Compensações às vítimas de abusos sexuais. “Não somos uma igreja rica, mas não vai faltar o que é preciso”
O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, entrevistado na TSF por Manuel Vilas Boas, afasta o cenário de bancarrota, após pagas as compensações às vítimas de abusos sexuais na igreja católica, em Portugal. E fala do que está a mudar na igreja, com o recente Sínodo dos Bispos
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D. José Ornelas, permita-me saber das diferenças de temperatura entre Lisboa e o Vaticano. Como líder dos bispos católicos de Portugal, em que conta é que o Papa Francisco tem os bispos portugueses? Fiéis, obdientes? Ainda este ano estiveram em visita ad limine em Roma, no Vaticano....
Para falar de temperaturas, eu tenho um termómetro só de cada vez porque só vivo num lugar de cada vez. Quando estou cá, sinto a temperatura do Papa e da nossa igreja, e não tenho dúvida no meio dos bispos portugueses, o Papa é o nosso, aquele que nos coordena em nome de Deus e aquele que preside à caridade da igreja e por isso mesmo não tenho a mínima dúvida, o país e os portugueses estão com o Papa, mas não estão simplesmente nem por conveniência e obediência, mas estão por sintonia de ser igreja. Isso não tenho dúvida. Quanto aos bispos em geral, e aos padres, claro que há vozes críticas e algumas até não muito abonatórias para as pessoas que defendem as teorias delas, mas são pessoas que têm o seu direito de expressão. Mas não são de modo nenhum, na minha opinião, uma maioria. São uma minoria.
Mas é verdade que o Papa Francisco cria anticorpos?
Quem quer que seja claro a falar, e que procure a verdade, vai criar problemas. O nosso fundador, Jesus, sabe bem disso e fez bem a experiência do que significa dizer a verdade, procurar a verdade e procurar a justiça. E que “desacomodar” pessoas dos seus ambientes e da sua comodidade, nem sempre cai bem. Agora, que este Papa tem, a meu ver - não só ao nível da comunidade cristã, mas ao nível da comunidade cristã católica - uma popularidade e suscita um entusiasmo grande que fez um grande bem à igreja, não tenho a mínima dúvida.
O que é que está a ser feito para que o êxito alcançado na JMJ (Jornada Mundial da Juventude) de Lisboa, não se perca? Que tipo de pastoral juvenil é que está a ser inventada entre nós?
A JMJ foi, sem dúvida, uma realização única para o nosso país, não só a nível da Igreja Católica, mas do país em geral. Além disso, também para os nossos jovens, foi uma experiência única. Muitos tinham-na vivido fora, mas viver bem e vê-la com entusiasmo que se provocou - não só em Lisboa - para mim foi mais significativo o impulso e o sentimento que gerou pelo país fora em todas as dioceses e em pessoas que mesmo não sendo católicas, vibraram com este acontecimento. Isto é uma coisa importante mas o que se segue não vai ser uma continuação do mesmo tom, porque não é assim a vida do dia a dia.
Aquilo foi festa...
Foi festa e muito boa e saiu muito bem. Bem organizada com o esforço de toda a gente, de tanta gente e das autoridades e de todo o país. E sem dúvida que isso ficou nos ouvidos de todos. E no Sínodo, uma das coisas que que se ouviu - e também na visita ad limine que você disse há pouco - o Papa ficou encantado. Aliás, ele disse-o aqui, nunca tinha visto uma JMJ tão bem organizada e tão querida. Houve outras com maior participação, mas não é isso quando conta. Aquilo que se fez, acho que foi muito bom.
Agora, o que se segue agora com os nossos jovens? Não se vai viver só disso. Agora deve-se aproveitar o impulso que foi recebido entre os jovens, e que agora tem de ser tocado com outras melodias e com outros tons, porque trata-se de transpor para a vida do dia a dia aquilo que que foi o fundamento...
Tem que inventar outra música!
Não é inventar outra, é tocar a mesma, mas com outros tons e com outros ritmos, porque o ritmo do dia a dia, o ritmo daquilo que estamos a fazer para animar as paróquias, as dioceses, as regiões, o país, alguma coisa se fez. Por exemplo, mesmo mesmo esta realização mês de Outubro em Lisboa, a celebrar um ano (da JMJ), foi muito interessante porque estiveram representantes de todo o lado. Não era para repetir e evidentemente é impossível repetir a do ano passado. Mas a chama não se apagou. E eu digo da minha diocese, que o que nós estamos a fazer é precisamente criar e manter a rede que se criou entre todas as paróquias para que os jovens, porque isso só se faz enxame com muitas abelhas e que a gente seja capaz de se reunir para viver aquilo em que acreditamos e programar um futuro em que os jovens têm direito de sonhar.
Porque é que a maioria das igrejas portuguesas estão vazias? Quais são as verdadeiras causas desta debandada?
As causas são muitas. A primeira é que nós já não vivemos num ambiente de cristandade e não me deixa saudades em que tudo era monocórdico e tudo o que estava pré-programado. Na minha terra 99% de pessoas da minha freguesia, da minha paróquia, iam todos os domingos, a não ser que estivessem doentes. Agora, isso já não é assim hoje. Mas eu não tenho saudades desse tempo. Não por causa dos números, porque a fé nunca foi uma questão de números. Vou contar-lhe uma história. Numa ocasião, quando era superior geral dos padres dehonianos, visitando a Indonésia, estávamos a falar da diminuição de fieis no norte do planeta e do aumento significativo no sul. E eles diziam-me “Ah, então quer dizer que vocês mandaram-nos para aqui um produto já fora de prazo que já não serve na Europa”. Eu respondi “Olha: para já, nós na Europa ainda temos uma percentagem maior que vocês, de cristãos. Todas as vossas confissões cristãs juntas são 3% da população. O resto são muçulmanos. No entanto, vocês são uma igreja altamente significativa no vosso país, não só pelos serviços que fazem - têm 30% da educação, têm 20% do do sistema de saúde, têm uma credibilidade de qualidade dos serviços que prestam ao vosso país, que eu gostaria de ter uma igreja assim, viva como vocês são”. Talvez nós, na Europa, tenhamos de voltar a ser, não a igreja “senhora do passado”, mas a igreja que realmente vive e sabe o que é ser um pequeno rebanho, que Deus ama, e que precisamente por isso, também faz trocos de amor e de atenção e de carinho que a sociedade precisa.
Sobre a questão que mais terá traumatizado a Igreja portuguesa nos últimos séculos: os abusos sexuais do clero a menores e a adultos vulneráveis. Como sabe, estão em causa 53 pedidos de compensação financeira às vítimas. O prazo para essa compensação foi prolongado até ao final de Março de 2025. Porque é que foi feito esse prolongamento? Há alguma vantagem nisso?
Respondo às duas partes da questão. A primeira, sobre sobre o drama dos abusos. Não tenho a mínima dúvida. É uma tragédia grande e não podemos fechar. Ninguém pode fechar os olhos a ela. Ontem falávamos do violência doméstica e da violência contra as mulheres. E tudo está ligado a isto, a uma sociedade que não tem respeito pela dignidade e que não tem rebuços em infligir sofrimentos e deixar pesados problemas às pessoas. Foi por isso que nós nos pusemos em campo. Era preciso enfrentar este problema com todas as questões que tinha e os trabalhos que dá, mas era preciso e é preciso não só na Igreja, mas no país e no mundo, enfrentar esta questão. Quanto ao detalhe de prorrogar por 3 meses: é uma questão muito simples. É dar oportunidade e a única razão foi essa. Dar maior espaço para as pessoas que não chegaram tão depressa. O calendário só se abriu dois meses depois de ter sido anunciado, e portanto, foi para dar um espaço maior para quem ainda queira aproximar-se desta mão estendida. Claramente, isto não é para nem para empurrar com a barriga, nem para esquecer ninguém. Não vai prolongar o período de espera, porque, entretanto, já se vão ir dando os passos necessários para chegar à solução que é a que se quer. E além disso, se houver algum caso que esteja para além disso, já está previsto no regulamento que vão ser casos específicos que apareçam depois do 31 de março de 2025. A Igreja ficará sempre disponível para atender outras vítimas.
As dioceses e os institutos religiosos já reuniram os fundos financeiros necessários para esta operação?
Nós decidimos fazer e vamos fazer. E fazê-lo juntos. Têm-se dito tantas coisas... Mas, olhe: uma das coisas que me dá satisfação é que nós não partimos todos do mesmo ponto e cada passo que damos somos diferentes. Podemos ter perspetivas diferentes, mas depois encontramos soluções de conjunto. Isto dá uma grande satisfação. É como igreja que queremos fazê-lo e por isso, vamos fazer juntos. Para que ninguém fique incapacitado, ou fique impedido de receber aquela compensação que será determinada para tal.
O Grupo Vita foi melhor solução que a anterior Comissão independente? Sabe-se que alguns membros da Comissão Independente saíram muito zangados com a Conferência Episcopal.
Bom, eu tenho com todos eles uma relação que foi muito forjada.
Sim, mas talvez não tenha ido ao confessionário...
Não, eles não precisavam de ir ao confessionário, porque nós falamos abertamente de tudo e acho que tenho com todos - às vezes posso não ter tempo de responder a todos de imediato - uma gratidão muito grande. Quanto às duas comissões, a Comissão Independente e o Grupo Vita. Não tenho de fazer comparações. Qual foi a melhor, qual foi a pior? Não! São duas comissões diferentes, com objetivos diferentes e metodologias diferentes, para etapas diferentes de um problema que está em resolução.
Não se arrepende de ter instituído, por exemplo, a Comissão Independente...
Nenhuma delas, não senhor! A Comissão Independente tinha de ser independente e tinha de ser assim. Aliás, também na mesmo irreverência que têm, porque nós não queremos levar as coisas com em paninhos quentes para continuar ambiguidades que não servem. Aquilo que foi dito e que foi feito, foi, de facto, um soco no estômago de todos. Não só da Igreja, mas deste país, era necessário para acordar-mos, e para todos vermos que isto não pode acontecer. É preciso criar uma cultura diferente e a dor destas pessoas não pode passar ao lado e nos chocar. Ainda bem que nos choca. Quer dizer que ainda estamos acordados e temos consciência. Portanto, foi um estudo, feito com o anonimato próprio do objetivo. E o Grupo Vita vem a seguir, para uma outra fase, que é a fase de cuidar dessas pessoas. Nós não ficámos simplesmente a estudar as coisas, mas já demos e estamos a dar apoio a muitas dezenas de pessoas com consultas, com apoio psicológico, etc... E também aquilo que se faz agora com a compensação para ir ao encontro delas. Não é que sejamos muito ricos. É que, independentemente do montante que estiver à disposição, é para dizer: “nós reconhecemos que vos foi feito mal e que foi feito muito mal. Não enjeitamos. Também não foi em nome da Igreja que o fizeram, mas foi dentro da Igreja e isto custa-nos muito, e é importante que a Igreja também ela faça esse ato de penitência e de verdade”. Ou seja, dizer, nós reconhecemos o mal que vos foi feito e que não deveria ter acontecido.
E no final desta operação, a Igreja Portuguesa correrá o risco de bancarrota, como aconteceu em dioceses dos Estados Unidos e da Austrália, por exemplo?
A igreja portuguesa não é rica. Eu sei da minha diocese que está no vermelho
Aliás, há quem dizga que muitas das dioceses estão em falência técnica.
Sim, nós não somos uma Igreja Rica. Mas eu acredito que, para isto, não vai faltar o que é preciso. Para que estas pessoas possam receber um sinal de reconhecimento e de arrependimento do mal que lhes foi feito.
Sobre o Sínodo. O senhor esteve lá. Háuma questão velha dos sínodos, mas que se tornou nova pelas mãos do Papa Francisco. 350 participantes no Vaticano, e desses, 80 eram mulheres. Se me permite, o que é que faziam 80 mulheres no Vaticano?
Vai perguntar o que é que faziam os outros duzentos e tal?
Normalmente, não há 80 mulheres no Vaticano...
Pois não! É bom que se vão habituando a ver saias à volta das batinas. Uma das coisas que se nota no Vaticano, de facto, é uma maior presença de mulheres e de leigos, onde se tomam decisões. Mas vamos lá ver: o Sínodo continua a ser o Sínodo dos Bispos. O sinal que se quer dar é este: os bispos não podem decidir sozinhos. Os bispos têm de ser como pastores.
Finalmente, começa a perceber-se isso...
Escuta, talvez não se dêem conta, mas também os outros de fora não se dão conta daqueles que se dão conta. E talvez a Igreja não esteja assim tão mal como isso. Mas agora que mesmo no Vaticano que se encontra já uma diferença enorme, sim! Nós notámo-lo na nossa visita ad limine, na forma como fomos tratados. Como irmãos, e até com perguntas para conhecer a nossa realidade e para nos ouvir, e isso vem do processo sinodal. É para entender que aquilo que prevê este Sínodo e o documento final que dele saiu e que o Papa aprovou ali – e disse ”vocês aprovaram número a número e eu aprovo e assino, e mando publicar para devolvê-lo ao povo de Deus que foi ali que começou.
Isso é uma exceção!
É uma exceção, porque normalmente o Papa recebe as votações e sugestões do Sínodo e depois faz uma instrução. Ele disse: não, a instrução está aqui. O próprio Sínodo é uma instrução, porque o que o Papa diz não é um documento. Nós estamos aqui para criar uma escola nova de igreja. Não é uma igreja nova que estamos a criar. Estamos a renovar e a voltar à à essência da Igreja.
Mas ia a dizer eu ia a dizer que o Papa Francisco não é propriamente o Vaticano...
Mas é que o Vaticano também tem de mudar, porque um dos 10 pontos que está em estudo questiona como é que a sinodalidade vai tocar pontos da Igreja. Por exemplo, como é que a questão da autoridade na igreja dos bispos nos ministérios, a questão das Conferências Episcopais. Portanto, qual é o papel desta Igreja? Uma igreja sinodal nos religiosos e nas religiosas que deram a contribuição e continuam a dar uma contribuição espantosa para a missão. E que como é que eles fazem parte de cada igreja local? E de como é que este carisma e os leigos dentro da Igreja, que é a questão da autoridade, que tudo foi sendo assumida pelo pelos ministérios ordenados, bispos e padres que nós não temos. Depois, temos andado a correr de um lado para o outro, porque há coisas que nós fazemos que não era preciso que fôssemos nós a fazer, nem era de competência nossa. Tudo isto pode e deve mudar a Igreja. Foi por isso que o Papa disse ”o Sínodo começa amanhã”. Alguns ficaram desapontados porque não se falou do sacerdócio das mulheres, nem do diaconato das mulheres, nem dos padres casados, etc....Nenhuma destas questões saiu de cima da mesa, mas claro que não estavam maduras, nem se sentia a possibilidade fundada e estudada de opinar para dar uma sugestão ao Papa neste sentido. Isto não é para empurrar com a barriga. Temos uma comissão para apresentar sugestões até 25 de junho de 2025, e depois serão o Papa e eventualmente Sínodos seguintes.
Isso vai supor muita paciência por parte dos leigos na igreja, por parte de muita gente. Deixe-me citar um teólogo e escritor que esteve aqui na semana passada, o Tomás Alik, da República Checa, que ousou dizer que pede um milagre para mudar a mentalidade de alguns clérigos. É assim tão grave a doença dos clérigos?
A doença dos clérigos, de alguns clérigos e de alguns leigos, porque há também há leigos que são mais clérigos que foram os padres. Não me assusta. Você diz que os leigos têm de ter paciência. Todos temos de ter paciência neste sentido: o Reino de Deus, de Jesus, quando lhe perguntam: “então, quando é que chega este Reino de Deus?”.
Ele disse: “o Reino de Deus já está aí no meio de vocês. Vocês têm de fazer acontecer o Reino de Deus”. Este que o Papa diz, ao mandar o documento diretamente para o povo de Deus, diz que as intuições fundamentais estão aqui. Agora, temos todos pôr isto a trabalhar e não é simplesmente “sejam obedientes aos bispos que eles vão levar lá”. Não, vocês têm de trabalhar com os bispos e têm de resolver as coisas também. Esta questão que disse o Alik, sobre os que não são simplesmente uma turma de gente às ordens do Bispo. Para ele, se calhar, ainda lhes perguntam o que eles pensam, mas depois manda-lhes fazer aquilo que ele pensa. Não é isso que é preciso quando se fala de uma igreja que é feita de batizados, onde todos têm o Espírito Santo. Não quer dizer que todos têm o mesmo e que estão ao mesmo nível de fazer as coisas. Mas precisamos das diversas funções como em qualquer organismo vivo para que realmente possamos transformar esta igreja. Eu não tenho medo! Tenho muita coragem para fazer isso, e isso dá trabalho. Mas é algo que nós temos de mudar na mentalidade das pessoas, que vai haver sempre gente que fica para trás. Eu gostava que não ficasse ninguém, mas a Igreja vai avançar e eu tenho. confiança que sim. Na minha diocese, vejo sinais disso.
O Papa disse há uma semana que os leigos não são tropas auxiliares do clero. É uma expressão muito forte, mas na falta de padres no continente europeu, os leigos católicos vão ser chamados a fazer batismos, casamentos e funerais. Quando é que isso vai acontecer?
Já está a acontecer.
Em França, como sabe, há 50 anos que os legos fazem pelo menos funerais.
Vá aqui às dioceses do sul, de Castelo Branco, de Coimbra. Também na minha diocese, tem leigos que presidem a funerais. Tem leigos que presidem à celebração dominical quando não há padre, e isto é comum nas igrejas missionárias. O problema é que nós, aqui no nosso contexto das igrejas de tradição cristã, que não é mal nenhum ser uma igreja que tem 2000 anos. Mas é preciso saber que essa igreja não tem de parar no passado, mas tem de avançar. E isso isso agora significa que nós, no tempo da Cristandade entre aspas, os clérigos foram assumindo cada vez mais responsabilidades e funções que não são próprias deles. Podem ser muito bem feitas e devem ser feitas por leigos, e o padre não têm de correr de um lado para o outro, para celebrar simplesmente missas como se a questão da Igreja fosse simplesmente celebrar missas. E depois, não tem tempo para estar com as pessoas e para reunir com eles para decidirem as coisas e pensarem as coisas juntos, etc... É esse ipo de igreja que é preciso mudar. É preciso que cada um se sinta na Igreja como em sua casa. Na Coreia, para onde vão agora os símbolos da JMJ, durante 200 anos - quando se fala de paciência na história da igreja, tantas vezes é preciso contar séculos, séculos - durante 200 anos foram perseguidos, têm mártires constantemente mas foram leigos. Os padres, quando chegava algum missionário rapidamente era descoberto e era suprimido. Esta gente foi uma igreja de leigos durante este tempo todo, e surgiu uma igreja brilhante como nós temos hoje, portanto. Eu não sei quando é que isto vai dar fruto. Mas vou continuar a semear.
O que é que se passa no continente africano para as igrejas católicas estarem a transbordar de participantes com liturgias a demorarem algumas cerca de 3 horas? Os padres, nos seminários, sobreabundam ao ponto de virem ser párocos em dioceses de Portugal, como é o caso de Braga e Lisboa.
As igrejas estão cheias, onde é possível.
Sim, por exemplo, eu falo de Moçambique, de Angola...
Sim, de Angola e tantas outras em tantos outros países. Mas é onde é possível. Porque você sabe que em África, veja lá agora com esta crise do Boko Haram, com a questão em Moçambique, no norte de Moçambique, quando tantas vezes são igrejas perseguidas, mas são igrejas de tradição recente, missionária e isso faz uma diferença enorme. Uma igreja missionária é uma igreja que não olha tanto a rubricas e a isto e aquilo, mas olha aquilo que é o essencial da fé, a viver da fé e agir na fé. São igrejas perfeitas? Não são. Eu vivi nessa igreja, olhe, podia citar-lhe uma frase do D. Manuel Vieira Pinto, de Nampula, em 1972.
Eu estava lá também.
E você deve lembrar-se do discurso deles aos seminaristas. Ele dizia que queria uma igreja que não fosse só uma igreja em que os padres mandam e os leigos executam, mas que seja uma igreja em que todos os cristãos, todos os batizados, tenham coragem de falar, tenham o direito de falar, de propor, mas ao mesmo tempo também se comprometer para esta igreja. Isto é uma igreja que se vive porque são cristãos. E aquilo que eu vi lá, e quem conhece este tipo de igreja missionária, vê exemplos concretos do que vai passar-se aqui. Mas não pode transpor isto para aqui. Não pode transpor-se assim, porque culturalmente os africanos têm celebrações de 3 horas e não se cansam, porque eles dizem frequentemente, pelo menos na tradição - nas grandes cidades, essa cultura já vai desaparecendo - mas na cultura tradicional, eles diziam sempre uma das coisas que eu ouvi muitas vezes: “vocês europeus têm relógios, nós temos o tempo e o tempo é para se viver”.
Mesmo que seja a dançar!
E é a dançar. Uma procissão do ofertório numa igreja em África, é capaz de demorar tanto como uma missa de semana aqui entre nós. E isso assim, a procissão da palavra, etc... E vive-se as emoções também com o corpo. O dançar para nós parece tradicionalmente até uma coisa obscena, sobretudo se não fosse para fazer na Igreja. Como a cultura determina tantas coisas, o ser da não é uma questão melhor nem pior. Foi uma guerra adaptada e que, graças a Deus, os missionários tiveram a coragem de talhar, de anunciar o evangelho com outros gestos, com outras palavras e com outra cultura.
Deixe-me fazer-lhe esta pergunta direta: qual é a maior urgência da Igreja Católica que está em Portugal? Falemos de urgências, não as que são transportadas pelo pelo INEM.
Esta sessão sinodal dá-nos inspiração para isso. Quando a gente diz para tomar a igreja a sério, significa que a igreja não é uma questão onde há alguns -é uma expressão que eu utilizo muitas vezes – há alguns funcionários que fabricam religião e os outros vêm abastecer ao fim de semana e depois lá estão kits para o resto da semana.
Uma estação de serviço.
Não é uma estação de serviço. Não pode ser, quer dizer, a Igreja também não tem que estar constantemente aqui de serviço. Não, não é de serviço. É qualquer coisa que é novo. É aceitar um projeto novo de vida para si, mas é uma vida que não é feita nunca sozinho. É feita com outro. É por isso que isto é um projeto para germinar numa sociedade. Isto não é nem nunca pode ser simplesmente uma coisa para dentro da igreja, mas é algo para a igreja que se quer projetar e que está ao serviço da missão. Porque é para isso que ela foi criada.
Como é que a Igreja que está em Portugal, responde à crise da habitação e à precariedade laboral? A JOC (Juventude Operária Católica), que é um organismo que pensa a partir de um mundo operário, fez esta observação: como é que a Igreja passa por entre este drama de não haver casas para todos e como a precariedade laboral pode provocar a pobreza que este país tem por todo o território?
Nós temos falado destes problemas recorrentemente. A Igreja não se alheia de nenhum desses problemas e o chamar a atenção e o fazer parte, porque a Igreja são pessoas concretas, não é simplesmente uma questão de bispos dizerem umas coisas e dar indicações sobre alguma coisa que nós podemos dizer. Mas não temos a pretensão, nem temos os instrumentos para...
A Igreja, não é um sindicato...
Não somos o sindicato, nem nos substituímos a ninguém, mas também não estamos calados. Esse é um dos temas que tem sido recorrente nas nossas análises que fazemos nas nossas propostas, mas não são os bispos que vão estar lá. São gente que viva o sentido da justiça e a busca de justiça. Depois, sem pretendermos também ter sempre as respostas já feitas como os outros estivessem sempre à nossa procura, e eu sinto-me como alguém que se sente desafiado como aqueles que estão no governo, como aqueles que estão nas câmaras.
Se calhar, a Igreja precisa de vozes mais dissonantes.
Mas a Igreja está dentro dessas situações. Nas autarquias, nas juntas de freguesia, em grande parte destas instituições, há gente cristã que também não têm todos os instrumentos, nem todas as possibilidades de fazer milagres. Mas o que nós podemos fazer? Fazemos e, sobretudo, queremos participar com toda a sociedade na busca de caminhos para resolver os problemas.
Explique-me uma coisa que me traz perturbado há alguns anos. Porque é que alguns setores da Igreja se prendem ao formato tridentino, do Concílio de Trento, que foi no século XVI, e não se liga nada ao Concílio Vaticano II, que foi no século XX? É uma igreja mais de honra que de dignidade?
A igreja é composta de pessoas que vêm de culturas e tradições diferentes, o que não significa que essas pessoas marquem o passo. Temos de encontrar caminhos para essas pessoas. O Papa tem tentado evitar cisões, mas ao mesmo temo evitar que a igreja fique agarrada ao passado. A igreja tem um passado, e é um passado de que deve orgulhar-se.
Porque é que muita da gente mais nova que sai agora dos seminários, envereda por um tridentismo?
Nós vemos isso na sociedade inteira. Porque é que há tantos jovens que seguem sistemas populistas e versões do passado?
O problema está nos seminários?
O problema está numa sociedade que vive assim. Eu acho que os seminários, mesmo assim, têm feito um esforço. Mas um dos tais 10 pontos (do Sínodo) é precisamente rever a Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis isto é, os critérios e os programas formativos dos seminários. Para quê? Para que este sistema sinodal possa entrar. Porque ele desconstrói precisamente esse saudosismo do passado. E eu entendo. Isto começa com uma juventude onde não encontro a segurança que a minha geração ainda teve no passado. Nós sabíamos que, se estudássemos, podíamos ter sucesso. Os jovens depois deixaram de ter isso, começaram a ver quando tivemos também políticas governativas que que não responderam aos seus anseios e às suas preocupações e necessidades. E é por isso que vão à procura de messianismos diferentes. Tantos deles vão ser ilusórios. Mas o querer ficar agarrado ao passado é uma busca da segurança que não têm. Toda a gente tem que ter estima pelo seu país e ter orgulho na sua história, mas também com capacidade de ver as sombras que ela contém. Também eu gosto muito do meu país, gosto muito da minha ilha da Madeira. Mas nem a Madeira é o mundo, nem Portugal é o mundo. Gosto muito de ser Português, precisamente porque somos assim. Agora, isso não me tira - bem pelo contrário, serve um trampolim para construir algo dessa tradição que não foi perfeita como nenhuma outra. Mas essa tradição dá-nos impulso para criarmos algo de novo e não para pararmos nela, porque ela já não existe. Quem anda à procura da Igreja do século XVII, quando quiser espremer, não fica com nada porque o século XVII já não está lá.
Mas que estranho é que a gente mais nova ande por aí...
Então, mas vá perguntar isso aos sociólogos, e não é só na Igreja. Porque é que temos os neofascismos? Porque é que temos neonazismos? Quer dizer, a Igreja não vive no mundo que seja etéreo, fora da realidade social e esta realidade social depois mistura-se com isso, porque o Homem não é simplesmente um ser religioso, por um lado, e um ser social por outro. Nós vivemos neste mundo e a função da Igreja é precisamente não deixar-se levar simplesmente por isto, mas criar não valores eternos porque são imutáveis, mas valores que são tão eternos que sempre se mudam para encontrar soluções para o presente e para encontrar sonhos de presente e sonhos de futuro. Porque quem quiser parar só no passado, esse, sim, fica no frigorífico.
Saúda os 60 dias de silêncio na guerra do Médio Oriente?
Seria bom que não fossem só 60 dias. Nós estamos também a lançar agora na igreja em Portugal, um peditório para recolher fundos para a Faixa de Gaza porque aí, ultrapassaram-se todos, todos os horrores. E esperemos, lá na Faixa de Gaza, estas pessoas possam ser assistidas, porque ter proibido - é uma coisa que é incompreensível e não pode ser aceite - ter proibido ajuda humanitária de quem quer ajudar, e com pessoas e crianças a passarem fome e a serem bombardeadas todos os dias, isto não cabe na cabeça de ninguém que se chamou humano. Nós não podemos fazer muito, mas vamos fazer uma campanha agora de preparação do Natal, o Natal, a Terra de Jesus. Os homens que se juntem para fazer a paz e dialogarem uns com os outros. Foi dito neste fórum agora destes dias (Fórum da Aliança para as Civilizações das Nações Unidas, em Cascais), por um muçulmano “quando os homens deixarem de pensar em Deus como o Deus da paz e procurarem com a guerra, defender Deus, então perdeu-se tudo”. A alternativa é a hecatombe que nós estamos. Estamos a assistir ao que é realmente o soçobrar da humanidade. Do sentimento humano, do ser humano e do futuro humano, capaz de, no mínimo, de justiça e dignidade para todos.
Sonha já com uma paz para a Ucrânia e para a Rússia?
Eu não sei se sonho, não tenho mais do que isto. Claro que se adensam também no horizonte, problemas muito sérios, seja de uma subida do nível bélico e das suas potencialidades de discussões entre aqueles que têm sustentado uma solução de justiça e de não permitir que os princípios fundamentais do relacionamento Internacional se pervertam. Não se prevê nem são pressupostos para um futuro bom. E espero que não seja simplesmente uma paz dos mais poderosos e dos mais ambiciosos que, como sempre, que vencem as guerras. Espero que, de facto, se façam a paz na justiça e na dignidade de todas as pessoas e dos povos.