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Se na Terceira, nos Açores, Angra é do Heroísmo e a Praia é da Vitória, isso prova que, ali, a tradição liberal, no sentido antigo, foi berço do triunfo contra o absolutismo, o domínio espanhol e um País às arrecuas. À paulada ou largando gado bravo, a coisa fez-se.
O meu camarada de ofício João Pedro Henriques, que em tempos andou por Angra em reportagem, conta-me que o açoriano Mário Bettencourt Resendes, que dirigia o Diário de Notícias, ainda questionou a publicação daquela foto ousada de uma stripper brasileira para ilustrar o liberalismo da ilha também nos costumes. Mas a imagem lá saiu. Segundo o João Pedro, no "Twins", discoteca local, havia shows de strip femininos e masculinos, algo inimaginável em Ponta Delgada.
Angra ostenta pergaminhos republicanos e pela-se por uma assembleia ou debate entre iguais. Dizem os praticantes incansáveis da troca de ideias e das dinâmicas cívicas que é, por tradição, cidade pouco dada a vergar a espinha a desmandos autoritários untados por Deus ou a hierarquias enfatuadas.
O discurso salazarento de extração digital ainda não pega nesta terra de geologia vulcânica. Nem um Salazar para amostra, quanto mais três. A versão recauchutada teve mais propaganda do que votos nas autárquicas, a fazer lembrar o exibicionismo típico de macho viril: explosivo de boca, mas de pólvora seca à vista desarmada.
A cidade sempre integrou o forasteiro. Se renasceu dos escombros do terramoto de 1980 até ser classificada património da humanidade também o deve a imigrantes, com "i". Na ilha, até a botânica cruza e mistura geografias e distâncias, cobrindo de beleza e encanto a desumanidade deste tempo.
Nesta terra, ergueu-se uma ermida a uma rapariga violada e um monumento a Brianda Pereira pelo lendário enfrentamento com o invasor castelhano. Aqui se inaugurou o Parque da Liberdade, virado ao mar e à infância, cravando-se numa escultura estas palavras: "Aos presos políticos, desterrados, deportados, exilados, refugiados e emigrados forçados que ao longo dos tempos viveram entre nós."
O busto é de Gungunhana, imperador africano condenado ao exílio na Terceira pela resistência ao colonialismo, história bem contada e premiado jornalismo de Sara Melo Rocha. São palavras a desassossegar a memória dos manuais e as mitologias, para que o passado não tenha futuro. Só as chagas sociais - onde os Açores ainda ocupam os piores lugares da estatística e da existência - podem oferecer pasto para extremismos.
Porém, a livraria-sonho do escritor Joel Neto e da mulher, a editora Marta Cruz, mostra que há quem, por aqui, não dê o futuro por derrotado. O que se cruza diariamente na Lar Doce Livro, em Angra, é uma Babilónia de bolso com a "mão papuda da hospitalidade", na imagem feliz do poeta Marcolino Candeias.
A época reclama novos horizontes e são eles que povoam uma carta de Joel Neto ao filho, que agora tomou a forma de livro sobre a ilha Terceira. Reza assim: "Não sejas cínico: sê múltiplo. Aprende a povoar-te. Evita os absolutos. Ama o que puderes - faças o que fizeres (...) Ainda há esperança, Artur. Diz-to o teu pai, daqui, à distância de uma vida quase toda. Aceita a culpa com coragem. Ressentimento é que não."
Como numa canção de Cristóvam, atravessemos, pois, juntos, "a escuridão destes dias". Da Terceira para o mundo.
