Heróis invisíveis: a precariedade dos trabalhadores em tempos de coronavírus
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No dia 17 de março a França entrou em período de quarentena. Anunciando à população uma "guerra contra um inimigo invisível", o Presidente Emmanuel Macron pediu que as portas das casas se fechassem e que se reabrissem apenas em caso de primeira necessidade. Em França, como em Portugal, muitos são aqueles obrigados a sair de casa para trabalhar, muitas vezes de forma precária e sem a garantia de quaisquer medidas de segurança para fazer face ao novo coronavírus.
O Presidente francês anunciou aos franceses uma guerra contra o coronavírus: "Não lutamos contra uma armada, nem contra outra nação, mas o inimigo existe: invisível e indescritível, ele avança, o que pede a nossa mobilização geral. Estamos em guerra".
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À "guerra" decretada por Emmanuel Macron seguiu-se o confinamento da França, que acompanhou assim os passos do mundo. Enquanto metade da Humanidade se fechou em casa, milhares foram aqueles que continuaram a servi-la. Entre estes, os que trabalham atrás de caixas de supermercados, os que atravessam as ruas de bicicleta de encomendas às costas, os que levam apoio e serviços de saúde ao domicílio dos mais frágeis, os que varrem as ruas e recolhem os lixos, evitando novas epidemias. Enquanto as portas se fecharam a medo, fomos ao encontro da coragem dos mais precários, dos fantasmas de ontem, que vista a paisagem desamparada são hoje mais visíveis. A maioria aceitou falar connosco impondo anonimato ou distância, resguardando-se durante o horário laboral.
A nossa viagem pela precariedade em França começou em Rouen, com Jennyfer, de 26 anos, que trabalha na caixa de um supermercado e nos conta que a corrida a estes estabelecimentos comerciais levou a que as prateleiras ficassem muitas vezes vazias e a agressividade dos clientes fosse, por vezes, grave. Conta-nos ela este contexto: "Quando o confinamento começou, não tínhamos quaisquer proteções. Estivemos confrontados com uma maré de clientes da noite para o dia. Estivemos muito expostos. Nunca nos sentiremos suficientemente protegidos, tendo em conta todos os produtos em que tocamos, todas as notas e moedas... Fisicamente, temos mais trabalho, mas psicologicamente é ainda mais complicado".
A ida aos supermercados aumentou na mesma medida que o número de encomendas a domicílio feitas através de diferentes aplicações. Seguimos até à capital, onde Jerôme, que fundou o coletivo dos Estafetas Parisienses, em defesa dos direitos de trabalhadores mais precários, nos diz considerar o número de riscos tomados pelos empregados muitas vezes desnecessário. "Se o trabalho do pessoal hospitalar é verdadeiramente necessário - desde sempre - os estafetas e os seus hambúrgueres colocam a questão dessa essencialidade." Afirma este antigo estafeta que os mais precários são levados ao encontro dos mais protegidos, tendo em conta que "os idosos, as pessoas que estão em situações complicadas, pessoas doentes, têm por vezes acesso a um serviço da Câmara Municipal que lhes leva de que comer a casa... Não são estas pessoas que fazem encomendas a empresas como a Delivroo, Uber Eats, onde o prato mais barato custa entre 15 e 20 euros".
De Paris seguimos até Lyon. Lorenzo é um jovem videasta independente que trabalha como estafeta. Falou-nos das medidas de segurança que não foram respeitadas pela empresa de entregas ao domicílio para a qual trabalha. "A empresa pedia-nos, apesar das circunstâncias, para ir até à porta dos clientes. Não estávamos de acordo, portanto não subíamos. Fui, por essa razão, insultado, como muitos outros, porque os clientes eram obrigados a sair de casa para recuperar a encomenda e ficavam descontentes." Medidas de proteção, seguindo os conhecidos gestos-barreira, parecem também não ter sido cumpridos: "Prometeram-nos álcool gel, máscaras, mas já faz três semanas que continuamos à espera".
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Se interrogações existem sobre as medidas de segurança em supermercados ou nas encomendas levadas a casa, a problemática é ainda outra para os que trabalham no apoio e serviços de saúde ao domicílio, onde o estatuto é discutido e gestos-barreira parecem impossíveis, quando os trabalhadores se dirigem ao domicilio de pessoas doentes ou dependentes. Entre os 177.000 profissionais em França, fomos ao encontro de Nathalie, 52 anos, autora de uma petição que reivindica os direitos da profissão, que nos contou que a distância de segurança se revela impossível. "Visto que fazemos a higienização, transferências de cadeira para cama e refeições, não podemos ter uma distância de um metro das pessoas. É impossível... E podemos ir ver até cinco ou seis pessoas por dia."
Émilie também trabalha no apoio ao domicílio. É no centro da França que percorre estradas a caminho das casas dos que cuida, sempre com medo de os contaminar. "Expomo-nos, arriscamo-nos a contaminar os que estão à nossa volta, a contaminar as pessoas que vamos ver, e, consequentemente, as suas famílias, porque na maior parte dos casos a família passa para os visitar ou fazer compras. É complicado pensarmos que podemos estar a pô-los em perigo."
Varrem as ruas, recuperam os lixos e estão expostos a todos os vírus. São eles varredores de ruas, cantoneiros de limpeza. Christophe vive em Paris, é o dirigente do Coletivo dos Colectores de Lixo, e conta-nos os perigos deste trabalho: "É uma profissão ingrata, difícil, muito física, onde a mortalidade existe, onde a esperança de vida em França é das mais baixas, ainda mais baixa do que a dos que trabalham na construção. Os coletores de lixo são os primeiros a morrer em França. Primeiro, os que trabalham nos esgotos, depois os que recolhem os lixos. Mas isso ninguém o sabe, e não temos o direito de reclamar, devemos recuperar os lixos, à noite. Ninguém nos vê, ninguém se preocupa. Peçam a um coletor de lixo - em qualquer parte do Mundo - para se assoar no final do serviço, e verão que o lenço fica preto".
Muitas são as vítimas da Covid-19. Uma das zonas mais afetadas em França é Seine Saint-Denis, cuja extrema precariedade leva muitos dos habitantes a continuar a trabalhar, expondo-se ao vírus. Entre eles, Aicha tornou-se o símbolo da fatura paga por estas condições de trabalho. Tinha 50 anos, era empregada numa caixa de supermercado, e foi uma das vítimas mortais do coronavírus.
Falámos com Stéphane Troussel, presidente do departamento Seine Saint-Denis, sobre como a precariedade e as desigualdades sociais elevam a taxa de mortalidade nesta zona periférica de Paris. Este reitera a ligação direta entre as condições dos trabalhadores e as suas consequências na saúde: "Há muito tempo que, com os eleitos locais, alertamos sobre as desigualdades sociais e territoriais em Seine Saint-Denis e, infelizmente, esta crise sanitária veio trazer uma luz crua sobre as desigualdades de que sofrem os habitantes deste território. O primeiro resultado associado a esta crise sanitária é o número de doentes, o número de mortes... Apercebemo-nos de que temos uma mortalidade mais elevada, mesmo que esta epidemia vá ao encontro de pessoas mais idosas. Ela deveria, à partida, afetar-nos menos, visto que Seine Saint-Denis é um território muito jovem. É o inverso que está a acontecer".
Tanto em França quanto em Portugal, as vozes da precariedade teimam no silêncio, com um estatuto interrogado, existência que parece invisível, e saúde deteriorada, uma vez confrontadas com duras condições de trabalho. Todos os dias, às 20h00, aplausos ecoam nas ruas em homenagem a todos os que lutam diariamente contra o novo coronavírus. Os fantasmas de ontem tornam-se hoje heróis aos olhos de alguns e nasce assim a esperança de que novas portas se abram amanhã.
