Américo Aguiar pede aos "que têm pé atrás" para darem "benefício da dúvida" à JMJ
Presidente da Fundação JMJ e futuro cardeal percebe alguma da indignação com gastos, mas pede "que cada um se expresse e se manifeste respeitando uns e outros". Américo Aguiar, à TSF, lembra que Estado "disse sim" ao apoio e que "não se deve baixar a guarda" no escrutínio.
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Número de participantes, gastos, abusos sexuais de menores por membros da igreja e o seu futuro: temas em cima da mesa para uma pequena conversa com Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa, futuro cardeal da Igreja Católica e presidente da Fundação JMJ. Muitas mais perguntas e repiques havia a fazer, mas os dez minutos cedidos à TSF estavam a contar e eram para ser cumpridos à risca, à semelhança do que aconteceu com outros órgãos de comunicação social.
Antes do arranque oficial da Jornada, Américo Aguiar pede o "benefício da dúvida" a todos aqueles que têm o pé atrás sobre esta iniciativa e quando questionado se não devia haver, no mínimo, uma reflexão durante a jornada sobre o escândalo dos abusos, o bispo diz que a iniciativa foi "catalisadora" do que se apurou e da mudança que é preciso fazer.
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É uma das figuras, não só do momento, mas do ano: bispo auxiliar de Lisboa, futuro cardeal da Igreja Católica, presidente da Fundação JMJ, Américo Aguiar. Não resisto a fazer-lhe uma primeira provocação: tem dormido nesta fase final ou há alguma coisa ainda a tirar-lhe o sono?
A única preocupação é mais aquilo que possa significar a participação dos espanhóis, por incrível que pareça. Ou seja, se os espanhóis acordarem bem-dispostos nestes dias, nem a padeirinha de Aljubarrota nos salva. Tirando isso, não. As inscrições estão dentro dos parâmetros que tínhamos desenhado, estamos entre Cracóvia e Madrid, ou seja, entre os 360 mil e os 400 mil inscritos propriamente ditos. Participantes é outra coisa, porque qualquer pessoa pode participar, não tem de se inscrever, não tem de fazer nada e por isso é que nós falámos no milhão, milhão e 200 mil. Tirando isso, até ao contrário do que é costume em aflições organizativas no nosso país, está tudo no calendário, tudo no tempo. Os jovens estão a começar a desembarcar em Lisboa, mais de 100 mil estiveram espalhados pelo país naquilo que são os dias das dioceses, celebraram, encontraram-se, conheceram Portugal e os portugueses, a gastronomia, a cultura, a religião. Já está a ser uma festa e, portanto, o que eu peço a todos os ouvintes é que abram o coração, disponibilizem-se, deem a dúvida, vivam a jornada e depois, para a semana, fazemos balanços.
Não ficou aquém o número de inscritos? Ao longo dos últimos dias e das últimas semanas fomos acompanhando, em algumas paróquias, onde esperavam que chegassem grupos maiores. Não ficou, de alguma forma, aquém ou também jogamos aqui com um pouco de psicologia invertida, de "vamos apontar ainda mais para cima, que é para depois correr tudo bem"?
O problema de todas as jornadas tem que ver com a gestão das expectativas. Dou o exemplo dos dias das dioceses e da participação nos dias das dioceses que nós chamámos a pré-jornada: os grupos inscrevem-se, ou não, diretamente com as dioceses ou diretamente com a organização, mas nós não temos controlo desses grupos nem dessa presença. Nós chegámos a Braga e temos dezenas de milhares, chegámos ao Porto e estão dezenas de milhares, temos Coimbra com dezenas de milhares... E depois as dioceses também foram oferecendo o seu portfólio, as suas disponibilidades e digamos que, a certa altura, houve aqui a lei do mercado, da oferta e da procura, mas tivemos o gosto de ter jovens estrangeiros em todo o país. Mas eu, em todo o país, ouço o que está a dizer... Algumas dioceses ou paróquias que se tinham preparado para receber mil e só receberam 500, mas depois há o outro lado da moeda: alguns tinham preparado para 2 mil e tiveram 5 mil. Isto, no fim, as contas acertam-se, é sempre uma gestão das expectativas.
Quanto aos inscritos, estamos dentro do intervalo, porque a Jornada de Madrid teve 400 mil inscritos, isto é um número esmagador, quer na dimensão da Igreja espanhola, da Espanha propriamente dita, e estamos a falar de 2011. Eu dou-vos o exemplo do Panamá, o Panamá teve 90 mil inscritos, nós estamos entre os 360 os 400 mil, vamos ver até onde é que o número pode evoluir até ao encerramento da jornada, que é outro problema: as inscrições só encerram no dia 6. Não ajuda muito logisticamente. Nós estamos dentro dos intervalos, estamos dentro das expectativas e o que pedimos agora é que as pessoas usufruam daquilo que será uma festa dos povos, uma festa da juventude do mundo inteiro. Peço que aqueles que têm o pé atrás, que são negativos, que não concordam, que deem o benefício da dúvida, vai ser uma coisa muito importante, muito positiva e que vai marcar, assim o desejamos, o coração e a vida da juventude do mundo inteiro. Que a partir da jornada de Lisboa, regressem aos seus países, regressem às suas vidas e vão tomar decisões importantes para a sua vida com a marca de Portugal e com a marca de portugueses.
Nós temos jovens de todos os países do mundo, falta aquela coisa das Maldivas... Mas já chegaram jovens da Coreia do Norte, do Chipre, do Butão, de países que nunca participaram em Jornada Mundial da Juventude nenhuma e que agora se sentiram atraídos pelo convite do Papa Francisco, pela marca Lisboa, pela marca Portugal. E aqui estão eles, vamos recebê-los em festa.
Vejo que o otimismo continua lá em cima... Acha que, de alguma forma, a Igreja falhou ao explicar a importância da jornada à sociedade portuguesa?
Sim, isso é o meu pecado. Já disse que devia ter sido mais competente naquilo que foi esse trabalho que, em alguma geografia, pode não ter acontecido. No entanto, eu também tenho a imagem um bocadinho diferente, percorri todo o país: norte, sul, interior, litoral, continente e ilhas, o Portugal real. E o Portugal real é diferente do Portugal mediático e é diferente para melhor. Nós somos um povo espetacular. Tive oportunidade de ir ao Corvo, Santa Maria, Flores, Bragança, Viana do Castelo, Algarve, Coimbra, Guarda, Viseu, todo o território português, tive oportunidade de visitar, de estar e de celebrar. A ideia que eu tenho e o testemunho que recebi é de empenho, dedicação, de entrega e de alegria pela Jornada Mundial da Juventude. Outra coisa tem a ver com a liberdade de expressão de homens e mulheres que sentem de maneira diferente, que o expressam, que eu respeito, e o que eu peço é que deem o benefício da dúvida, vivam a jornada e depois fazemos os balanços.
E no Portugal real cabemos todos, não é? E, portanto, falando de alguns, desde logo alguns partidos políticos e outros agentes da sociedade, como seria sempre de esperar, há críticas relativamente aos gastos, sobretudo numa altura de crise e nomeadamente os gastos que são feitos pelo Estado. Aquilo que lhe pergunto é se, pelo menos, percebe essa indignação?
Percebo completamente. Eu sou filho deste povo, somos irmãos e, portanto, a língua é a minha, o sentimento é o meu, estamos sincronizados. Quanto a isso não tem problema nenhum, peço é que cada um se expresse e se manifeste respeitando uns e outros, sempre. Vamos lá ver uma coisa, nós vivemos num Estado laico e um Estado laico é um Estado que não tem religião, mas é um Estado que proporciona aos seus cidadãos a livre vivência da sua religião. A Igreja Católica consultou o Estado para a Jornada Mundial da Juventude e o Estado português disse que sim: a Presidência da República, o governo de Portugal, as autarquias, a esmagadora maioria daquilo que é o espetro político-partidário português, disseram que sim. Desse sim resultou um empenho e um investimento que, segundo a PwC, terá um retorno x vezes mais... Nem vamos discutir isso, não é a minha área, que eu sei de missas e nem muito... Mas, portanto, há um retorno económico e financeiro para o país. O que eu peço é que sempre que alguma instituição, alguma religião ou algum grupo de cidadãos tem um projeto, tem uma iniciativa, e pede ao Estado que o ajude a concretizar, o que peço como cidadão é que quem de direito avalie e, com toda a liberdade, o apoie se a conclusão for essa... Tanto seja católico, não católico, tanto seja de uma sensibilidade como seja de outra, isto é democracia e são 50 anos de um regime que eu acho que é adulto e maduro. O que é preciso fazer é não baixar a guarda daquilo que é o escrutínio, como é óbvio, no Parlamento, nas assembleias municipais, nos vários órgãos de acompanhamento e execução destas áreas. Temos recebido, aqui na sede, os líderes de quase todos os partidos, de instituições de controlo e de escrutínio destas coisas, e o que eu tenho sentido é um empenho, uma dedicação e uma entrega, mas cada um no uso das suas jurisdições e funções, com seriedade a avaliar o que está a ser feito. O que é importante é que se faça, que se faça bem, que se controle, que se acompanhe e que seja exemplar.
Mas não lhe parece excessivo ver autarquias a gastar, numa altura destas de crise, dezenas de milhares de euros em propaganda? Ter um instituto público, por exemplo, numa oferta, que é discutível, mas numa oferta para o Papa que é uma caixa de madeira que custa 3.500 euros... Acha que isto é compreensível ou não lhe parece excessivo de alguma forma?
Não vou fazer juízos sobre coisas que não conheço diretamente. O que eu posso dizer é o seguinte: se me dissessem que estes valores ou estas decisões, se não fossem tomadas, se a Jornada Mundial da Juventude não acontecesse, nós podíamos resolver problemas de Portugal e dos portugueses de uma maneira imediata... Ora, isto é populismo, não é verdade, infelizmente, isso não aconteceria. Portanto, temos aqui um evento, um acontecimento que é importante, na nossa ótica, que foi validado pelo Estado, pelos órgãos eleitos democraticamente no Estado português, vai acontecer com empenho, dedicação e entrega, com a minha gratidão a Portugal e aos portugueses na sua generalidade, com o meu respeito por aqueles que pensam diferente. E agora o que eu convido é que todos, todos, abram o coração, vivam a Jornada e façamos as avaliações no final.
Não o posso deixar de ir embora sem uma última questão e aproveito para colocar de forma mais ampla porque o nosso tempo está a acabar. Uma é se a JMJ - e face às críticas que têm surgido - não deveria ser, no mínimo, um espaço de reflexão sobre a temática dos abusos na igreja, no mínimo um espaço de reflexão lembrando as palavras do próprio Papa Francisco de que pedir perdão não é suficiente. Depois, sobre si, o que é que vai ser daqui para a frente? Agradaria essa ideia que já muito falam, pelo menos em corredores, de Américo Aguiar, enquanto cardeal, a organizar jornadas adiante?
Sobre a questão dos abusos de menores, dizer o seguinte: a jornada já teve um papel catalisador naquilo que foi a caminhada da igreja em Portugal. É muito importante a decisão da criação da Comissão [com o] Pedro Strecht, do relatório da Comissão Independente, do trabalho das comissões diocesanas, da criação do grupo Vita, tudo isto aconteceu num contexto de calendário da jornada e eu acredito profundamente que a jornada serviu de catalisador para isso mesmo. A jornada é um encontro, um evento e um acontecimento que vai muito para além do calendário. Ou seja, a jornada tem 30 anos e tem uma dinâmica própria e aquilo que fez e que vai fazer e continuará a fazer, no âmbito do abuso de menores e no âmbito desta problemática, está a acontecer e vai continuar a acontecer. Nós não podemos deixar de dar graças a Deus e de felicitar aquilo que significa a situação de hoje e do passado, hoje as vítimas estão no local devido, a consciência de que a dor não prescreve, de que as feridas cicatrizam com dificuldade, que a transparência deve ser total, que a tolerância é zero, que temos de criar condições, na Igreja e na sociedade em geral, de confiança para que definitivamente isto não volte a acontecer... Tudo isto aconteceu no contexto do calendário da jornada, damos graças a Deus, por isso e por tudo aquilo que acontecerá e terá de acontecer para que o caminho seja respeitoso em relação a quem não devia ter vivido estes acontecimentos e que, infelizmente, viveu.
Quanto a este vosso amigo, no dia 7 de agosto espero respirar fundo porque a jornada, entretanto, terminou, o Papa já está em Roma... Eu sou escuteiro, estou sempre alerta, fui ordenado padre a 8 de julho de 2001, nesse dia as minhas vontades ficaram lá, a partir daí o que me motiva é Cristo vivo. Portanto, vou estar disponível, a mala está pronta, o saco-cama está embrulhado, o cantil tem água e, portanto, seja qual for a geografia, seja qual for o desafio, o Santo Padre diz: "agora, o Américo vai fazer não sei quê, não sei onde". E aqui vou eu cheio de alegria.
Mas agradar-lhe-ia essa missão?
Organizar jornadas? Perguntado hoje, seria martirial.