a possibilidade de não terem casos porque pura e simplesmente não têm condições para fazer testes, a não ser que peçam apoio à China", fundamenta o especialista em relações internacionais.
A Organização Mundial de Saúde não tem também como saber se um número anormal de mortes tem sido registado na Coreia do Norte, já que as autoridades do país nunca fornecem dados relativos à mortalidade. "É impossível porque, há vários anos, as Nações Unidas deixaram de emitir estatísticas sobre a Coreia do Norte", aponta o investigador da Universidade Autónoma.
Força armada vs. fragilidade do sistema nacional de saúde
Os dados, a serem reportados, seriam também alvo de escrutínio e dúvidas constantes, já que se trata de um Estado que "vai contando as narrativas que mais lhe convém". A "narrativa" de uma contenção como em nenhum outro país vem reforçar o "estado de prontidão e estado de pré-guerra a que nos habituaram".
Politicamente a Coreia do Norte seria possivelmente o país que mais rapidamente poderia impor as medidas de distanciamento e isolamento social, o que contrasta, na perspetiva de Luís Tomé, com "o regime tipicamente comunista cubano, que tem demonstrado avanços na área da saúde".
O professor de Relações Internacionais acredita que este é um "mecanismo para vincar a autoridade internamente, recordando que a Coreia do Norte ainda existe, ainda está armada e ainda é um perigo".
"Para efeitos repressivos, [a Coreia do Norte] utiliza sempre o medo para justificar as medidas de repressão. Vimos como rapidamente o estado de emergência foi decretado e o confinamento foi aplicado em Kaesong, apenas por um caso de suspeita..."
A Coreia do Norte é conhecida por um sistema de saúde "muito frágil e muito pobre, incapaz de produzir medicamentos de ponta, de detetar ou tratar muitas doenças",e, apesar de não haver provas deste sistema ruinoso, relatórios de dissidentes mostram que as condições são rudimentares e o sistema de saúde é baseado na medicina mais tradicional. "Há uns tempos surgiu o anúncio de um grande hospital que iria ser criado em Pyongyang, mas mesmo isso está por concretizar."
A "fantochada propagandística", prossegue, de um caso de suspeita surgir precisamente num sul coreano em fuga e ser desmentido "no dia em que comemoram a vitória que tiveram na guerra da Coreia" não cabe "na racionalidade comum", analisa o investigador, que exorta a pensar na Coreia do Norte com um filtro diferente. Até porque é impossível esquecer que "os mísseis e a energia nuclear são o garante de sobrevivência do regime e do Estado Coreia do Norte" e que a energia nuclear tem sido usada para "chantagear os outros países para um alívio de tensões e até para conseguir alimentos e energia".
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