Corpo do artigo
Quando entramos em Kiev, vindos de Lviv, no comboio da noite, não percebi imediatamente o risco que estávamos a correr. Nos relatos para a TSF dava conta daquilo que os meus olhos podiam testemunhar - uma cidade "fantasma", "cercada", com tropas russas a menos de 20 quilómetros da Praça Maidan.
Nos arredores, várias cidades travavam duras batalhas para impedir o avanço das tropas de Putin até à capital. Estávamos com 20 dias de guerra e nevava. O frio que cortava as orelhas, acompanhado de um vento impiedoso e gelado, a imagem de uma cidade vazia de gente, onde quase só as "babuskas" circulavam, com os seus sacos de compras, tão habituais nas imagens que sempre nos chegaram de Leste. As avós nada tinham a perder. Grande parte das que circulavam, protegidas do frio, em passos lentos e vagarosos, já tinham vivido várias guerras e conflitos. Com o fim da vida em perspetiva, fugir não era, sequer, opção. Ficaram, nas suas casas, e continuaram a fazer a rotina dos dias - ir às compras a meio da manhã, regressar e abrigar-se do frio, do vento e da neve. Kiev era, por esses dias, uma cidade envelhecida, quieta e silenciosa.
Só militares em cada rua e elementos da defesa civil em cada posto de controlo, apesar de tudo, davam alguma vida a um território que, segundo as contas do presidente da Câmara, tinha já perdido quase metade dos habituais habitantes de Kiev.
Kiev.
É uma cidade ampla, curiosa, planificada como o são as cidades soviéticas, com avenidas largas e várias faixas de rodagem, com edifícios de diferentes épocas que, de alguma forma, ajudam a revelar a história da Ucrânia. Com o passar dos dias na capital, e com a cidade cercada como se fosse uma península, por todos os lados menos por um, neste caso a rota para Sul, o que permitia que o magnífico sistema ferroviário ucraniano continuasse a funcionar (quase) como se nada fosse, fui descobrindo que, afinal, apesar de cercada, apesar das batalhas nos arredores, apesar das sirenes, das ameaças, da proximidade do invasor e da retirada de grande parte dos jornalistas ocidentais, Kiev resistia. Do outro lado do rio, numa zona densamente povoada, com milhares e milhares de prédios de habitação com dezenas de andares, havia vida. Um homem que fazia café, ou seja, mantinha o café aberto e, dessa forma, resistia. E, ali, numa pequena loja do rés do chão de um dos milhares de prédios, os vizinhos desciam para momentos fugazes de "uma vida normal". Avós e netos partilhavam instantes de vida em família. Jovens casais namoravam diante de um chocolate quente. Amigas riam, posavam para fotografias que haviam de partilhar nas redes sociais, ao lado de imagens de guerra, fotografias de resistência, apelos à solidariedade e glória à Ucrânia.
Noutro ponto da cidade, mais perto do centro, outro café resistia, aberto. Havia, é certo, pouca coisa para escolher. Mas, lá dentro, o ambiente nova-iorquino quase nos fazia esquecer que sim, estávamos em Kiev, cercada e bombardeada. Amigos à conversa, uma pequena esplanada onde se podia fumar, apesar do frio e da neve, com gente, música de fundo ocidental. Tocam as sirenes. Fecham-se as cortinas, pedem-nos para nos afastarmos das janelas, quem está na esplanada recolhe ao interior do café. E continuam as conversas entre amigos, a música que nunca para, o ambiente nova-iorquino, como se estivéssemos numa cápsula, protegidos. Na praça Maidan, no dia na nossa chegada, um concerto pela filarmónica, e um pedido do maestro com boina parisiense: "Please, close the sky". A NATO nunca fechou os céus. Uma mulher, deveria ter cerca de 50 anos, pareciam mais, dirige-se a nós. Fala russo, sem parar. Não percebo uma palavra, mas, a dada altura, ela pede que grave o que está a dizer. Acedo sem contrariar. Gravo. O desespero que lhe sai do peito, da voz, da expressão, deixa-me perceber que está a dizer algo grave e sério. Consigo entender algumas palavras, como "Putin", "diabo", "catástrofe". Mais tarde, a tradução revela que é russa, mas vive na Ucrânia há décadas. Chora com a guerra que está a destruir os seus irmãos ucranianos. Considera Putin o diabo e amaldiçoa o presidente russo. E explica que os seus familiares, que vivem na Rússia, não acreditam que haja uma guerra, uma invasão, bombardeamentos e mortes. Está desesperada. O som dessa gravação ainda passa, 80 dias depois, na TSF. É tão forte que, pela primeira vez na Ucrânia, eu e o André Luís Alves entreolhámo-nos e ambos tínhamos lágrimas contidas prontas a rebentar dos olhos. Mesmo sem termos, ainda, escutado a tradução da raiva.
Quando fomos, numa manhã, abanados pela notícia de um bombardeamento de um prédio de habitação perto do centro, a adrenalina levou-nos a correr para lá. Dos quatro blocos, um deles tinha sido atingido. A fachada desaparecera e a vida dentro do edifício ficou suspensa, com chávenas de café que estavam nas mesas, roupa que se manteve no estendal, quartos e salas destapados e quietos. Cá fora destroços, destruição, bicicletas de crianças que eram agora escombros e gente com sacos, sempre os sacos, com lágrimas, medo e trauma. Mães que tentavam proteger os filhos pequenos, idosos a ligar para familiares para que os viessem buscar, um ativo deputado a servir de porta-voz a pedir, por favor, "fechem os céus". Nunca foram fechados. No lado oposto, alguns destroços invadiram o campo de futebol de relva sintética colocada há poucos meses e o sopro das explosões levou os vidros todos de uma escola - sim, uma escola. A guerra estava a chegar perto do centro. Nos ardores, as imagens que chegavam davam conta de um cenário de destruição em massa. E, no entanto, os ucranianos e Kiev, resistiam.
- "Bom dia, bem-vindos, os meus pais vivem em Gaia."
Quando se chega a um hotel entaipado, de luzes apagadas, sombrio e escuro, no centro de uma cidade cercada, não se espera que nos recebam na nossa língua materna. Mas sim. O único rececionista que ficou, mal nos vê entrar, diz:
- "Bom dia, bem-vindos, os meus pais vivem em Gaia."
Não sabe muito mais palavras em português, para além de obrigado, boa tarde ou boa noite. Mas o esforço, a cortesia, a vontade de agradar e, sobretudo, o facto de ter ficado no seu posto, é tudo mais do que suficiente para nos fazer arrepiar. A história é simples, os pais mudaram-se para Portugal, vivem "em Gaia, na Madalena" e, por isso, ele sabe meia dúzia de palavras. O hotel é, em si, toda uma história de guerra. Faz parte de uma cadeia internacional e é inspirado em Nova Yorque, chama-se City, mas fugiu quase toda a gente. O gerente, os diretores, grande parte dos funcionários. Mas pediram aos que ficaram para manterem o hotel aberto. Eles cumpriram. Os dois vigilantes não foram a lado nenhum. Rececionista só há um, 24 horas por dia. Duas senhoras garantem a limpeza dos quartos. E, no bar de luxo transformado em cantina, o chef de laço e chapéu também ficou. Ele e duas senhoras que trouxeram as filhas e os maridos para ajudar. De repente, consegue-se tomar o pequeno-almoço e jantar. E até há, às sextas-feiras, uma garrafa de vinho - proibido nessa altura - de oferta. Os jantares são prato único e feito com o que há. Mas o chef consegue transformar restos de frango em canja gourmet, três camarões com esparguete são um bom prato principal e, noutros dias, quando se conseguiu comprar algo mais, a quantidade da porção explica o sucesso na mercearia.
Há tantas vidas cruzadas no hotel. As de repórteres de todo o mundo que escolheram aquele local. A da filha da senhora que toma conta da "cantina", que tem origens arménias, russas e ucranianas e que fala um inglês razoável, o que lhe permite servir de interlocutora entre hóspedes e funcionários.
Quando voltei a Kiev e ao City, estava tudo diferente. A primavera mostrava já uma cidade mais composta, com gente nas ruas, parques infantis com vida, restaurantes abertos, lojas a funcionar e as tropas russas longe da capital. O City já era um hotel normal. A cantina voltou a dar lugar a um bar de luxo, os diretores voltaram os rececionistas de sorriso estudado e frases feitas também, o chef já não vem à sala, a senhora que tratava de nós não está lá, a filha também não. Só o rececionista da noite permanece no seu posto.
"Boa noite, e bem-vindos de volta."
