Corpo do artigo
Há quem aponte que Cristina Ferreira tem um timbre de romaria, ri com os dentes do sizo e responde com baixa escolaridade. Mas Cristina também é uma mulher com aquela destreza própria de quem foi íntima das dificuldades e que tem a confiança de quem conseguiu superá-las. Parece ter uma inteligência funcional apurada. E é claramente uma mulher ambiciosa. Tudo isto baralha a elite portuguesa. Recebem-na com o desdém de quem acha que a posição social deve ser mais herdada do que adquirida, mas invejam-lhe o poder que, com mérito, acabou por alcançar.
As provocações que Cristina fez esta semana sobre uma possível candidatura à Presidência da República nada têm de ingénuo. São um testar de águas, um desabafo premeditado. Aos 40 e poucos anos, Cristina já conquistou tudo o que jamais sonhou conquistar: é a mulher mais conhecida do país. Se continuar na TV, as suas próximas décadas serão uma caminhada plana no topo da montanha. Dificilmente uma pessoa ambiciosa e inquieta satisfazer-se-á com a perpetuação do status quo. A política, ou qualquer outro projeto diferenciado, poderá, sim, estar nos seus planos.
São inúmeros os políticos que alcançaram sucesso eleitoral alavancados pela sua popularidade no mundo do entretenimento: os presidentes dos EUA Donald Trump e Ronald Reagan, o Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, o ex-governador da Califórnia Arnold Schwarzenegger, o atual governador de São Paulo João Dória ou o britânico David Bull (membro do Parlamento Europeu).
Na Polónia, no Brasil e na Rússia, os populares apresentadores de TV Szymon Hołownia, Luciano Huck e Kseniya Sobchak, respetivamente, poderão ser candidatos nas próximas eleições presidenciais.
É fácil descartar estes aspirantes como arrogantes ou despreparados. Arrogantes por acreditarem que podem subverter a sua popularidade junto das massas e convertê-la numa conquista política. E despreparados perante os desafios técnicos, geralmente apenas domináveis pela experiência executiva e pelo estudo, de administrar políticas públicas que afetam milhões de pessoas.
Tudo isso pode ser verdade. Mas estes políticos também poderão apresentar algumas qualidades que, na mesma lógica, não podem ser descartadas. São pessoas menos condicionadas por teias de favores institucionais e menos predispostas a transações políticas. Têm mais liberdade para escolher e opinar. São menos suscetíveis a seguir agendas partidárias. Há também talvez mais espaço para contar com o conhecimento de especialistas externos às burocracias. Ronald Reagan tinha ao seu lado Donald Regan ou Malcolm Baldridge, que comandaram as finanças e o comércio do país sem as amarras do Partido Republicano.
Além disso, como geralmente são candidatos antissistema ou que representam "o novo", também servem de morfina contra os radicalismos dos extremos. Mal por mal, eu prefiro ter Cristina Ferreira, ao invés de André Ventura, em Belém. Alguns destes apresentadores têm mais contato com as entranhas do povo do que alguns políticos de gabinete. Luciano Huck, por exemplo, visita para o seu programa na TV Globo famílias carentes em todos os estados brasileiros. E ao contrário da tecnocrata Dilma Rousseff, que se tornou a antítese da comunicação política, estão bem treinados para veicular mensagens em público.
E onde deverão ser demarcadas as fronteiras entre um político tradicional e um apresentador de TV? Muitos dos profissionais do entretenimento habituaram-se à ideia de levarem políticos para os seus programas incutindo uma religiosidade partidária a programas que geralmente são laicos. São dezenas os políticos que também participaram em séries e filmes. Ainda se lembram de Hillary Clinton na série "Murphy Brown" da CBS? Ou de Michael Bloomberg em "The Good Wife"?
Muitas personalidades do entretenimento não se inibem de exprimir a sua opinião política, como Cynthia Nixon, Meryl Streep ou Mark Ruffalo. Para além disso, muitos políticos são também quase apresentadores de TV. Principalmente em Portugal, onde todos os canais cedem o horário nobre a políticos profissionais. Foi nos estúdios de TV que Sócrates, Marcelo e Santana Lopes se catapultaram como políticos.
À RTP1 esta semana, Cristina disse que faz diariamente política, "apenas não tenho o cargo." Vejamos então quais serão os seus próximos passos. Começará a falar nos bastidores com alguns dos sobas da política portuguesa? Começará a participar em eventos internacionais? Começará a levar o seu programa matinal pelo país, para ouvir as gentes? Escreverá artigos na imprensa com a sua opinião sobre a nação?
Se ela se candidatar já, sabendo de antemão que vai perder nas eleições de janeiro de 2021, então o seu interesse pela política é um mero golpe de marketing, uma oportunidade para vender mais unhas de gel. Mas se ela for preparando com astúcia as eleições de 2026, poderá ser uma candidata viável.
Portugal é um país com instituições públicas paradas no tempo, sem uma visão nacional de longo prazo, com poucos vultos reconhecidos e com elites velhas com baixa formação que resistem à renovação geracional. Este é o contexto adequado para fruir o caos. E para transformar Cristina Ferreira numa candidata palatável.
*Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e Califórnia-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial.