Hugo Mendes: "A única forma de manter o Hub da TAP em Lisboa é o controlo público da companhia"
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Seja quem for que compre a TAP não pode garantir com seriedade que vai preservar o Hub da companhia em Lisboa porque numa TAP privada o mercado é que manda, este é o argumento de Hugo Mendes, antigo secretario de Estado das Infraestruturas e co-autor do livro sobre a polémica à volta da TAP, "Patos Desalinhados Não Voam".
No livro escrito em conjunto com Frederico Pinheiro, antigo adjunto do gabinete de Pedro Nuno Santos e de João Galamba, Hugo Mendes defende que o Hub não pode ser garantido por um contrato, "a única forma de manter o Hub é manter o controlo da companhia pública, porque não vai haver nenhum papel, nenhum caderno de encargos nenhum acordo para-social que garanta efetivamente que no médio prazo o hub não possa ser descaracterizado".
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Hugo Mendes argumenta que "o hub não pode ser garantido por um contrato. O Hub é um centro de operações que depende de decisões cotidianas. E, o Governo estando fora da empresa não vai ser capaz de obrigar a empresa a cumprir um determinado acordo, um determinado contrato".
Já Frederico Pinheiro admite que houve uma abordagem ideológica ao desenho do futuro da TAP. "Naquele momento havia um processo de reflexão em curso. Não havia nenhuma política decidida pelo Governo, nem fechada. Havia um diálogo que estava a ser efetuado entre as diferentes entidades do governo, entre a TAP, entre o Ministério das Infraestruturas, entre o Ministério das Finanças, estava a ser recolhida informação como é público. Não havia nenhuma decisão. E o que nós dizemos no livro é factual, ou seja, a partir do momento em que há uma alteração na equipa do Ministério das Infraestruturas e da Habitação, o processo de privatização da TAP acelera".
Ouça a entrevista na íntegra
Questionado se Processo de Reflexão Em Curso, pode ser entendido como um PREC e se isso carrega alguma a avaliação ideológica em relação àquilo que podia acontecer à TAP, Frederico Pinheiro assume que "as políticas públicas e tudo aquilo que um determinado governo ou Estado faz tem sempre uma carga ideológica, tem sempre uma base teórica na qual se fundamenta, portanto qualquer decisão seja a de vender a maioria do capital da TAP, a de manter a TAP no Estado ou a de vender só uma determinada parte da companhia aérea são decisões que têm sempre uma carga teórica e uma carga ideológica".
Outro tema abordado nesta entrevista foi o despacho de 2022 para uma solução aeroportuária para Lisboa que passava pelo Montijo e depois pelo campo de tiro de Alcochete, um despacho assinado pelo então secretário de Estado das Infraestruturas e que foi revertido pelo primeiro-ministro; Hugo Mendes ainda hoje pensa que o despacho era a solução mais eficaz para ter uma solução de aeroporto para Lisboa.
Uma solução que conciliava "o imperativo de compatibilizar o curto prazo com o longo prazo. O que aquele despacho permitia fazer, era isso mesmo. O desenvolvimento do aeroporto do Montijo garantiria que nos próximos 5 a 10 anos haveria um complemento ao aeroporto de Lisboa".
Mas esta crise do Despacho revertido rebentou sem nunca terem sido dadas algumas justificações, afinal, não sabemos se o Primeiro-Ministro, António Costa, sabia ou não do Despacho mas Hugo Mendes diz que desconhece o que se passou.
"Há aqui uma dupla dimensão, uma dimensão da interação entre os dois, o primeiro-ministro e o ex-ministro que terão combinado algo que eu não sei exatamente. Admito que que possa ter havido uma descoordenação entre os dois. Daquilo que era da minha responsabilidade e que eu tinha combinado com o ex-ministro, correu tudo como um relógio suíço. A descoordenação terá existido a montante e eu não estive presente nessa ou nessas reuniões e, portanto, não posso ser testemunha do que não presenciei e não posso falar daquilo que desconheço", remata Hugo Mendes.
A semana ficou marcada pela demissão de António Costa. O dossiê da privatização da TAP será um dos que ficará agora suspenso. O que espera do futuro deste processo?
Tendo em conta a incerteza que vivemos relativamente ao futuro governo é muito difícil estarmos a antecipar os passos que serão dados relativamente a esse dossiê. Vai depender muito de quem estiver à frente dos destinos do país nos próximos anos. Parece-me cedo estar a fazer essa cogitações , é preciso conhecer quem vai governar para saber o que é que vai acontecer. Podemos dizer que está tudo em aberto.
Referem não entender a pressa do governo em vender a TAP e discordam da alienação da maioria do capital. A avançar a privatização, terá de aguardar pela formação de um novo governo que dê seguimento à venda, se for essa a escolha Este será um tempo positivo para a valorização da empresa?
Frederico Pinheiro: Todo o tempo que se passar enquanto a empresa for conseguindo manter estes níveis de rentabilidade obviamente faz com que a companhia aérea se esteja a valorizar de dia para dia. Este tempo que o Estado vai ganhar com a formação ou não de um novo governo, a breve prazo, vai permitir também ao próximo governo fundamentar melhor a necessidade de se efetuar a abertura de um processo de capital, seja ele vendendo a maioria de capital da TAP ou uma minoria, que é o que defendemos no livro. Ou se vende uma minoria ou não é necessário alienar nenhuma parte do capital da TAP.
É possível ainda recuperar os 3,2 mil milhões de euros que o Estado injectou na TAP?
Frederico Pinheiro: É importante fazermos a distinção entre a recuperação direta para o Estado acionista e a recuperação indireta do capital para o Estado fiscal. A partir do momento em que há uma injeção de capital na companhia aérea e se evita a falência da própria empresa, o dinheiro que entra na TAP começa a circular por toda a economia. Isto, no momento em que havia uma grave crise pandémica que teve repercussões muito fortes na economia. Foi também uma forma de estabilizar a economia e parte desse dinheiro tem sido recuperado. Ao mesmo tempo, temos visto que o processo de reestruturação e os dados que temos mostram que até agora a sua implementação tem sido bastante bem sucedida. À medida que a empresa vai registando lucros vai-se valorizando e isso é um ativo do Estado que se está a valorizar, é a própria riqueza do Estado que vai aumentando.
O governo tem defendido que o preço é o último critério na venda da companhia e excluiu do processo players de fora do setor da aviação. Concorda com estes pontos? Que aspetos devem ser incluídos no caderno de encargos?
Hugo Mendes: O facto de se excluírem agentes económicos de fora do setor da aviação parece-me positivo, é importante que a TAP seja integrada e tenha ligações e parcerias. Não necessariamente perdendo a maioria do capital mas que essa integração seja feita com outras empresas do setor. É fundamental para haver um alinhamento estratégico e uma perspetiva de longo prazo da empresa. O que nos parceria muito negativo seria existir uma venda do capital a fundos ou outros agentes económicos que não têm na aviação o seu setor fundamental e poderiam estar interessados apenas em fazer mais-valias, independentemente da estratégia e do futuro da companhia. Relativamente ao requisitos, essa questão de desvalorizar tanto o preço pode parecer arriscado. Percebo que o governo está a tentar evitar negociar em público, tem tentado sempre proteger a sua posição na comunicação pública não libertando demasiada informação porque também a quer guardar para o processo negocial. Mas também não era necessário desvalorizar tanto o preço. O preço será uma das variáveis importantes, não será necessariamente a menos importante mas é uma variável politicamente relevante porque o país, para o bem e para o mal, tem a referência dos 3,2 mil milhões de euros e, portanto, o governo não pode tratar essa variável como pouco relevante, o que não significa que seja a mais importante.
Que aspetos são fundamentais de incluídos num futuro caderno de encargos, a avançar, no futuro, uma privatização?
Hugo Mendes: Tenho dificuldade em abordar a questão por esse ângulo, porque tenho visto a discussão colocada muito do ponto de vista das balizas e das garantias que um caderno de encargos pode trazer para o Estado numa privatização da maioria do capital. E a nossa posição tem sido a de enfatizar um ângulo diferente, que é aquilo que o Estado não pode garantir através de um caderno de encargos ou de um acordo parassocial.
Por exemplo?
Hugo Mendes: O governo tem dado ênfase, e bem, à questão da manutenção do hub. A única forma de manter o hub é manter o controlo da companhia. Não vai haver nenhum papel, nenhum caderno de encargos nem nenhum acordo parassocial que garanta, efetivamente, que no médio prazo o hub não possa ser descaraterizado. O hub não pode ser garantido por um contrato, é um centro de operações que depende de decisões quotidianas. E o governo, estando fora da empresa, não vai ser capaz [de garantir]. É preciso ver estas coisas de forma realista e não apenas nos cingirmos àquilo que pode estar escrito num documento, mas a monitorização, a fiscalização e a capacidade que o governo vai ter de obrigar a empresa a cumprir um determinado acordo ou um determinado contrato. O governo quer passar, a nosso ver, a ilusão de que é possível garantir um conjunto de objetivos estratégicos através de um acordo, de um documento. E temos grandes dúvidas de que isso possa ser passível de ser garantido. Podemos ver uma situação, daqui a uns anos, em que a empresa pode mudar de estratégia e optar pela deslocalização e migração de alguns voos para outros hubs, o que poderá levar à descaracterização do hub de Lisboa e o Estado ter poucos instrumentos para se defender. A relação entre agentes económicos e Estado não se resume às peças contratuais, são relações de poder. O que é que o Estado português vai fazer se, eventualmente, o hub começar a ser descaracterizado e transferido parcialmente para outro hub a nível europeu, que faça parte do grupo que vai comprar a TAP? Vai nacionalizar a companhia? Vai multá-la? Adverti-la? Qual é, realisticamente, o poder do Estado português para bater o pé ou utilizar uma qualquer bomba atómica que diga "não, desculpe, os senhores estão a incumprir aquilo que está acordado, nós não vamos permitir que vocês façam isso". Não duvidamos de que possa haver um acordo que seja bom do ponto de vista teórico, em que os requisitos estejam lá inscritos. A questão é: e se eles não cumprirem? O que é que o Estado português vai fazer?
O governo está a usar um argumento falacioso para tentar convencer a opinião pública da privatização da TAP?
Frederico Pinheiro: O governo tem de estudar melhor as garantias que pode dar sobre a manutenção de determinados ativos da TAP, nomeadamente o mais importante, que é o hub. Defendo sempre que o Estado deve manter o controlo da TAP por estas razões que o Hugo referiu, mas nada impede a TAP de abrir o seu capital e procurar parcerias aprofundadas.
Mas o hub é um argumento falacioso?
Frederico Pinheiro: Não considero que seja propositadamente. Acredito é que todos estes debates em torno de políticas e políticas políticas públicas vão evoluindo e vão se solidificando. Acredito que essa informação não esteja a ser trabalhada dentro do governo. Neste momento o próprio Presidente da República, quando se pronunciou sobre o caso da TAP, sobre o processo de privatização, referiu esta questão sobre que garantias e que poderes é que o Estado vai ter no âmbito de um processo durante o qual nós alienamos a maioria do capital da TAP? E essa pergunta ainda não foi respondida por ninguém.
Defendem que este livro só existe por causa da Comissão Parlamentar de Inquérito e nele um livro tece em críticas à forma como a comissão foi conduzida pelos vários partidos, incluindo pelo Partido Socialista. Apontam também críticas à forma como os jornalistas e os comentadores acompanharam todo este processo. Fazendo a pergunta ao contrário, afinal o que é que correu bem e para que serviram todos estes meses de audições?
Hugo Mendes: A CPI permitiu fazer alguma investigação e inquirição e análise de alguns momentos-chave dos últimos anos. O problema destas questões é que a CPI é um instrumento de escrutínio e esses instrumentos podem ser bem ou mal utilizados. Naquele caso, considero que se perdeu muito tempo num determinado evento, num determinado caso, em relação ao qual também havia informação relativa a comunicações pessoais e, portanto, aquilo transformou-se muito facilmente numa espécie de exercício voyeurista. E outros momentos importantes e fulcrais da vida da companhia nos últimos anos, seja a reconfiguração acionista de 2017, de 2015, de 2020, foram alvo de escrutínio, mas poderiam ter tido outra centralidade. No entanto, creio que a comissão foi importante para percebermos um pouco melhor do que aconteceu nesses momentos. Esses processos são complexos e a CPI é, também, um momento de alguma beligerância político-partidária e, portanto, isso tolda um pouco a possibilidade de análise e produz.
As audições deviam ser à porta fechada?
Hugo Mendes: Não, não estou a dizer isto, as audições são o que são. Não acho que uma cCPI possa ser muito diferente daquilo. As comissões parlamentares de inquérito são instrumentos de escrutínio com a sua utilidade. Em determinados casos muito complexos, tecnicamente e politicamente, como foram os vários momentos aqui em análise da TAP, as reconfigurações acionistas em particular, na nossa perceção. Consideramos que merecia um tratamento mais ponderado, mais calmo e mais sustentado e foi por isso que fizemos o livro. Porque A CPI têm a sua utilidade, mas há sempre a beligerância política, há sempre guerrilha política ou partidária e isso às vezes torna difícil a compreensão dos fenómenos em causa.
Foram ouvidos na CPI e tiveram a oportunidade ao longo de várias horas de se defenderem. Não foi o suficiente? O que é que é preciso acrescentar agora com o livro?
Frederico Pinheiro: Sobre a própria CPI, os trabalhos foram o que foram, existem as limitações que existem. O importante é que o livro é um espaço de reflexão com mais tempo, com uma maior ponderação, que nos permite desenvolver determinadas reflexões teoricamente e mostrar o que foi feito na prática de uma forma mais definitiva. E a própria CPI, por respeitar aos determinados tempos parlamentares, mas também aos próprios objetivos e tempos mediáticos, não permite, pela sua natureza, uma reflexão mais aprofundada. Com este livro pretendemos partilhar as justificações das políticas que foram seguidas, os constrangimentos que existiram, porque é que fizemos determinadas opções, porque é que não fomos por um caminho e fomos por outro e tentar também retirar conclusões a partir desta experiência para o futuro das políticas públicas, ou seja, olhando para o passado e que permite tirar conclusões para o futuro político do nosso país.
No livro falam também da intervenção do Estado e das acusações de ingerência. Por exemplo, aqui no polémico caso da renovação da frota automóvel, argumentam que o governo teve de "puxar o travão de mão para estancar a polémica", obrigando a TAP a cancelar a enconomenda dos 50 BMW. A TAP acabou por manter os atuais contratos que custavam mais dinheiro. Este não é um caso de ingerência, em que ignorando os custos se tomou uma decisão só para acalmar a opinião pública fazendo a companhia perder dinheiro?
Hugo Mendes: Esse é um bom caso que mostra que numa situação complexa como a TAP vivia, de reestruturação, em que muitas das decisões eram difíceis, seja do ponto de vista interno da organização, seja do ponto de vista financeiro. A linha entre a gestão e a política, muitas vezes, torna-se necessariamente porosa. E aquilo que num determinado contexto é de gestão corrente da empresa pode, pelo impacto político e mediático, justificar que a tutela política tenha uma intervenção.
E justifica-se numa altura em que os trabalhadores eram alvo de cortes salariais, permitirem que a empresa continue a perder dinheiro quando o contrato iria valer uma poupança às contas da companhia?
Hugo Mendes: É verdade, mas esse argumento de que poderia ser mais barato não vingou do ponto de visto político. Porque o que vimos é que essa justificação foi apresentada, que aquela era a melhor decisão do ponto de vista financeiro que a empresa, naquele contexto, entendeu tomar. No entanto, havia a polémica que havia. E naquela manhã, de 5 de outubro de 2022, entendeu-se que a forma de tentar travar politicamente aquele dano era travar o processo, que era um dano político para a empresa e um dano político para o ministério e para o Governo no seu todo - que tinha merecido comentários do Presidente da República, do primeiro-ministro, de vários partidos da oposição e de sindicatos da empresa. Aquilo foi uma situação clara em que uma questão de gestão corrente a TAP se transforma num problema político.
Mas, o governo nunca justificou publicamente os valores dos contratos nem explicou à opinião pública que, de facto, estava a acontecer uma poupança de dinheiro?
Hugo Mendes: Podemos fazer o filme do tempo mais concreto desse dia ou desses dias, porque nos dias seguintes, a polémica continuou. A informação foi toda prestada, e a informação deve ser prestada pela TAP porque é a companhia que tem essa informação. Não me parece que se justificava ser o governo a transmitir essa informação à opinião pública, até porque o governo não tem toda a informação. As decisões também têm consequências políticas e isso faz parte da vida de uma empresa pública, sobretudo da vida de uma empresa pública em reestruturação, que pode contaminar politicamente a tutela e o governo. Não tivemos nada a ver com a decisão original, a TAP tomou a decisão que entendeu. Só a partir do momento em que se torna um problema político é que entendemos dizer "alto lá, nós precisamos fazer alguma coisa" porque o problema não vai parar se não for travado ou se não houver uma tentativa de o travar.
Estes seis anos foram uma processo traumático? A TAP foi gerida dentro do gabinete de um potencial candidato a líder do PS, no sentido de gerir perdas e danos da agenda de um politico?
Frederico Pinheiro: Não acho que tenha sido um processo traumático. Foram momentos bastante enriquecedores do ponto de vista político, muito desafiantes. Durante esse tempo todo tivemos uma equipa muito empenhada, não só do lado do ministério das Infraestruturas, mas do ministério das Finanças e de outros ministérios que participaram em decisões fundamentais para desbloquearem determinados obstáculos e problemas que a TAP tinha. A TAP não foi gerida a partir do ministério em momento algum. É impossível qualquer gabinete ministerial gerir uma empresa como a TAP, não tem as competências, não tem o pessoal necessário. Estamos a falar de milhares de decisões que são tomadas pela comissão executiva e pelos diretores operacionais e é aí que deve ser feito o processo.
Em dezembro de 2020, Pedro Nuno Santos afirmou que em 2025 a TAP estaria "em condições de começar a devolver o dinheiro ao Estado português", referindo-se à injeção de 3,2 mil milhões de euros. Entretanto o discurso mudou. Neste livro falam no dever cívico de tratar os cidadãos como adultos. Pedro Nuno Santos enganou os portugueses desde o início?
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Hugo Mendes: O ex-ministro disse uma coisa muito simples que é: em 2025 a TAP teria resultados líquidos positivos. Logo, se o acionista assim o entendesse, a TAP poderia começar a devolver cinco milhões, 10 milhões, 15 milhões, o que fosse, ao acionista através de dividendos. Nem sequer consigo perceber a polémica em torno das declarações e da interpretação que foi dada. O plano de restruturação previa lucros em 2025, felizmente, foram atingidos logo em 2022. Se o acionista tivesse entendido que em 2022 a TAP devolveria ao Estado português x milhões, tê-lo ia feito. Entendeu-se que esse dinheiro devia servir para robustecer a companhia, e bem, parece-me. Mas do ponto de vista dessa frase, ela parece-me verdadeiramente incontroversa porque significa que a partir do momento em que a empresa começa a dar lucros, ela pode começar a devolver efetivamente ao acionista.
Mas não foi explicado à partida pelo antigo ministro Pedro Nuno Santos que esta devolução só aconteceria se o acionista assim o quisesse. E, de repente, Pedro Nuno Santos, começou a dizer que a TAP estava já a devolver este dinheiro ao país, em turismo, exportações, compras às empresas nacionais. Não houve aqui uma explicação da transição destes argumentos?
Hugo Mendes: Esta é uma boa discussão que mostra porque é que o livro precisava de ser escrito. Percebo que o assunto seja complicado, sobretudo num ecossistema mediático em que vivemos. O que está aqui em causa são duas dimensões: o Estado enquanto acionista da empresa e o Estado enquanto agente económico que faz despesa e tem receita. Há duas formas de receber esse dinheiro de volta: uma é estimulando a atividade económica, neste caso, mantendo a empresa em funcionamento - ela vai continuar a fazer deslocações, a trazer passageiros e a levá-los e dessa forma a alimentar a economia e gerar receita fiscal e isso é uma forma de devolver dinheiro ao Estado fiscal. E depois há uma devolução diferente, que é a devolução ao Estado acionista, através da distribuição de dividendos ou, eventualmente, através de uma venda de capital. Só que o Estado é uma entidade una. É, por um lado, Estado acionista e, por outro lado, Estado fiscal, mas o Estado é o mesmo. E recebemos dinheiro, seja através dos impostos, seja através dos dividendos ou através de uma privatização parcial ou completa. Compreendo que isto no debate público possa não ser de fácil compreensão e também exploramos no livro esta questão. Não há aqui nenhuma confusão, nem nenhum erro ou engano. Há simplesmente uma dupla dimensão que precisa de ser explicada. Eventualmente pode não ter sido bem explicada ao longo deste tempo.
Vocês têm também criticado o processo de privatização da TAP e dizem mesmo que este acelerou desde que Pedro Nuno Santos saiu do governo. O ex ministro defendeu, no entanto, que a TAP não sobreviveria sozinha e que teria sempre de ser integrada num grande grupo de aviação. Afinal, que planos havia no ministério nesta altura para o futuro da TAP?
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Frederico Pinheiro: Naquele momento havia um processo de reflexão em curso. Não havia nenhuma política decidida pelo Governo, nem fechada. Havia um diálogo que estava a ser efetuado entre as diferentes partes e entidades. Entre a TAP, o Ministério das Infraestruturas e o Ministério das Finanças. Estava a ser recolhida a informação, como é público, não havia nenhuma decisão tomada. A partir do momento em que há uma alteração na equipa do ministério das Infraestruturas e da Habitação, o processo de privatização da TAP acelera. Conhece-se a posição do Governo a dizer que se vai vender a maioria do capital da companhia aérea.
Por processo de reflexão em curso pode-se depreender que era um PREC que estava em cima da mesa? Fizeram alguma avaliação ideológica em relação ao que poderia acontecer à TAP?
Frederico Pinheiro: As políticas públicas e tudo aquilo que um determinado governo e Estado faz tem sempre uma carga ideológica na qual se fundamenta. Qualquer decisão, seja a de vender a maioria do capital da TAP, a de manter a TAP no Estado ou a de vender só uma determinada parte da companhia aérea, são decisões que têm sempre uma carga teórica e ideológica. E isso é como em tudo, não existe nada que seja puramente técnico.
Um dos argumentos para justificar o valor estratégico da TAP para o país é o seu contributo para a economia nacional. Por ano, a TAP compra mil milhões de euros a empresas portuguesas. É possível continuar a assegurar isto com a venda a uma Lufthansa ou à Air France-KLM?
Hugo Mendes: Mais uma vez, não sabemos. O que é que o Estado português vai impor a um futuro comprador, que tem que comprar x milhões de euros a empresas portuguesas? Isso parece-me dificilmente contratualizável. Essa é uma pergunta muito relevante, é uma das dimensões relativamente à qual nós temos dificuldade em acreditar que pode haver garantias que esse volume e que esse contributo para a economia nacional pode continuar a ser dado. Porque, de facto, essas compras podem ser centralizadas e feitas fora de Portugal.
Este é um dos pontos que o Estado não consegue garantir sem ter a maioria do capital?
Hugo Mendes: Parece-me muitíssimo difícil garantir que a TAP vai continuar a dar a mesma contribuição para a economia portuguesa que dá mantendo-se em Portugal e sob controlo público.
A avançar, a privatização da TAP deve esperar pela decisão de um novo aeroporto para Lisboa, de modo a valorizar a ideia de Lisboa como hub aeroportuário?
Frederico Pinheiro: O resgate foi essencialmente um resgate do hub nacional. O grande ativo da companhia aérea é, de facto, esse centro de operações intercontinental que permite ligar o país, à Europa, a África e ao continente americano. Isso é algo único e excecional que a TAP tem e é um ativo que é muito cobiçado por várias companhias aéreas. Mas não só do ponto de vista empresarial, é cobiçado também pelos próprios Estados, porque estamos a falar do controlo de uma infraestrutura e de operações que têm um valor económico, mas também político muito acentuado, são importantes também para os próprios países. O hub da TAP está sediado no aeroporto de Lisboa, que é um aeroporto saturadíssimo. Isso faz com que limite todas as operações da TAP, que ocorrem com vários atrasos. Por outro lado, a TAP, ao querer crescer, tem sempre os seus planos de expansão limitados. Um aeroporto novo, o aumento da capacidade aeroportuária na região de Lisboa iria permitir desbloquear todo esse valor que a TAP tem e que está bloqueado pela falta de espaço na infraestrutura.
É importante haver já uma decisão em cima da mesa relativamente ao futuro do novo aeroporto quando o processo de privatização avançar?
Frederico Pinheiro: Com certeza, a garantia da concretização do novo aeroporto, o lançamento das primeiras pedras e a execução de um novo aeroporto e do aumento dessa capacidade aeroportuária de Lisboa vai, automaticamente, num instante, aumentar exponencialmente o valor da TAP.
Hugo Mendes, ainda defende a solução Montijo-Alcochete, do polémico despacho de junho de 2022 assinado por si, e que foi revertido pelo primeiro-ministro?
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Hugo Mendes: O que continua a fazer sentido e a decisão que for tomada relativamente à expansão aeroportuária da região de Lisboa é o imperativo de compatibilizar o curto prazo com o longo prazo. O que aquele despacho permitia fazer era isso mesmo, o desenvolvimento do aeroporto de Montijo garantiria que nos próximos cinco ou 10 anos haveria um complemento ao aeroporto de Lisboa que está saturadíssimo e impede não apenas o crescimento da TAP, mas o crescimento do turismo em Portugal. E esta é a dimensão do curto prazo. O Montijo é uma infraestrutura, se houver outra solução que possa ser estudada e encontrada, que seja mais económica, mais rápida, ambientalmente menos danosa, excelente. Aqui o nosso foco não era tanto numa determinada infraestrutura, porque agora estão a ser estudadas mais e, portanto, o leque de opções pode aumentar, mas era a compatibilização do curto prazo com o longo prazo. No longo prazo, apontávamos para Alcochete, sabemos que agora também há outras infraestruturas em estudo e, portanto, eu não queria estar a substituir-me ao debate do ponto de vista da infraestrutura em concreto. A prioridade e a filosofia do despacho era a correta. Um aeroporto novo vai demorar pelo menos 10 anos e, neste período, precisamos de expandir a capacidade aeroportuária em Lisboa.
A solução do despacho era uma solução comprometia a Vinci enquanto concessionária?
Hugo Mendes: Naquele dia, a 30 de junho de 2022, tivemos uma reunião com a ANA de manhã e a Vinci demonstrou o apoio àquela decisão.
Esta crise rebentou sem nunca terem sido dadas algumas justificações. O primeiro-ministro António Costa sabia ou não do despacho?
Hugo Mendes: Essa é uma questão que tem que perguntar aos dois intervenientes que falaram diretamente: o primeiro-ministro António Costa e o ex-ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos. Há aqui uma dupla dimensão, uma dimensão da interação entre os dois, o primeiro-ministro e o ex-ministro, que terão combinado algo que eu não sei exatamente. Admito que possa ter havido aí uma descoordenação entre os dois. Por outro lado, eu tinha uma combinação com o ministro, que era, naquele dia 30 de junho, fazer duas reuniões de manhã, e essas reuniões aconteceram: primeiro com a ANA e seguidamente com a Confederação de Turismo de Portugal, a quem também comunicamos a decisão. A seguir ao almoço fizemos uma conferência de imprensa com vários jornalistas e às 18 horas saiu o despacho. Portanto, daquilo que era da minha responsabilidade e que eu tinha combinado com o ex-ministro, correu tudo como um relógio suíço. A descoordenação terá existido a montante e eu não estive presente nessas reuniões e portanto não posso ser testemunha do que não presenciei.
É possível ter uma TAP rentável e que cumpra os desígnios de servir o país?
Frederico Pinheiro: É isso que está a acontecer agora. Neste momento temos uma companhia aérea pública que foi bem reestruturada, que está operacionalmente saudável e financeiramente equilibrada. Temos vindo a demonstrar que as capacidades do Estado também se podem ajustar a uma empresa que atua no mercado altamente competitivo e internacionalizado.