Dois anos depois, a azáfama regressa a Alfama. "Os Santos são melhores do que o Natal"
A cidade de Lisboa prepara-se para um mês de festa. A pandemia obrigou ao cancelamento dos tradicionais arraiais populares. Em Alfama, coração da festa lisboeta, fazem-se os últimos retoques. Entre residentes e turistas, já ninguém esconde o entusiasmo. Que comece a festa.
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A música ajuda a antecipar o que aí vem. De uma coluna de som portátil, ouvimos a voz imponente de Maria Nazaré, interpretando a marcha "Olá Lisboa". Olga conversa com duas amigas e assume-se "deslumbrada" com a aproximação dos Santos. Nascida e criada no Bairro de Alfama há mais de 60 anos, a poucos dias do início da festa, já se instalou no Largo do Chafariz de Dentro, onde tem uma banca para vender ginjinha caseira.
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"Faz-me falta muita animação. A pandemia foi boa, a gente aguentou-se também a ela. Não temo nada, a gente tem de morrer um dia, não temo nada", refere, recordando as primeiras memórias dos Santos Populares. "Antigamente, dormia-se nas ruas com as portas abertas, com as portas abertas, agora já não se faz isso. Não havia certas coisas que há hoje."
"Estou à espera de vender ginjinha, manjericos e o que calhar. Estou à espera daquilo que Deus me quiser dar", salienta Olga, que trabalha ao lado de Dina. Conhecem-se há décadas, mas Dina reside na zona do Castelo, freguesia de Santa Maria Maior.
Depois de dois anos sem música e bailes, Dina tem presente na memória as festas de outros tempos. "Morava num pátio ao pé do Castelo e fazíamos fogueiras, roubávamos os caixotes do lixo, antigamente eram em madeira, roubávamos às vizinhas e fazíamos fogueiras", recorda.
No outro tempo, os fatos dos marchantes eram feitos em papel colorido. Não havia o que há hoje. "Agora a festa é mais rica. Compram coisas fluorescentes para enfeitar e bandeiras", lembra Dina, que durante a pandemia, sem festa, ficava à janela a mirar a igreja.
"Não sei cantar fado. Punha-me à janela do quarto andar a ver passar, mas não se via ninguém. Gosto mais do Santo António do que do Natal. O Natal para mim é muito triste. Todos os anos vai faltando muita gente na família. Gosto muito do Santo António porque é muito alegre", sublinha Dina, que vive no Castelo há mais de 70 anos.
"Vivo ali desde os sete anos, comecei a namorar o meu marido, casei aos 14 anos. Tive uma filha aos 16, tive um aos 18 e tive outra aos 23 anos. Estive casada 48 anos. Foi o primeiro namorado e o último homem até hoje. Pode ser que agora aí no Santo António apareça aí algum alentejano".
Pelas ruelas que caracterizam Alfama já se veem as bancadas que irão alimentar quem por ali passar nos próximos dias, semanas. Avançamos pela rua de São Miguel e encontramos Ramiro, que também vende ginjinha numa pequena taberna, há mais de 40 anos. Ramiro confirma o entusiasmo.
"Há muita euforia. Tenho a certeza que vai ser uma loucura nas festas. As pessoas estão muito eufóricas. Tenho a certeza que vai ser uma grande festa. Oxalá que tudo corra bem", frisa o proprietário do pequeno estabelecimento, que alerta para a perda de identidade de uma festa "dos portugueses, para os portugueses".
"As festas de Alfama são os lisboetas, são os portugueses, são as pessoas de Portugal que visitam Alfama e estes bairros. Agora, envolvemos os turistas nisso, isso já é outra coisa", atira. "Dizia Amália: Lisboa não sejas francesa. E nós estamos a ficar mais francesas, ingleses do que portugueses."
Avançando nas ruas íngremes do bairro, o trabalho é muito. Preparam-se as mesas, montam-se as bancadas e dá-se o último retoque antes das visitas. É o caso de Domingos e Ilda. "Finalmente. Já não era sem tempo. É para dançar, comer e beber. Faz falta", exclama Domingos, que vai martelando o balcão. Ilda diz que faz falta "a brincadeira e o convívio" e por isso, este casal, vai ajudando a tia que vive no bairro há quase seis décadas. "As pessoas mais velhas sentem mais falta".
Por entre os trabalhos, ouvem-se os trolleys dos turistas. Neste bairro tipicamente português, há muitos estrangeiros que vêm à descoberta da história e dos melhores recantos para fotografar e mostrar nas redes sociais.
Subimos a um dos miradouros mais emblemáticos da cidade, o de Santa Luzia, encontramos turistas de todos os cantos do mundo. Veem o bairro de Alfama com o Tejo no horizonte. Dois guitarristas dão o ritmo do final de tarde e, nas colunas do miradouro, encontramos Charles. Viajou para Portugal desde o outro lado do mundo: a Austrália.
"Ouvi muitas coisas boas sobre Lisboa. Disseram-me que era linda e é mesmo. Estou mesmo a gostar. Há tanta história neste local", diz, sorrindo para o Tejo e para o pôr-do-sol.