De cabeça erguida, Catarina Martins sai de cena sem deixar nada por dizer ao PS
Sai ao fim de mais de uma década na liderança prometendo continuar "lado a lado" na luta do partido e escolheu o PS, "no seu momento cavaquista", como alvo do último discurso. Ovacionada, Catarina Martins realça que Bloco está a crescer e que há "todo um país que exige um futuro de cabeça erguida".
Corpo do artigo
"Nunca precisei de água nestes 11 anos." A pausa não estava prevista, mas o momento é solene e a boca seca é sinal da natural emoção de um ciclo que termina. Catarina Martins não quer encarar o momento como uma despedida, mas é mesmo, e também por isso é altura de "balanço do passado" e "tomar balanço para o futuro".
Não faltaram referências a nomes como Francisco Louçã, Luís Fazenda, Marisa Matias e Mariana Mortágua, mas também Miguel Portas ou João Semedo, este último que foi coordenador com ela, e que dá nome à lei da eutanásia que não foi esquecida e reivindicada nesta convenção como uma grande conquista.
TSF\audio\2023\05\noticias\27\21_francisco_nascimento_catarina_martins
E de conquistas várias falou Catarina Martins. Não deixou um guia para a futura liderança, mas lembrou os caminhos trilhados que permitiram "a vinculação de dezenas de milhares de pessoas que trabalhavam para o Estado e que não tinham um dia de férias pago por serem precárias", o começo da construção da "justiça para o acesso à reforma de quem começou a trabalhar em criança", a garantia de "manuais escolares gratuitos para as crianças e jovens no ensino obrigatório" e "transportes públicos gratuitos para jovens e idosos e passes família".
A enunciação é longa e serve como uma espécie de prestar de contas perante a militância bloquista, lembrando ainda que foi o partido que revelou "escândalos financeiros", que denunciou "a pirataria das privatizações e os banqueiros e CEO que prejudicaram o país". "Lembrem-se que era o Bloco de Esquerda que Ricardo Salgado tratava como o seu inimigo e tinha toda a razão, é uma honra para nós termos mostrado que o crime é crime e que foram os banqueiros quem assaltaram os bancos", vinca a ainda coordenadora do partido para aplauso dos delegados antes de entrar no alvo preferencial que é o Partido Socialista.
O "momento cavaquista" do PS, o "padrasto do populismo"
Já com o balanço na voz, o momento é de acertar contas com o Partido Socialista e com António Costa, ele que foi parceiro mas que também foi hostil em vários momentos com o Bloco de Esquerda e com Catarina Martins em particular.
E "coerência" é a palavra que a porta-voz do partido escolhe para falar da geringonça e do acordo firmado com o Partido Socialista, mas também a coerência ao chumbar o Orçamento do Estado de 2020 que acabou por levar a uma "derrota eleitoral que deixou feridas".
Notando que já sentem nas ruas o crescimento do partido - "e que até as sondagens já reconhecem" - Catarina Martins parte para o ataque: "António Costa recusou qualquer acordo à esquerda em 2019 para dois anos depois provocar uma crise política e ter maioria absoluta, foi uma artimanha de que saiu vencedor".
"Agora não sabe o que fazer com a sua vitória e é consumido pela pior de todas as situações: o governo pouco faz e não tem desculpa nenhuma, pediu todo o poder de uma maioria absoluta e num ano e meio desbaratou a confiança de boa parte dos seus eleitores", nota Catarina Martins para quem o PS "usa o aparelho do Estado, perde-se em guerras internas e Portugal assiste incrédulo a um governo paralisado e enredado nos seus próprios erros".
Sublinhando que "bem pode o PS vitimizar-se", a líder do partido diz que "não foi nenhuma oposição que criou qualquer dos problemas que os ministros inventam, todos são auto-infligidos e a arrogância só os amplifica". "E assim se entretém uma degradação da vida pública em que o PS se tornou o padrasto de todo o populismo", ataca.
Ao apontar falhas da governação, Catarina Martins conclui: "sejamos claros, todos estes problemas estruturais foram agravados porque o PS, com maioria absoluta, achou que chegara o seu momento cavaquista". "Não foi portanto porque a negociação lhes tirava horas de sono que o PS recusou qualquer entendimento com a esquerda, foi mesmo porque quis uma política no avesso da esquerda".
No ajuste de contas com o PS, vinca-se que se "encenam confrontos vazios com a direita" ao mesmo tempo que lhe "copiam" políticas e ainda se encontram responsabilidades no crescimento da extrema-direita.
"Mesmo no confronto com a extrema-direita, na defesa de valores de dignidade e respeito, da igualdade e das liberdades, ao negar as condições concretas do salário, do serviço público, da habitação, ao fazer dos serviços secretos um misterioso joguete, ao propor restrições constitucionais perigosas, o PS está a contaminar todo o debate democrático e a estender a passadeira ao regresso dos piores fantasmas do passado", conclui.
Com um sorriso de orelha a orelha, embalada pelas palmas da convenção, Catarina Martins agradece "os anos extraordinários" e promete continuar na luta popular, "lado a lado". Na hora da despedida, sai de cabeça erguida e sem nada por dizer, a prestação de contas está feita. O ajuste também.