Miguel Carvalho: "Quem criou o Chega foram os Governos que falharam com a palavra dada"
No livro "Por dentro do Chega", o jornalista Miguel Carvalho fala de "um partido de fanáticos que não faz grande reflexão". Diz que é diferente quem está no topo e quem são os militantes. Em entrevista à TSF, o autor revela como acompanhou a evolução do partido desde a fundação
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Miguel Carvalho é jornalista, nasceu no Porto há 54 anos, trabalhou no Diário Notícias, no Independente e na Visão. Já arrecadou vários prémios e colocou em vários livros o trabalho feito para muitas das reportagens que realizou. É o caso de Por Dentro dos Chega: a face oculta da extrema-direita em Portugal. Já à venda.
Segue-se parte desta Entrevista TSF em texto:
Há, no Chega, às claras ou nas sombras, figuras do passado ou apenas os herdeiros desse passado?
Há figuras do passado e há herdeiros desse passado. Há uma direita radical, extrema-direita (em alguns casos), mal resolvida com o 25 de Abril. A figura mais emblemática a esse nível será Diogo Pacheco de Amorim, que tem aproveitado ao longo destes anos para reescrever um bocadinho a história dessa época. E também pessoas que, de alguma maneira, contribuem financeiramente para o partido (ainda que, às vezes, de forma simbólica, na ordem das centenas de euros). Mesmo nesse território, há muita gente que participou em atividades e teve um papel relativamente interessante naquele período de contra-revolução. Essas pessoas estão no Chega. O Chega pode não representar tudo aquilo que elas desejariam que acontecesse, mas é o melhor que elas podem encontrar para realizarem um bocadinho o seu sonho húmido desse tempo.
É aí que nasce o Chega, ou seja, nos partidos ou nos movimentos antigos ou é noutra coisa?
Tenho a tese de que o criador do Chega não foi André Ventura, nem foram essas pessoas. Acho que quem criou o Chega, o que esteve na origem deste partido, foram sucessivos Governos que falharam nas promessas e na palavra dada. É uma coisa que hoje muita gente fala e eu ouvi muito essas queixas, no terreno, por parte de eleitores do Chega, que não concordam, às vezes, com muitas coisas que o André Ventura defende, mas acham que o seu voto de protesto tem que ir para ali, porque têm a noção de que a generalidade dos Governos, nas últimas décadas, falharam as promessas com as quais se comprometeram.
Estamos a falar de coisas muito simples: o desmantelamento do Estado ao longo do território nacional, pessoas que se queixam do posto dos Correios que fechou, do hospital prometido que não foi construído, a estrada prometida que não foi construída, a escola que fechou e agora é a 30 quilómetros, entre outras coisas. Nas minhas conversas — e muitas delas foram muito longas, tenho entrevistas de cinco e seis horas com alguns eleitores, militantes e ex-dirigentes —, raramente aflora, no início, as questões que são as questões da pauta de André Ventura. O que vem primeiro, sobretudo nas zonas de interior, são estas queixas.
Portanto, é o partido do descontentamento, dos abandonados e dos extorquidos?
Sim, há muito esse sentimento, que a academia já vem estudando não só cá, mas noutros países. Esse universo, os chamados left behinders, aqueles que são deixados para trás por várias razões. Por um lado, sentem que as decisões políticas não os incluem. É o facto, por exemplo, de distritos do interior perderem cada vez mais deputados e de nenhuma das decisões que poderia, de alguma maneira, permitir o mínimo de qualidade de vida e de presença do Estado no território estar a ser cumprida. Portanto, há um acumular, há um ressentimento que está muito mais profundo às vezes — eu senti isso logo em 2020 — está muito mais profundo do que os estudos de opinião e sondagens alcançam, porque é uma coisa tão lá em baixo, é no fundo…
E é ideológico nesse caso?
Não, muitas vezes não é. Quer dizer, o Chega tem gente que veio de todos os partidos. Claro que há mais gente que vem da família política mais próxima, do PSD e do CDS, mas nas últimas eleições houve zonas do território — e já há estudos a comprová-lo — em que houve um deslocamento de voto muito considerável do PS para o Chega.
E eu também encontrei ex-militantes do Bloco de Esquerda, que ainda há poucos anos achavam que a Marisa Matias era uma excelente candidata ao Parlamento Europeu, gente que votou Sócrates, muita gente que votou Sócrates, muitos ex-comunistas de militância de décadas e alguns até com candidaturas autárquicas no currículo. Portanto, a realidade do Chega, quando vamos para o terreno, é muito mais complexa do que aquilo que às vezes julgamos.
E onde é que entra nesta equação, a tal trilogia do fascismo: Deus, Pátria, Família?
O Chega, obviamente que atraiu aquela direita mais ou menos ideológica que andava nos extremos há muitos anos, ou seja, toda a direita que andava nas margens do sistema e que não tinha propriamente um partido para escolher, ou um partido com esta força para escolher. Desde neonazis, pessoas das elites financeiras e económicas que antes poderiam estar no CDS e no PSD, e se calhar continuam a apoiar na mesma, mas viram no Chega a garantia de que o estado social não tem grande futuro e os seus interesses são melhor servidos com o espetáculo que ali tem sido dado e que agrega eleitorado já suficiente para se tornar a segunda força política.
Mesmo na origem, não eram só os radicalizados? Há moderação também na origem do Chega?
Sim, ou seja, essa direita que esteve nessas franjas latifundiárias, os grandes proprietários agrícolas, etc., que estaria normalmente nos setores mais à direita dos partidos tradicionais, está obviamente no Chega, por muito que não concorde com a pauta toda. Mas há também gente moderada que acumulou esse ressentimento. E há outro mito que até há relativamente pouco tempo se alimentou em relação ao Chega, que era a ideia de que isto é tudo formado por gente mais ou menos destituída. Bem, eu posso dizer que uma das classes sociais que está mais representada - eu aqui já nem digo no universo eleitoral, digo no universo militante do Chega, que paga quotas - são professores de todos os graus de ensino. Eu encontrei professores de todos os graus de ensino de norte a sul do país. Ou seja, são pessoas, e há também, mesmo no estrangeiro, militantes do Chega, académicos com muito prestígio, e, portanto, é um fenómeno que não é em preto e branco. Isto é muito mais complexo, é muito mais misturado do que a realidade que às vezes se transporta para as redes sociais.
Então é o Estado que pode dar resposta ao esvaziamento, a um potencial esvaziamento desse fenómeno?
Eu acho que sim. Ou seja, eu acho que o Chega não terá futuro quando houver primeiro políticos que saibam honrar a palavra verdade. E, sobretudo, para zonas que não são só de interior, ou seja, mesmo zonas suburbanas, onde o Chega já tem votações consideradas. Como se deu na Grande Lisboa nas últimas eleições legislativas...
E como eu acho que se vai ver nas autárquicas. E, portanto, primeiro: políticos que cumpram a palavra dada ou que devolvam às pessoas a sensação de que podem confiar na palavra dada. Porque foi isso que falhou ao longo dos anos; e depois, falar olhos nos olhos. Porque às vezes ficamos com a ideia que tudo isto se passa nas redes sociais e não. Há uma grande parte da população que, por muito que siga as redes sociais, não é isso que é determinante. E às vezes, um porta-a-porta, uma conversa franca com as pessoas no terreno pode mudar isso. Ou seja, se o Estado der as respostas que não deu, e além de não as ter dado, falhou consecutivamente no equilíbrio e na integridade do território, não deu esperança às pessoas, tirou-lhes a esperança, se o Estado voltar a fazê-lo, eu acho que o Chega não tem grande futuro.
André Ventura faz a síntese de alguma dessas coisas? E há Chega sem Ventura?
Acho difícil. Embora ele tenha permitido, pela primeira vez, que alguém lhe fizesse sombra, que é a Rita Matias. Ele puxou-a muito para o seu lado, deu-lhe muita visibilidade, porque a Rita Matias entra muito bem - como eu demonstro no último capítulo - no universo juvenil, inclusive aqueles que ainda não votam.
E aí sim, através dos canais digitais.
Sim. E aí é fundamental. Mas não só, também com a presença física. Eu tive relatos do anúncio da ida dela a algumas escolas e aquilo ficou à abarrotar. E mesmo quando ela não vai - confirma a sua presença e depois, por alguma razão, não vai a um debate – a claque está lá. E, portanto, é um fenómeno absolutamente extraordinário, com grande empatia. Ela tem grande empatia com os miúdos e, portanto, foi a única…
É nossa Charles Kirk?
Provavelmente, não sei... Foi a única pessoa a quem André Ventura permitiu sombra. Depois, este não deixou de ser um projeto de poder pessoal. Ou seja, o Chega é um projeto de poder pessoal. Há várias pessoas no meu livro que dizem, em ON, que aquilo é o Chega unipessoal. Ou seja, ele foi eliminando, ao longo destes anos, todas as pessoas que podessem ter sido contra. E não só: todas as pessoas que lhe permitiram alcançar determinadas coisas e que depois passaram a ser descartáveis. Algumas saíram pelo seu próprio pé - é justo também dizê-lo - porque viram ali algo com o qual não estavam a contar. Mas ele faz a síntese. E há mérito nisto. Porque, em 2019, antes e depois da sua eleição como deputado, ele foi às zonas do país onde não ia um político há muitos anos. Nós poderemos perguntar: foi oferecer soluções, foi apresentar um grande programa para o país? Não foi. Mas foi ouvir as pessoas. Foi berrar por elas. Foi gritar por elas. E isso elas não sentiam há muito tempo. Numa feira do queijo onde hoje, se calhar, não vai ninguém. Em aldeias onde ele fazia jantares, e onde ninguém via um político há muitos anos.
Deu-lhes a tal proximidade de que falavas há pouco?
Sim, e destapou a panela de pressão. Deu-lhes uma narrativa simples para problemas que as pessoas viviam há muito tempo e não sabem identificar as causas.
No início do livro, tu falas sobre as teorias de conspiração, e dás o exemplo de uma operação que estaria em curso para ilegalizar o Chega. Essas construções fazem parte da estratégia? Existem sempre?
Fazem. Acho que aí houve mesmo um fundo de verdade. Isso surge num contexto em que há uma espécie de guerra civil interna. Um grupo de dirigentes reúne-se clandestinamente numa casa em Setúbal e enviam um documento ao partido, ameaçando que o vai enviar para o Ministério Público. Esse grupo faz várias perguntas - acho que são mesmo centenas de perguntas - sobre as questões financeiras, em que se insinua que há um cheque vindo da Áustria para financiar o Chega - que é um bocado ridículo, convenhamos - mas a verdade é que esse clima paranóico, esse clima de conspiração existia. E quando esse documento chega à direção há um susto. Há a sensação de que alguma coisa podia resvalar. Houve gente que acreditou e que levou muito a sério as informações que teve e preparou-se toda uma operação para que André Ventura fosse para o exílio, para Marrocos. Esse clima conspiratório, esse clima paranóico, a ideia de que o Chega é perseguido pelo sistema e pelas autoridades, está plenamente demonstrado ao longo destes anos nas próprias declarações de André Ventura, que já disse várias vezes - durante a pandemia, chegou a dizer se tomasse a vacina podia ser assassinado - que não tinha dúvidas nenhumas de que os poderes, se pudessem montar-lhe uma operação, montavam. Portanto, este clima é alimentado não só por ele, mas também pelos principais dirigentes, dando a ideia...
Porque resulta a favor de...
Obviamente! Aliás, como resultou com Trump.
E nestas estratégias, a comunicação social e os jornalistas são instrumentais? Ou seja, a comunicação social e os jornalistas são um pólo que interessa a André Ventura e à direcção do Chega?
Cada vez menos. Ou seja, interessou-o na altura em que era preciso fazer ruído. E acho que nós aí, todos nós, uns mais, outros menos, cometemos muitos erros. Demos ao Chega um poder mediático na ânsia de ir atrás do ruído, do que era disruptivo, etc. E até, muitas vezes, no sentido de aproveitar umas declarações para denunciá-las e para mostrar o perigo que estava ali. E até a violação de direitos constitucionais. A verdade é que demos um palco, já nessa altura, ao Chega e ao próprio André Ventura, como se ele já fosse a terceira ou a segunda força política e era só um deputado. E cometendo esse erro lá atrás, agora vais de trotineta atrás de um Ferrari. E, portanto, o Chega hoje prescinde praticamente da imprensa. Não lhes interessa.
Dispensa a mediação?
Dispensa a mediação. Essa estratégia, como eu demonstro no livro, foi discutida em várias reuniões e foram feitas umas pautas no sentido de isso ser levado à prática. E hoje o que interessa é, sobretudo, televisão onde, pelo que eu tenho visto, há uma atitude que me parece sinceramente absolutamente masoquista. Nós temos uma personagem que eu acho que até já deve ter um beliche em alguns canais de televisão porque acho que ele acorda no dia seguinte já no outro canal e é entrevistado tantas vezes para não dizer nada ou pelo menos uma grande parte que tenha valor informativo. Nas últimas semanas perguntaram-lhe várias vezes sobre a candidatura presidencial e a resposta foi a mesma. Acresce que, nas vezes todas que vai às televisões, mente mais uma vez e diz mais falsidades. Espalha mais desinformação. Faz bullying aos jornalistas e ao próprio canal. Muitas vezes às pessoas que o entrevistam. Comporta-se, muitas vezes, como um menino traquina que podia estar muito bem num recreio da escola, mas que já é líder da oposição. E nós fazemos isto de uma forma absolutamente masoquista. E eu só pergunto isto: Eu tenho ideia que isto nunca seria permitido, este tipo de comportamento com as mentiras agregadas isto nunca seria permitido a outro líder político. Fosse do Bloco de Esquerda ou do CDS. Ía-mos chegar a uma altura e dizer “não, alto isto não pode passar daqui”. Mas, com ele, passa. Parece - e não estou a dizer que é o que acontece - que numa emergência pela luta de audiências, parece haver uma frase nas redações: “chama o Ventura”.
Quando esta semana, André Ventura justificou a mensagem e o vídeo nas redes sociais criticando a ida do Presidente da República a um “festival de hambúrgueres” na Alemanha, “pago pelos portugueses” justificou-se com um “erro de escrita”. E isso, levou-me a um argumento que tu citas no livro que foi usado no caso das assinaturas falsas do processo de legalização do Chega. Também ali havia um “erro de escrita”. Essas práticas sucedem-se, os erros continuam, as justificações são as mesmas, mas depois acabam por cair no esquecimento. Também aqui, o Chega está a dominar algo moderno, porque as coisas são cada vez mais instantâneas, rápidas e caem no esquecimento?
Sim. Ele dominou isso muito antes de nós percebermos. As suas prestações televisivas no tempo da CMTV, a sua candidatura a Loures... Quando nós o tivemos diante dos olhos como deputado, já ele tinha uma grande escola. Já ele tinha feito o ginásio todo para perceber muito bem como é que as coisas se faziam. E coisas dessa gravidade sucedem-se no Chega. Por exemplo, a questão das assinaturas, que foi amplamente abordada, mas seria aconselhável ir consultar o processo. Ou seja, o principal responsável do pagamento das assinaturas é ele, e isso é dito pelos próprios dirigentes. É ele que dispõe da maior parte do dinheiro, apesar de ter sido chamada “vaquinha” entre outros dirigentes. Grande parte do dinheiro sai dele para pagar as assinaturas que se pediam - muitas delas falsas - e ele nunca é ouvido no processo. É muito estranho que isto aconteça. Também o caso das gravações clandestinas feitas internamente. Ou seja, há vários assuntos que eu considero de relevância criminal no interior do Chega que nunca tiveram grande repercussão pública.
Porque os envolvidos depois não avançam?
Sim. Nós estamos todos ainda um bocado a aprender. Nós estivemos durante muito tempo a achar que isto nunca nos aconteceria a nós. Depois, quando percebemos que estava a acontecer, desvalorizamos e achamos que, ao virar da esquina, isto acabava facilmente, e que o país nunca iria por aí. Agora, temos a realidade que temos. Eu estou à vontade nisso porque fui criticado, em privado e em público, por achar que isto ia crescer. E a verdade é que nós vivemos - do ponto de vista jornalístico, do ponto de vista dos recursos humanos e técnicos das redações - provavelmente o pior momento do jornalismo em tempo de democracia. Tu não tens recursos para ter alguém com permanência dedicado ao Chega e, mesmo assim, a Visão já me aturou muito. A [revista] Visão permitiu-me coisas que nenhuma redação deste país provavelmente me teria permitido. E isso é a cereja no topo do bolo para um partido que faz o que faz. Não ter esses recursos, com pouca gente que conhece o Chega com profundidade. E como é um partido que todos os dias tem algo na agenda, ou aproveita a agenda para criar algo, é muito difícil poder escrutiná-lo.
Escrutinar o direto é mais complicado...
Sim, é muito difícil.
A igreja é uma ponte para as pessoas e para os financiamentos do Chega?
Lato senso, sim. Eu não posso provar que haja, do ponto de vista financeiro, algum caso desse género. Eu encontrei, obviamente, muitos militantes evangélicos e católicos ultraconservadores, muita gente que contribui com regularidade e com alguns valores bem consideráveis para o Chega. E o setor evangélico é um setor muito variado. Nós temos pelo mundo, por exemplo, igrejas evangélicas e setores evangélicos que apoiam movimentos e partidos de esquerda, portanto, isto não é tudo igual.
Tu dizes, e é conhecido que desde o final dos anos 80, início dos anos 90, que há uma grande expansão das igrejas evangélicas em Portugal, muito por conta do aumento da imigração. A imigração também faz parte destes descontentes que aportaram no Chega?
Sim, isto é tudo muito contraditório. Se não quisermos ir à imigração, podemos ir ao rendimento social de inserção. Há gente que recebe o RSI, e que vota no Chega porque acha que o parceiro do lado não deve receber o RSI. Esse foi o grande mérito, digamos assim, de André Ventura. É de um requinte absolutamente maquiavélico, conseguir, em nome de uma elite que ele diz combater, conseguir que o pobre se vire contra o pobre. Ou seja, tu esmurras a pessoa que está ao teu lado e que vive na tua comunidade, não esmurras o empresário ou o financeiro ou este capitalismo selvagem que te tramou a vida. E esse não está acessível. E, portanto, ele conseguiu esta coisa absolutamente fantástica. E depois, os sectores mais conservadores da religião, sejam eles evangélicos, católicos, ultraconservadores, tiveram vários momentos de poder no Chega. Até 2021 o poder evangélico era brutal, e ainda hoje, mesmo não tendo o Chega dirigentes desse setor - que já teve - em termos de eleitorado ou em termos de território, há pastores e há muitos sectores completamente fiéis ao Chega, porque o Chega defende, segundo eles, a pauta da família, do país que foi e que voltará a ser, tudo isso.
Mas, entretanto, foram reforçadas as estruturas dirigentes, e também foram agregados os sectores católicos ultraconservadores, em parte ligados ao Opus Dei, ao movimento de comunhão e libertação. Há muita gente desses sectores.
O Chega está ligado aos movimentos internacionais de extrema-direita por necessidade de legitimação ou porque há, de facto, uma base programática, ideológica, comum?
Não. Comparar o Chega com qualquer dos partidos da sua família política, neste momento, a nível europeu - e vamos cingir-nos só aí - é comparar água com vinho. Podemos falar do Vox (Espanha), da RN (França), da AFD (Alemanha). Pode escolher-se qualquer um, até a AFD, que já não está na própria família, mas pronto. Esses partidos, goste-se ou não, para além de terem uma estruturação histórica que o Chega não tem. Como falamos, no início, recebe muito da herança dos derrotados do 25 de Abril, e o Chega reivindica essa herança, é preciso dizê-lo. Estamos a falar, na Europa, de partidos que têm um substrato histórico e ideológico muito considerável. O Vox tem muito trabalho ideológico. Mesmo na Hungria, o Orban tem muito trabalho ideológico feito. O Chega não tem trabalho ideológico, como o próprio Gabriel Mithá confessa no livro. Ele é a pessoa, do ponto de vista ideológico, mais estruturada daquele partido. Pelo menos que eu conheça. E ele confessa numa entrevista que houve várias tentativas de mostrar documentos, discursos a André Ventura, e teve muitas dificuldades para gerir o Gabinete de Estudos, porque isso não é valorizado. O que é valorizado é a espuma dos dias. Ouve-se a TSF de manhã - e eu sei o que é que estou a dizer – e se é isto que está a bombar, vamos fazer um projeto de lei sobre isto. E, portanto, isto é o dia-a-dia do Chega. Compará-lo com outros partidos, do ponto de vista do substrato ideológico, é ridículo. No início, o que André Ventura buscava como deputado único, era a fotografia, tentou várias vezes aparecer com o Abascal e com o Salvini. Demorou, mas o que lhe interessava era a fotografia. Hoje, já não é bem assim. Hoje, ele participa em reuniões internacionais importantes, e às vezes, até são eles a chamá-lo. É a mesma pessoa que – acabado de ser eleito deputado em 2020 - dizia numa entrevista ao Público que a AFD era horrível. No ano passado, esteve no Congresso da AFD a dizer que a AFD era o futuro da Alemanha. Portanto, é disto que é feito o Chega.
Os partidos populistas e de extrema-direita com o perfil do Chega são muito centralizados no líder, faz parte. Com o crescimento do Chega, ou seja, o Chega vai ter ou tem mais deputados, vai ter necessidade de ter mais quadros, eventualmente vai ter mais eleitos nas autarquias e espalhar-se pelo país. Como é que o líder controla um partido cada vez maior? Continua a conseguir controlar? Há uma estratégia para isso?
Sim, quer dizer, o poder ajuda. Em dezembro de 2021, o Chega estava com muitos problemas internos. Uns meses antes podia ter entrado em guerra civil e a queda do governo socialista foi a melhor prenda que lhe podiam ter oferecido. Eu não estou a dizer se foi legítimo ou não. Não sou político e, portanto, faço análise jornalística. A verdade é que aquele momento é um momento muito importante, porque numa altura em que André Ventura tinha imensos problemas internos e já havia gente, como se costuma dizer, completamente sem freio. O cheiro de poder, e o cheiro de umas novas eleições poderem dar finalmente um grupo parlamentar ao partido, foi absolutamente decisivo para agregar. E foi a partir daí que foi agregando cada vez mais. Portanto, agora estamos a falar - naquilo que são as suas grandes estruturas e dos militantes mais fiéis - de um partido de fanáticos. Não digo que são todos, mas de um partido de fanáticos que não faz grande reflexão e não tem propriamente pensamento próprio. Eu faço uma distinção muito importante e eu acho que ela deve ser feita cada vez mais e é um papel também que nos cabe a nós. Eu não confundo a direção e o aparelho político do Chega, com os seus eleitores. Eu tenho muito respeito por muitos eleitores do Chega. Mesmo muito respeito. E alguns deles tiveram muita coragem em falar comigo para este livro. Eu percebi e compreendi, na senda da Hanna Arendt, muitas das razões pelas quais as pessoas foram parar ali. E eu acho que temos todos que fazer um esforço para não confundir o que está no topo do Chega com aquilo que é o sentimento do seu eleitorado mais básico, dos seus militantes mais de base. Não estou a falar das estruturas. E este é o primeiro partido que rompe com aquilo que são os partidos tradicionais. Se tu és militante ou eleitor de um partido tradicional, tu reconheces que tens 70 ou 80% daquele arco ideológico. Sempre foi assim, até o PRD foi assim. E podes não gostar do líder Y ou do líder X. Podes não gostar deste ministro ou daquele, mas reconheces que tens 70 ou 80% daquilo. O Chega é o primeiro partido a romper com tudo isto. Vamos imaginar que André Ventura é o chefe de um restaurante e tem uma ementa que a toda gente conhece de 10 causas: anti-imigração, anti-comunidade cigana, etc. O militante do Chega, o eleitor do Chega…
Só come dois pratos.
Exatamente. Vai lá como se escolhesse bacalhau ou escolhesse cabrito. E eu encontrei muitos militantes do Chega, muitos militantes e ex-dirigentes, que detestam o discurso que ele faz sobre a comunidade cigana. Não concordam com ela sequer. Mas se lhes falares de imigração e se lhes falares de educação sexual nas escolas, a coisa já é mais grave. E ao contrário também. Portanto, é tudo muito complexo, as pessoas não estão nada preocupadas se, daqueles 10 temas, só gostam de 4 e os outros não lhes interessam. Escolhem aqueles 4 porque é o André que fala deles. E, portanto, isto também é um problema para quem, quotidianamente, precisa de acompanhar este partido e precisa de escrutiná-lo.
Estás à espera que muita gente te diga que tudo o que escreveste é mentira?
Não, de todo. Posso facilmente desmontar.
Foi fácil chegar às pessoas dentro do Chega ou que estiveram dentro do Chega? Foi fácil convencê-las?
Há pessoas que não. Há pessoas que me viraram a cara num primeiro momento e eu consegui entrevistá-las um ano e tal depois. Posso dar este exemplo, que é engraçado: havia gente que, no início, me insultava nas redes sociais e fazia trocadilhos, inclusive com o meu nome. Numa ocasião, pelo menos um desses dirigentes que fazia esses trocadilhos com alguma frequência, tomei a iniciativa - num evento do Chega - de ir ter com ele e estender-lhe a mão e dizer-lhe “eu sou o Miguel Carvalho”. Ele ficou completamente à rasca. E antes que ele respondesse, eu disse-lhe “vamos tomar um café”. Cinco minutos depois, aquele homem, antes que eu dissesse alguma coisa, estava a pedir-me desculpa. Disse-me “Miguel, desculpe lá, sabe que às vezes a gente, para mostrar ao chefe que também apoia a causa, excede-se” e não sei o quê. E agora eu pergunto-te, Nuno, a quem é que tu achas que um ano depois, quando ele se chatear com o Chega, ele vai dar a informação que tem? Isto demora muito tempo e é uma coisa que o jornalismo de hoje não permite. A espuma dos dias não permite. E, portanto - tirando algumas pessoas a nível diretivo - nunca tive nenhum problema nos congressos do Chega. Pelo contrário, as pessoas recebem-me bem, as pessoas falam comigo. Às vezes podem dizer ”epá, aqui não, venha ali comigo falar ao café”. A última vez que olhei para os contactos que tinha no Chega, eram cento e tal, entre os que saíram e os que estão, do topo até ao peão, como se costuma dizer. E, portanto, estou absolutamente tranquilo.